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Entrevista com Liliana Campos, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 26 de Maio de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
Entrevista com Liliana Campos, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 26 de Maio de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
"Só quando já não temos o pai e a mãe é que sentimos o que é que é realmente ser órfão. Quando a minha mãe partiu, ficou um buraco enorme"
"Entras numa espiral de querer estar presente, de que nada falhe, que te esqueces de ti, mas não te apercebes de que te estás a esquecer de ti"
"E tens de continuar a trabalhar, não tens dinheiro, não tens ninguém que te ajude. O dinheiro todo que tu ganhas, praticamente, é para ali"
"Os médicos alertaram, que eu não podia deixar de viver a minha vida, e que era importante não deixar passar a vida ao lado. Não ouvi"
"Eu achei sempre que ia ser mãe. Tenho um instinto maternal muito forte, gosto muito de crianças. E achei sempre que ia ser mãe"
"Sabes quando nós pensamos que temos tempo? Não temos tempo"
"Tive muitos porquês. Porque é que eu não fui mãe? Porque é que a minha mãe teve de sofrer tanto? Mas, depois, as coisas têm um propósito"
"Já não quero ser forte. Já fui forte e não foi o melhor."
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Liliana Campos é a 9.ª convidada do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Liliana Campos é a 9.ª convidada do Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Liliana Campos e a depressão: “Pensava que era uma coisa para pessoas fracas”

A orfandade, o vazio, a espiral em que se entra. Liliana Campos tornou-se cuidadora e durante quatro anos, dividiu com o irmão a tarefa de cuidar da mãe “como ela merecia”. A apresentadora não teve apenas de lidar com o choque emocional, houve também uma enorme pressão financeira para gerir todos os dias e a dificuldade em encontrar as pessoas certas para ajudar. “Esqueces-te de ti, mas sem te aperceberes de que te estás a esquecer de ti”, explica.

Ouça aqui entrevista em podcast.

Liliana Campos e a depressão. “Vivia numa ansiedade enorme, mesmo antes de a minha mãe estar doente, para que nada falhasse”

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Nessa pressão, viu-se confrontada com uma menopausa precoce. O sonho de ser mãe foi tão adiado que acabou por se tornar impossível. Numa entrevista inserida na série “Labirinto — Conversas sobre Saúde Mental“, uma iniciativa do Observador e da FLAD, conta que isso também teve impacto: “Eu sempre achei que ia ser mãe. Sabes quando pensamos que temos tempo? Não temos tempo.”

Da dor do luto à impossibilidade de ser mãe, a depressão foi um passo muito curto. Na conversa, gravada no hotel Pestana Palace, em Lisboa, Liliana Campos recorda todas as vezes em que foi aconselhada a tomar conta de si própria — mas não ouviu — e também do processo de cura. Seis anos depois da morte da mãe, sabe que ainda tem um caminho pela frente. “Já há uma parte de mim que apaziguou a dor, embora não seja sempre. Aqueles momentos ainda estão dentro de mim. Também não sei se alguma vez vão desaparecer.”

[Veja aqui a entrevista completa a Liliana Campos]

Há uma Liliana antes e uma Liliana depois da perda da mãe?
Há. E uma Liliana bem diferente. Com a perda da minha mãe, senti-me órfã. Nós usamos esta palavra muitas vezes ao longo da vida, mas só quando já não temos o pai e a mãe é que sentimos o que é realmente ser órfão. E ser órfão é contares só contigo. Aquelas pessoas que tu sabes que dariam a vida por ti — não que tu quisesses que dessem a vida por ti, mas que fariam tudo — já não estão cá. Tens amigos, tens marido, tens irmãos, mas pai e principalmente a mãe, quando partem, é um buraco. Quando a minha mãe partiu, ficou um buraco enorme, que eu tive de saber preencher. E que ainda estou nesse processo. A palavra órfão foi uma coisa muito triste.

É uma palavra muito pesada?
É muito pesada e é triste.

A orfandade é a solidão? Ficamos mais sós ou ficamos obrigados a ficar fortes?
Para mim foi a solidão. Mesmo com os melhores amigos, com uma família, primas, o meu irmão, mesmo tendo a minha sobrinha, foi o ficar só. Eu tinha uma relação com a minha mãe de sermos muito uma com a outra. Ligava à minha mãe — por incrível que pareça e na agitação da nossa vida — umas cinco ou seis vezes por dia. Ou, se eu não ligasse, ligava a mãe. Estava sempre com a minha mãe todo o tempo que podia. Mesmo nos trabalhos em que ia para fora, em que ficava fins de semana em trabalho, se houvesse alguma forma de levar a minha mãe comigo, eu levava-a. Não ia exatamente para os sítios das reportagens ou para as apresentações de eventos, mas ia comigo, ficava no hotel, depois eu terminava e no dia seguinte íamos passear. E contava-lhe tudo, tudo, tudo. Imagina: hoje terminava esta entrevista e a primeira coisa que fazia era telefonar à minha mãe. Nós estamos em televisão e sabemos a linguagem dos frames: um segundo divide-se em 25 frames. Passado este tempo todo, eu, por frames, ainda pego no telefone para lhe ligar.

Passados seis anos?
Passados, no fundo, dez. Porque a minha mãe teve um AVC e ficou completamente dependente. Claro que, nessa altura, já não ligava para partilhar esta coisas. Durante os primeiros tempos ainda conseguia falar ao telefone, mas depois já não era possível.

"Hoje em dia não faço um terço das coisas que tinha de fazer. E, se tivesse de fazer, não sei como é que conseguiria gerir a agenda. Porque estava sempre, desde a manhã até à noite, numa correria louca"
Liliana Campos, apresentadora

Portanto, passaram seis anos da partida da tua mãe e quatro em que foste uma das cuidadoras. Quando é que começaste a sentir que isso estava mexer com a tua saúde mental, com o teu equilíbrio?
Não senti logo, porque a correria, a espiral em que entras, de querer estar presente, de que nada falhe, é tanta que te esqueces de ti — mas sem te aperceberes de que te estás a esquecer de ti. Porque o que interessa naquela altura é que ali nada falhe. E há muita coisa que pode falhar. Se tu queres dar todo o conforto e que nada falhe, tens de continuar a trabalhar. E tens de continuar a sorrir e tens de continuar a tua vida, mas, entretanto, tens de ir ao médico pedir as receitas, tens de ir à Santa Casa comprar as fraldas, porque é mais barato. Tens de ir à Liga dos Amigos do Hospital comprar os proteicos, porque lá é mais barato. E quando eu digo mais barato, tu procuras sempre o mais barato porque é tudo muito caro. Eu acho que as pessoas não fazem a mínima ideia. Quando tens alguém acamado, completamente dependente, e que queres ter contigo em casa — e também se quiseres pôr num bom sitio — é muito caro. Tens de continuar a trabalhar e não tens dinheiro, não tens ninguém que te ajude, não tens dinheiro de família. A minha mãe não tinha reforma, portanto ficou também dependente de mim financeiramente. Isso foi um choque muito grande, perceber que praticamente todo o dinheiro que tu ganhas no teu ordenado é para ali.

Havia o choque emocional de lidar com uma pessoa que já não era a mãe que conhecias e havia essa pressão financeira. Não havia tempo para pensar em ti.
Não. Se queres que te diga, o trabalho era o meu refugio. Era onde eu era eu um bocadinho. Porque passas a estar num alerta. Tive muitos problema de sono, ainda tenho, porque o meu sono era de alerta: o pânico do telemóvel tocar. Mas durante aquelas horas em que estás ali a trabalhar e em que estás em direto ou a gravar, e que não tens o telemóvel ao pé, se calhar era o único tempo em que não estás dependente de uma chamada telefónica. Mas, mal faltava um minuto para acabar o que estava a fazer, era logo: “Onde está o telemóvel, que eu tenho de ir já ver!”. Estás com uma dependência terrível. Portanto, o trabalho nessa altura foi um refúgio e uma necessidade enorme de que tudo corresse bem. Porque aquele dinheiro era crucial para continuar a dar à minha mãe todo o conforto que ela merecia. E também, na altura, o meu irmão ficou desempregado. Eu acredito que as coisas não são por acaso. E acredito que o meu irmão ficou desempregado, a empresa dele entrou em insolvência e ele não recebeu indemnização nenhuma, mas para ele poder ficar em casa com a mãe. Porque outro dos problemas com que me deparei foi precisar de alguém que estivesse com a minha mãe durante o dia. Eu não tinha dinheiro para pagar a uma pessoa que estivesse durante a noite, portanto dividia com o meu irmão. Principalmente ele. Porque eu trabalhava à tarde, noite, e foi numa altura em que coincidiu com o divórcio dele e ele teve de voltar para a casa da minha mãe. Exatamente pouco antes de a minha mãe ter o AVC. Acho que tudo se conjugou para ele estar lá.

No meio das dificuldades, houve algumas coisas que não correram tão mal.
Na altura parecia que tudo estava a descambar. Foi muito difícil encontrar pessoas com currículos fantásticos, mas que, na prática, percebessem o que era importante para nós e, principalmente, para a minha mãe. Encontrei pessoas horríveis, más, e encontrei dois anjos que ficaram depois com a minha mãe até ao fim, a quem eu serei eternamente grata, porque a amavam. Aquilo não era um trabalho. Para muitas das outras pessoas, era quase como se fosse um papel que estava ali, que podia ficar em cima da secretária, e na segunda feira voltavam a pegar no trabalho. Não. E não podias faltar ao trabalho só porque sim. Porque quando tu faltavas ao trabalho havia uma pessoa que precisava de comer, dos medicamentos, da higiene, e eu, como estava a trabalhar, estava a contar com aquilo. E portanto, a partir de uma certa altura, eu e o meu irmão percebemos que um de nós tinha de estar sempre presente. E nunca largámos a minha mãe. Ou ele, ou eu. Mais ele, nessa parte de estar ali, e eu na logística toda de andar sempre para trás e para sempre com médicos, hospitais, exames, chamar isto, chamar aquilo, fazer… É tanta coisa que eu hoje em dia não sei como é que consegui. Porque hoje em dia não faço um terço das coisas que tinha de fazer. E, se tivesse de fazer, não sei como é que conseguiria gerir a agenda. Porque estava sempre, desde a manhã até à noite, numa correria louca.

E quem estava à tua volta não te alertou para isso? Começa a haver alguma sensibilidade para o papel do cuidador. Nunca ninguém te chamou a atenção para isso?
Não. Porque as pessoas acham “ela trabalha em televisão, ganha muito dinheiro, tem um marido que tem um resort nos Açores, portanto não precisa”. E as coisas  não são assim. Em televisão contam-se, provavelmente, pelos dedos das mãos aqueles que têm ordenados milionários. E depois nós temos muitas vantagens, sim — tive, e agradeço, oportunidades na vida de fazer coisas únicas. Mas o nosso ordenado é, talvez, um bocadinho acima da maior parte das pessoas, não são ordenados milionários. E eu, para poder ter a minha mãe com as condições que queria, tive de alugar a minha casa. Tive de vender outra casa, porque de repente fiquei sem os inquilinos e pensei “não vou ter dinheiro para aguentar a pagar mais esta renda”. Sou péssima em negócios, péssima, péssima. Nunca vi ninguém vender uma casa e ficar a perder dinheiro.

Aconteceu-te?
Aconteceu. Com o pânico de ter de ficar com aquela despesa — mais uma despesa —, quis tanto despachar aquilo que, hoje em dia, penso: “Meu Deus, que burra”. Mas eu não podia ter mais uma despesa a acrescentar. Porque eu tinha o meu irmão desempregado, a minha mãe naquelas condições, o meu irmão tem uma filha que é o meu amor maior, que é a minha Carolina. Portanto, o dinheiro estava todo destinado. Qualquer coisa que fugisse do meu controlo, ia ser um problema.

Entrevista com Liliana Campos, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 26 de Maio de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Liliana Campos admite que foi alertada pelos médicos para a necessidade de, como cuidadora da mãe, prestar atenção à sua própria saúde, mas não ouviu

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Ao mesmo tempo, estavas numa “corrida contra o tempo” — foi uma expressão tua. Estavas a tentar engravidar.
Não estava logo a tentar engravidar. Sabes quando pensamos que temos tempo? Não temos tempo. Aconselho todas as mulheres, todas as senhoras, a fazerem, pelo menos, uma coisa para a qual eu gostaria que me tivessem alertado, que é a congelar os óvulos, a partir de uma determinada idade. Eu achei sempre que ia ser mãe. Tenho um instinto maternal muito forte, gosto muito de crianças. E achei sempre que ia ser mãe. Mas, das relações que tinha tido, não tinha encontrado aquela pessoa que achava que era o pai ideal para os meus filhos. Sempre fui muito de pensar. Se calhar, se não tivesse pensado tanto, as coisas tinham sido de outra forma. Entretanto, eu e o Rodrigo [Herédia] apaixonámo-nos e encontrei o pai para os meus filhos. O Rodrigo já tinha dois filhos, mas também queria ter um comigo. Eu estava com 40 anos, tudo bem, hoje em dia as mulheres são mães mais tarde. E estávamos a viver um momento mesmo feliz, de muita paixão, muita cumplicidade. O Rodrigo conheceu a minha mãe num sábado. E, no sábado do fim de semana a seguir, conheci os pais dele. E no domingo a minha mãe teve o AVC. E aí disseram-me que era grave, mas, como a recuperação naqueles primeiros tempos foi muito boa, nunca  percebi que era tão grave. Naqueles primeiros tempos, eu não sabia bem. Vamos viver juntos, alugas a tua casa… ainda bem que assim foi, porque aquele dinheiro do aluguer da casa foi muito importante para tudo o resto. E eu pensei: “Se calhar agora não é mesmo a melhor altura [para engravidar], se calhar espero mais um ano”. Só que a minha mãe piorava todos os dias um bocadinho. Dizem que há formas de cuidar quando a pessoa está acamada, de tratar, e eu tive boas enfermeiras, que me explicaram, mas o meu cérebro fez um reset a tudo aquilo que me explicavam. Eu fazia tudo com força, à base da força. Mas não, é à base do jeito. E o meu irmão soube fazê-lo à base do jeito. Para mim era muito extenuante. Eu saía cheia de lesões nas costas ou nos braços.

Fisicamente era mesmo muito exigente?
Era. E a minha mãe preferia o meu irmão, porque ela sabia, sentia, que eu stressava muito com aquilo, com medo de a magoar, de a tentar proteger ao máximo. Fazia uma força completamente desnecessária. Mas eu não aprendi, hoje em dia não sei e também não quero saber como se faz. Mas tivemos momentos em que eu me assustei. Uma vez estava a tentar virá-la. Tive de agarrar nela e, de repente, caímos as duas. E eu fiquei por baixo — só estávamos as duas em casa — e comecei a rir, a disfarçar. A minha mãe tinha ausências, mas também tinha momentos presentes. Também se começou a rir. Era muito magrinha, sempre foi, e com a doença ficou mais ainda, mas pesava muito, porque fica um peso morto. Tive aquele momento de pânico, de “como é que eu vou tirar a minha mãe de cima de mim, e depois como é que eu a ponho na cama?” Lá conseguimos, mas fiquei fisicamente exausta. O importante era não passar o stress para a minha mãe. Depois, até consegui agarrá-la e disse-lhe: “Olha, já não danças há tanto tempo, vamos lá!”. Foi assim uma coisa meia estranha, mas, quando a vi deitada na cama novamente, foi uma sensação de “consegui”. Mas isto para dizer que, fisicamente, pensei: “Não posso engravidar porque tenho de fazer isto”. Claro que podia ter engravidado. Claro que podia, porque o meu irmão estaria lá, as outras pessoas estariam lá. Mas é estar a adiar.

É o não se pôr em primeiro lugar.
Quando digo que podia ter engravidado, na verdade eu não sabia se depois ia ter dificuldade ou não em engravidar. Mas ideia é que, se estivesse tudo bem, podia ter começado a tentar muito antes e podia ou não ter acontecido. Mas é sempre a pensar no positivo. E se não pudesse pegar na minha mãe, havia quem me ajudasse. Só que eu também sempre tive a mania de que eu é que sei fazer as coisas. E esta conversa que eu tenho hoje em dia, de que o meu irmão sabia fazer melhor, isso foi mais tarde que eu constatei. Porque eu tinha de estar lá. Isso foi outra das coisas que faria diferente. Tive, muito cedo, de tomar decisões difíceis, porque perdi o meu pai muito cedo, com 24 anos. Fiquei eu a gerir uma casa, porque a minha mãe nunca tinha trabalhado, o meu irmão ainda estava a estudar e eu tive essas responsabilidades. Então comecei a decidir coisas que nem sabia o que estava a decidir. É por aqui ou é por ali? É para ir por aqui, porque eu estou a dizer que é para ir por aqui. Eu estou  falar, imagina, de comprar uma casa. Nunca tive ninguém que me elucidasse exatamente sobre o que é melhor, o spread, sei lá… foram sempre conselhos do senhor do banco, que, se calhar, estava a dizer-me aquilo que era melhor para ele. Não tive um pai. E a minha mãe também não percebia nada dessas coisas. Eu é que decidia. Uma vez tive uma conversa com um médico. Perguntavas se me alertaram? Alertaram. Os médicos alertaram. Que eu não podia deixar de viver a minha vida e que era importante não deixar passar a vida ao lado.

"Era um massacre para mim ir ao hospital fazer aquilo, era um massacre para mim estar a dar as injeções à noite, porque já estava tão traumatizada com todos os tratamentos que tínhamos de fazer à minha mãe. De repente, a casa transformou-se num hospital"
Liliana Campos, apresentadora

Mas não ouviste?
Não, não ouvi. Mas houve uma neurologista a quem eu perguntei. As pessoas diziam-me: “Tu és muito chata com a mãe, deixa-a”. E eu perguntei ao médico e ele disse que tem de haver sempre uma chata de serviço. Para comer, para beber, para se sentar, para mudar a posição. E eu, aí, era muito rigorosa: se é hora de comer, vai comer e vai comer isto tudo, pelo menos isto tem de comer. E ficava horas ali, até aquilo ser comido. Se é para beber, tem de beber o litro de água por dia. Enquanto não bebia aquele copo de água das 11h da manhã, eu não saía dali. Tinha de estar sempre presente em tudo.

E foste abdicando daquilo que eram os teus projetos pessoais?
Mas não percebi que estava a abdicar.

Quando é que percebes?
Percebo quando, a nível da minha relação com o Rodrigo, começaram a dizer: “Vê lá…”. O que é que acontecia? Ao fim de semana, nós não tínhamos lá ninguém. Ao sábado ficava o meu irmão, ao domingo era eu. Ou então, se havia alguma coisa, trocávamos. Se o Sporting jogava, o meu irmão queria ir ao jogo e então estava eu. A minha mãe nunca ficou sozinha um minuto fosse.

Mas não tinhas tempo para ti e nem para a tua vida pessoal.
Nem para a minha relação. E descuidei-me muito aí. Apesar de não me ter apercebido de nada disso. Para mim, isso era secundário. E, se me apercebesse, era para dizer: “Quero lá saber disso, o que me interessa agora é o meu foco”. Quando tinha, muitas vezes, de me levantar para ir lá ao domingo, que eu sabia que era mais difícil, não ia com o maior prazer do mundo. Tinha de ir. Depois de lá chegar, claro, via a minha mãe. A minha mãe era a pessoa mais serena e ternurenta que possas imaginar. Os próprios médicos diziam que a serenidade que a minha mãe tinha ajudou muito, para que deixasse ser cuidada. Nunca houve uma revolta, nunca houve um porquê, e achou sempre que ia melhorar. Isso também passava para nós, porque eu também dava por mim a achar que as coisas iam melhorar. E, quando melhorassem, eu ia ser mãe e ia ser muito feliz. E ia ser muito feliz porque ia ser mãe.

Entretanto, o que começaste a sentir?
Comecei a ter falhas no período menstrual. Quando estava cá, nesta azáfama toda, tinha falhas. Depois, quando conseguia fazer férias, uma semana, 15 dias — porque tinha uma prima, a quem sou muito grata, que ficava com o meu irmão a ajudar a minha mãe —, ficava descansada. Se descansasse um bocadinho, esse mês já voltava a ser regular.

E por isso achavas que tinha a ver com stress, com o teu ritmo?
Completamente.

E não era?
Uma parte pode ter sido. Foi o que os médicos disseram. Porque depois, quando soube que estava com uma menopausa precoce, também me disseram que era devido ao stress que estava a viver naquela altura. Quando a médica me diz isso, a minha ginecologista — “é provável que esteja aqui com uma menopausa” —, quando eu ouvi aquela palavra…

"Achei que não tinha tempo para nada. Só que não podemos achar que não temos tempo para nada. Porque, quando estamos mal, não podemos ajudar as outras pessoas como queremos. Portanto, não é ser egoísta, mas é priorizares-te um bocadinho e dizer: "Não, pelo menos estas duas horas ou três horas por semana são minhas. E vou usá-las desta forma a fazer coisas que eu sei que me fazem bem""

Que idade tinhas?
Tinha 43. Ia fazer 44. Sou péssima com esta coisa dos anos. Como foi uma época tão dura, acho que, como fiz o reset de não saber cuidar da minha mãe, também fiz aos números, não consigo situar-me bem. Mas, nessa altura, a médica alertou-me e disse-me: “Se calhar devia pensar aqui num tratamento de fertilização, se quer ser mãe”. E eu: “Agora fertilização? Médicos? Hospitais?”. Eu não saía do hospital com a minha mãe. E então fui a um médico, o Dr. Luís Vicente, que é um excelente especialista. Na altura, ainda tinha óvulos, ainda fazia ovulação, e comecei a tomar umas injeções para acelerar a ovulação. Só que tinha de ir ao hospital praticamente dia sim, dia não, fazer uma ecografia. Além das injeções que eu dava a mim mesma, fazia uma ecografia para ver se o óvulo estava descer, a descolar, e pensei: “Não tenho vida para isto, não posso, nesta fase, ainda vir mais eu para o hospital, sozinha”. Mas fiz isso durante meses. E, de repente, a minha mãe piora e eu penso que aquele tempo me era precioso. Desisti. Porque se aquele tratamento não desse, havia outros, vários. Mas eu não tinha tempo. Era um massacre para mim ir ao hospital fazer aquilo, era um massacre para mim estar a dar as injeções à noite, porque já estava tão traumatizada com todos os tratamentos que tínhamos de fazer à minha mãe. De repente, a casa transformou-se num hospital. Um hospital mesmo, com a ajuda dos médicos do hospital Garcia da Orta, a quem eu sou muito grata. Também foi uma experiência para eles. Mais tarde falei com o Dr. Tiago, e para eles também foi ver até que ponto era bom não terem as pessoas nos cuidados continuados, se a família quisesse ter o doente em casa. Ver como é que conseguiam ou não, com a ajuda deles e dos enfermeiros. Qualquer problema que houvesse, nós podíamos ligar a qualquer hora que vinha um enfermeiro. A partir de uma determinada altura, estávamos sempre com atenção. Se estava a receber soro, nós tínhamos sempre de estar a controlar. Por exemplo, medir os níveis da coagulação do sangue. Nós de repente, já éramos um bocadinho médicos. Eu e o meu irmão já tínhamos de tomar, por vezes, decisões difíceis. A minha mãe tomava o Varfin. Qualquer coisa como uma salada pode mudar a coagulação do sangue. Fazíamos as análises e aquilo tinha de estar entre o 2 e o 3. Então, já sabíamos que, se ultrapassasse, tínhamos de diminuir ou então tínhamos de aumentar um bocadinho a dose. E havia alturas em que nós já fazíamos os dois, sem perguntar ao médico. Já discutíamos com base na nossa experiência anterior.

Portanto, não havia espaço para pensar em mais nada?
Não havia.

E passou o tempo?
E passou o tempo. Na altura, quando a minha mãe partiu, a minha ginecologista aconselhou-me a ir à Dra. Ana Peixinho, que é uma psiquiatra. Ela percebeu que eu já não estava bem.

Não era só um processo de luto agravado com este confronto de uma provável impossibilidade de ser mãe. Já havia mais sinais?
Provavelmente, com a experiência dela, a doutora percebeu o meu desgaste físico, porque eu estava muito magra. Embora eu me obrigasse a comer, porque sabia que tinha de andar, por muito que me apetecesse ficar na cama. Nunca tive aqueles sintomas de “não me vou levantar”. Não podia. E sabes que, em relação a este tipo de sintomas, eu achava que isto era um luxo. Era daquelas pessoas que, como perdi o meu pai nova e tive de ir para a frente, achava que quem tinha depressões era quem tinha tempo para ter depressões. Eu não me podia dar a esse luxo de agora pensar que vou ter uma depressão. E, na verdade, também pensava que era uma coisa para pessoas mais fracas. Esta é a realidade. Depois, quando fui confrontada com o diagnóstico de uma depressão, tive de pensar e repensar muita coisa na minha vida. E, hoje em dia, fala-se muito mais da saúde mental e muitas pessoas conhecidas o assumem para que as outras se revejam e percebam  “não sou só eu”. Eu não posso dizer que achava que lidava bem. Para mim, as doenças mentais eram algo que eu nem tinha parado para pensar bem sobre o que era, o que estava a sentir uma pessoa com depressão e de que forma é que podia estar a ser afetada. Sabia que, tudo bem, é grave, mas, se a pessoa quiser, não vai ficar na cama. Tem de se levantar, tem de ir, tem de fazer, tem de fazer as coisas acontecerem. Claro que, se ficar na cama, nada vai mudar.

Quando é que és confrontada com esse diagnóstico?
A Dra. Ana Peixinho acompanha muitas mulheres na menopausa e na depressão pós parto. E gostei logo muito dela, o que também é muito importante. Quando és confrontada com um diagnóstico destes, é importante que tenhas alguma empatia com a pessoa que to está a dizer. Ela disse-me e eu acreditei. Se calhar, uma Liliana de há dois ou três anos antes disso era capaz de dizer “pronto, agora a depressão e a doença dos nervos serve para tudo”, aquelas frases feitas que tu lês…

  • Entrevista com Liliana Campos, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 26 de Maio de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
    A entrevista foi gravada no hotel Pestana Palace, em Lisboa
    FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
  • Entrevista com Liliana Campos, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 26 de Maio de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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  • Entrevista com Liliana Campos, apresentadora, a propósito do tema da saúde mental, no hotel Pestana Palace. Lisboa, 26 de Maio de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR
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Ali acreditaste?
Acreditei, e acreditei que tinha de começar a tratar de mim.

E isso foi o quê, tratar de ti?
Tratar de mim era, para começar, com medicação para dormir. Porque fiz o disparate de me automedicar para dormir com os medicamentos da minha mãe. Aquele rol de coisas que não podes fazer, eu fiz. Automediquei-me com comprimidos que não eram para mim — “eu não durmo, se a minha mãe dorme tão bem com isto, deixa-me cá tomar isto para ver se durmo umas horas”. E, de repente, estava viciada naqueles comprimidos para dormir. Portanto, foi trabalhar isto em conjunto com a médica. Estava viciada e nem dormia as horas necessárias. Já pensava na minha cabeça “se não tenho aquilo, não vou dormir”. Depois foi importante para mim conseguir dormir, porque eu achava que ia dar em maluca. E foi começar a trabalhar a dor. Tive a ajuda da Dra. Ana Peixinho, mas também já tinha tido uma perda muito importante na minha vida, que foi a minha tia São, que foi uma segunda mãe para mim. Também acompanhei a doença dela, morreu com um cancro nos pulmões. E também tinha tido esse período muito difícil, era a irmã da minha mãe, a mais velha, a matriarca da família, que viveu sempre connosco. Eu tinha de estar ao lado dela. Nessa altura, comecei a fazer reiki, comecei a fazer terapias complementares. E senti uma grande ajuda. Depois, deixei isso tudo. O que deveria ter feito era ter arranjado tempo para mim, uma hora por semana. Porque eu sabia as vantagens que o reiki e a meditação tinham, já tinha passado por um período difícil e tinha percebido o quão tinha sido importante para me ajudar, mas achei que não tinha tempo para nada. Só que não podemos achar que não temos tempo para nada. Porque, quando estamos mal, não podemos ajudar as outras pessoas como queremos. Portanto, não é ser egoísta, mas é priorizares-te um bocadinho e dizer: “Não, pelo menos estas duas horas ou três horas por semana são minhas. E vou usá-las desta forma a fazer coisas que eu sei que me fazem bem”. Se teria capacidade, com a agitação interna com que eu estava, para parar para meditar, provavelmente não. Mas não devemos desistir. Não consegues naquele dia, consegues no outro. Se não conseguires, ficas ali aquele bocadinho contigo. Devia ter-me dado esse espaço e esse tempo.

"Não podia guardar dentro de mim as memórias que estavam, tive de as substituir. Aquela dor toda daqueles quatro anos. Fechava os olhos e só via dor, só via sofrimento, só via aquelas feridas. Então tive de fazer este trabalho — ainda estou a fazê-lo — de substituir estas imagens pelas imagens dos momentos felizes"

E não deste. Só depois dessa primeira consulta.
Não foi logo na primeira consulta, não. Porque, quando a minha mãe partiu, eu que queria tempo, pois tinha todo o tempo, não sabia o que é que havia de fazer com ele. Esse buraco enorme. Eu, que tinha tempo para ficar a descansar, para ficar na ronha, a ver séries ou a ver um filme, não queria ver nada, não conseguia. Só chorava. Aliás, chorei muito durante a doença da minha mãe. E acho que me fez bem. Dizem que é bom deixar sair tudo o que está cá dentro, mas eu própria já não me aguentava, sempre a chorar. Durante aquele tempo que se seguiu, não era fácil para as pessoas que estavam comigo. Para o Rodrigo não era fácil, porque eu não queria fazer nada. E aí sim, estás com uma depressão.

Foi o teu pior momento?
Sim, a seguir à partida da minha mãe. Quando ela partiu, eu própria já pedia a Deus para a levar, porque o sofrimento em que estava já era muito. Porque depois começaram a abrir as escaras e isso é das coisas mais horríveis e mais terríveis que podes ver numa pessoa que amas. Vês a carne a rasgar como se fosse papel. E com isso eu não conseguia lidar. Estava a tratar dela e chorava, chorava, chorava. Acho que a minha mãe já não percebia, mas percebia — porque as mães percebem sempre tudo, não é? E aí, eu que sou católica e sou praticante, já pedia a Deus para a levar. Tive muita fé sempre e ajudou-me muito a fé que eu tive. Claro que desistir não era opção.

Mas foi importante para continuar com a mesma determinação.
Sim, o ritmo foi sempre o mesmo, até uma semana depois de a minha mãe ter partido. Depois disso eu quis ir agradecer a todos os médicos. A minha mãe partiu dia 3 de janeiro. Esse Natal foi horrível e o Natal nunca mais voltou a ser para mim aquilo que era, que era uma alegria e era uma festa fantástica, de família, de partilha, porque nós somos católicos. O Natal era a celebração do nascimento de Jesus e era uma festa de três dias, tipo casamento cigano, vinham os primos… E a minha mãe ainda era o elemento agregador dessa festa. Mas o último Natal foi tão triste, tão triste, já a minha mãe estava mesmo muito doente. Isso é uma das coisas que eu ainda trabalho, é conseguir voltar a viver um Natal como eu sei, como fui ensinada e como sei que a minha mãe deseja que volte a ser. Quando digo o Natal, há outros momentos que ainda são muito duros. Mas o Natal, porque a vi sofrer muito, fui-me muito abaixo. Também porque pude ir abaixo, porque a família veio. E, então, como eu tenho uma prima que foi criada pela minha mãe, que é enfermeira, vive em Santo André, mas que estava lá nesses dias, senti que podia ir abaixo. E há uma coisa que aconteceu. Como te disse, eu ou o meu irmão estávamos sempre presentes. E na noite em que a minha mãe partiu, nem um nem outro estava. Não sei se isto para as pessoas é estranho, mas eu acho que a minha mãe esperou que nós não estivéssemos para partir. Porque nós, de uma forma egoísta, prendiamo-la ali connosco. E, nesse dia, como estavam as minhas primas, o meu irmão tinha ido ao futebol — que era a única coisa que ele fazia — e eu tinha ido passar uns dias fora com o Rodrigo, mesmo controlando tudo através do telefone. A minha mãe esteve sempre em casa, mas já estava muito mal e, três dias antes, teve de ir para os cuidados continuados. E, na verdade, eu acho que ela também não quis partir em casa, para não ficar essa memória. Mas passaram-se seis anos e, quando a minha mãe partiu, eu quis mudar a casa toda por causa do meu irmão e da minha sobrinha. Casa toda, dentro dos limites: as almofadas, pintar, mudar o quarto da minha mãe. E depois nunca mais consegui entrar lá. Nem hoje. É outra coisa que tenho de resolver em mim, porque eles vivem lá, eu no inicio tratei de tudo. Não sabia, mas era para não ir lá tão cedo. Entretanto, já se passaram seis anos e sei que tenho de ir lá agora. Uma sobrinha e um homem a tomar conta daquilo, apesar da pessoa que vai lá a casa limpar ser das  em quem eu mais confio neste mundo… preciso de ir lá eu, tratar até das coisas da minha mãe.

  • Liliana Campos falou pela primeira vez com maior detalhe sobre a luta contra a depressão através das redes sociais

Portanto, ainda estás num processo muito profundo e doloroso. Ainda tens muitas coisas para resolver nesta altura, mesmo com um caminho já percorrido.
Disse que ficou um buraco enorme. Quando fechava o olhos, só via sofrimento. E a minha mãe não era sofrimento. A minha mãe era amor. A minha mãe é amor. Não podia guardar dentro de mim as memórias que estavam, tive de as substituir. Aquela dor toda daqueles quatro anos. Fechava os olhos e só via dor, só via sofrimento, só via aquelas feridas. Então tive de fazer este trabalho — ainda estou a fazê-lo — de substituir estas imagens pelas imagens dos momentos felizes. Da minha mãe connosco feliz, a cantar. Ela gostava muito de cantar e cantava muito bem. Adorava ópera. Eu, na altura, achava ópera uma seca. Até tinha vergonha quando iam os meus amigos lá a casa e a minha mãe estava a ouvir ópera. De repente, dou por mim, ainda a minha mãe estava bem,  a ir à ópera com ela, porque ela gostava. Não era porque eu gostasse. E hoje dou por mim a gostar de ópera. Porque acho que estou mais perto dela quando ouço ópera. E lamento imenso não ter falado mais com ela sobre árias de ópera para ela me dizer o que sentia, para poder comparar. Oura coisa: eu nunca gostei de azul escuro. Isto é ridículo lá para casa, mas são coisas. A minha mãe adorava azul escuro. O branco e o azul escuro eram as cores preferidas dela. E eu achava o azul escuro uma cor muito beta. A minha mãe dizia-me assim: “Ah, fica-te tão bem, o azul é o pó de arroz das morenas”. Quer dizer que todas as morenas com azul  ficam bem e eu dei por mim a começar a comprar peças azuis escuras. Primeiro pijamas e hoje em dia tenho muita roupa azul escura, porque eu sei que, onde ela está, está feliz de me ver de azul escuro. Hoje não vim de azul escuro, mas está feliz e já gosto de me ver de azul escuro.

O teu processo de superação da depressão é uma reconciliação com as memórias da tua mãe. É uma forma de te aproximares dela e é assim que vais sair daqui?
Eu experimentei uma terapia alternativa, complementar, que se chama Constelações Familiares. Ajuda-te a perceber qual é o teu papel. Ninguém te diz nada, tu é que chegas lá e o porquê. Tive muitos porquês. Porque é que eu não fui mãe? Porque é que Deus não quis que eu fosse mãe? Porque é que a minha mãe, que é só a melhor pessoa que eu conheci no mundo e que toda a gente diz a mesma coisa, teve de sofrer tanto? Porque é que, quando eu encontrei o Rodrigo e queria tanto ter vivido o início desta relação de uma forma plena, não tive essa oportunidade? Porque é que eu não consegui construir, no início, aquela relação que era preciso com ele, com os filhos dele? Porque é que tudo me aconteceu? Mas depois, as coisas têm um propósito.

Já encontraste respostas para esses porquês?
Para todas, não. Nem acho que alguma vez vou encontrar. Mas já há uma parte de mim que apaziguou a dor. Já consegui fechar os olhos e ver a minha mãe como ela era, embora não seja sempre. Aqueles momentos ainda estão dentro de mim. Também não sei se alguma vez vão desaparecer. Porque fazem parte da minha vivência, fazem parte do pior período da minha vida. Mas, além de ter as consultas com a psicóloga, também encontrei muita ajuda nestas terapias complementares. E pensava: “Eu estou a ocupar o tempo, porque, de repente, já tenho de ir aqui, já tenho de ir à psicóloga, já tenho de ir à Joana” — que era a minha terapeuta das constelações. “Já vou fazer reiki, já vou fazer meditação. Já estou a ocupar o meu tempo.” E isso ajudou-me muito.

"Tinha essa necessidade de ser forte. Vivia numa ansiedade enorme, mesmo antes de a minha mãe estar doente, para que nada falhasse. Isso ajudou-me, numa determinada altura, mas também sinto que, se não tivesse a mania de que era forte, se calhar podia ter deixado que tomassem um bocadinho mais conta de mim. E não deixei, nem liguei nenhuma àquilo que os médicos diziam"

Ainda tomas medicação para dormir?
Para dormir, sim, é a única. A nível da medicação que tomei para a depressão, não estive muito tempo. Fiz o desmame rapidamente. Para dormir já não estou com aquela medicação forte, já consigo, muitas vezes, à base de coisas naturais, mas tenho de ter comigo medicamentos mais fortes, que eu não consigo perceber porquê, porque entretanto já estive em clínicas do sono, a passar lá noites toda ligada, para conseguirem perceber o que é que ainda mexe com o meu sono. Porque não é a dormir, eu não tenho insónias, não acordo a meio da noite. Tenho muita dificuldade em adormecer. Mas, aí, a parte hormonal, que tem a ver com a menopausa, também teve muita influência. Foi tudo.

Essa Liliana mais só será, apesar de tudo, seis anos depois, uma Liliana mais forte, que se conhece melhor?
Que se conhece melhor, sim. Mais forte, depende daquilo que nós temos como forte. Já não quero ser forte. Já fui forte e não foi o melhor. Já não quero forte.

Então agora queres ser o quê?
Quero só ser. Tinha essa necessidade de ser forte. Para tomar conta da minha mãe, do meu irmão, para provar que era capaz, para que nada falhasse. Vivia numa ansiedade enorme, mesmo antes de a minha mãe estar doente, para que nada falhasse. Isso também tem muito a ver com a tua forma de ser. Há pessoas que não são assim. E de cumprir, cumprir, cumprir. Não vacilar. Isso ajudou-me, numa determinada altura, mas também sinto que, se não tivesse a mania de que era forte, se calhar podia ter deixado que tomassem um bocadinho mais conta de mim. E não deixei, nem liguei nenhuma àquilo que os médicos diziam. E não deixei que as pessoas se aproximassem para dizer qualquer coisa: “Vocês não fazem a mínima ideia, não imaginam, portanto nem quero saber do que estão a dizer”. Hoje em dia, porque tenho falado com pessoas que são cuidadoras, a primeira coisa que digo é para cuidarem delas também. Para não se deixarem sugar por essa espiral em que se entra. E que é muito fácil entrar. O difícil é sempre depois sair. É o conselho que eu sempre dou. Embora saiba que, muitas vezes ,não é possível, porque a preocupação é tanta e não há ajudas. Não há ajudas, neste país, para os cuidadores. E por isso é que nós vemos os nossos velhotes muito mal tratados. Eu muitas vezes estava com a minha mãe no hospital —  podia estar com ela — e via os senhores e as senhoras de manhã, naquelas consultas muito cedo, a subirem aquela rampa, e só me apetecia ajudar todos. E hoje em dia, se me saísse o Euromilhões — não me vai sair porque eu não jogo, mas se eu fosse rica —, há muitas pessoas que precisavam. As crianças, os animais, mas eu lidei de perto durante muitos anos com as pessoas, com os velhotes. Velhote é uma palavra de que eu gosto muito. Para mim um velho não é uma coisa desinteressante. Para mim, velhote é sabedoria. E vi tanta necessidade. A minha mãe às vezes ficava internada. Uma senhora ao pé dela fingia que estava pior para o médico não lhe dar alta. Não queria ir para casa. E vi outros que ligavam 500 vezes para os filhos, para os irem buscar, e não iam. E vi outros que os filhos não tinham como os ter. E tinham de os colocar em lares sem condições nenhumas. Há de tudo. E nós agora vivemos mais anos e não nos preocupamos com a qualidade de vida que vamos ter. Tu vês as pensões miseráveis que existem e no nosso tempo vai ser pior, da forma como está a segurança social. E vamos viver mais com menos qualidade de vida. E isso para mim é muito assustador, porque eu estive em contacto com esta realidade muito tempo. Durante a pandemia, fiz voluntariado com velhotes, através da paroquia. E convivo muito com eles, chatos, a quererem fazer as coisas à maneira deles. Havia aqueles do género “não me importo de morrer, se morrer, morri, já não estou cá a fazer nada!”. E eu dizia “está bem, mas depois é a forma como morre, é que não vai poder ter os seus filhos, não vai conseguir respirar”, para lhes meter medo. E depois tinhas aqueles que tinham tanto medo, tanto medo, que mal respiravam. Não senti que era a pessoa indicada. Podia fazer-lhes os recados. Eles não podiam vir à rua durante o primeiro confinamento. Quando digo “chato” é porque eu ia ao supermercado às compras — e eu detesto, detesto, mas, como eles precisavam, eu ia. E então dizia a Dona Antónia (não era Antónia, mas não vou dizer o nome das pessoas):

— Não tem aqui o detergente que eu disse que queria.
— Ah, menina, então tem de ir a outro lado!
— Mas eu não posso ir a outro lado! Tenho de levar outro dos que está aqui!

São coisas destas. Mas depois, quando estava a conversar com eles, eram de um carinho e de uma sabedoria enormes. Quando me pediram para fazer mais um mês, eu pensava que não aguentava, mas depois aquilo que trazes é tão maior do que aquilo que dás que valeu a pena. Eu optei por estar a fazer voluntariado com as pessoas mais velhotas. Porque acho que elas precisam mesmo de muito apoio. E os cuidadores… Saiu esta lei, mas são muito poucos aqueles que usufruem. Porque são tantos os requisitos e tanta a burocracia, que a maior parte das pessoas desiste de recorrer.

E passaste na pele por essa experiência na primeira pessoa, percebes as dificuldades.
É preciso mudar muita coisa. Mas há uma coisa que lá em casa não sabem e que eu descobri. Há uma lei que, para o cuidador poder descansar, durante um mês, há um sítio onde a pessoa que é cuidada pode ficar. Porque a lei reconhece que é necessário o cuidador descansar. Isto porque houve uma altura em que a minha mãe precisou de ir para os cuidados continuados e não havia vagas, nem a pagar. Estava tudo cheio. Mas lá alguém se lembrou: “Se vocês disserem que o seu irmão quer ir de férias e precisa urgentemente a nível de saúde mental, nós conseguimos arranjar um sítio para a sua mãe ficar”. E foi assim que a minha mãe conseguiu ir para os cuidados continuados naqueles últimos dias. Eu também desconhecia que existia esta lei.

Agradecimentos: Pestana Hotel Group

“Labirinto – Conversas sobre Saúde Mental” é uma série de entrevistas do Observador em parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Em cada conversa, os convidados — figuras públicas de várias áreas, da política ao entretenimento — fazem um relato pessoal e detalhado da forma como lidaram ou lidam ainda com problemas de saúde mental — os sintomas, os tratamentos, as recaídas e a recuperação — num esforço para combater o estigma associado a este tipo de doenças.

Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.

Uma parceria com:

Fundação Luso-Americana Para o Desenvolvimento Hospital da Luz

Com a colaboração de:

Ordem dos Médicos Ordem dos Psicólogos

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