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Aos 30 minutos de conversa, João Gouveia, médico no Hospital de Santa Maria acabado de chegar a casa depois de mais um turno no serviço de cuidados intensivos, interrompeu uma pergunta, que fazia justamente referência à duração da entrevista em curso. “Quer dizer que neste momento, com os últimos números, já morreram cinco pessoas com Covid”, atirou com aquele ar desconsolado e triste de quem está à beira da catástrofe — e tem noção disso.
[Pode ouvir aqui a entrevista a João Gouveia, no programa Saúde no Limite, novo podcast da Rádio Observador]
Por muito que ao longo dos últimos dez meses tudo tenha feito para aumentar a capacidade das unidades de cuidados intensivos no país — para além de intensivista no maior hospital português, é presidente da Sociedade Portuguesa de Cuidados Intensivos e está também à frente da Comissão de Acompanhamento da Resposta Nacional em Medicina Intensiva para a Covid-19 —, João Gouveia sabe que a mais recente vaga da pandemia está a consumir todos os recursos existentes e que o limite está cada vez mais próximo de ser atingido, agora que hospitais e médicos já estão a operar sob a “política da cama quente” e que os doentes chegam cada vez mais tarde e em estado cada vez mais grave às UCI.
Diz que está farto, cansado, preocupado e frustrado. Mas, apesar de antecipar cenários de catástrofe, em que a medicina a praticar vai ter de passar a privilegiar o bem comunitário, em vez de o individual, João Gouveia, 51 anos, feitos em novembro, também demonstra a resiliência própria de quem convive com a morte numa base regular — e prefere fixar-se nos “bons momentos”. Se o confinamento for cumprido à risca, diz, não tem de estar tudo perdido.
O que podia ajudar ainda mais? A “solidariedade” dos colegas médicos de outras especialidades, que desafia a voluntariarem-se para tratar os doentes Covid que inundam as enfermarias dos hospitais de todo o país — porque ventiladores em número suficiente existem e camas também não são problema de maior, o que falta mesmo são profissionais de saúde. “Podemos ter médicos de outras especialidades a tratar doentes nas enfermarias, nomeadamente ortopedistas ou oftalmologistas a tratar doentes de medicina interna. São médicos. Mesmo que possam não fazer um trabalho médico muito diferenciado, podem ajudar a fazer trabalho de enfermagem, e acho que isso é essencial.”
Há alguns dias que ouvimos que os internamentos, nomeadamente em unidades de cuidados intensivos, estão perto do limite. Que limite é esse exatamente? Existe um número? Até onde é que podemos ir?
Existe um número mas todos os dias estamos a conseguir aumentar esse número e torná-lo mais distante. O limite provavelmente máximo em medicina intensiva deverá acabar por rondar as 1.150, 1.200 camas de medicina intensiva, para todos os doentes, Covid e não Covid.
Tendo em conta que esta sexta-feira chegámos aos 715 doentes internados em cuidados intensivos só com Covid-19, qual será o panorama?
O panorama é mau, neste momento estamos acima dos 80% na região Norte, muito perto dos 94%, 95% de taxa de ocupação na região de Lisboa e Vale do Tejo, e sempre muito perto de esgotar essa capacidade.
Quando — ou se — chegarmos ao limite o que é que vai acontecer? Qual é o pior cenário possível?
Temos ainda alguma capacidade de expansão, que estamos a tentar concretizar ainda esta semana. Ao fim dessa expansão vamos ter eventualmente, se houver possibilidade, de tratar doentes em sítios onde não é habitual — para além daqueles onde já estamos a trabalhar. Depois, finda toda essa capacidade, aí vai ser a autêntica medicina de catástrofe. Mesmo antes lá chegar, provavelmente teremos de adotar outro sistema de triagem. Terá de haver uma declaração nacional, ou regional, de estado de catástrofe, e terá de haver uma mudança do sistema de triagem normal — individual, para o bem de cada um dos doentes —, para um sistema de triagem de catástrofe, em que o que se pretende é o bem comunitário, ou da sociedade. Aí, quem vai ser triado não é aquele doente que necessita de medicina intensiva e que está mais grave, mas sim aquele que necessita de medicina intensiva e tem maior probabilidade de sobrevida.
Ou seja, é aquele temível momento, de que ouvimos falar há meses, em que os médicos têm de começar a escolher quem tratar?
Sim… Não é escolher quem tratar, porque quem não tiver acesso a medicina intensiva não deixa de ser tratado, não tem é o melhor tratamento e pode não ter a acesso a tratamentos que lhe podem garantir a vida.
Em outubro — já lá vão três meses — já tinha avisado que ou as equipas de saúde eram reforçadas ou o País voltava a confinar ou ia morrer mais gente. Como é que chegámos aqui?
Acho que há várias explicações para termos chegado aqui. Neste momento sabemos que temos a nova variante em circulação, são 13%, na melhor das hipóteses, mas que rapidamente poderá ser a variante dominante chegando aos 60%, no final do mês — e como sabemos tem uma facilidade de transmissão muito maior. Depois acho que as pessoas, individualmente, também baixaram demasiado a guarda. Todos nós estamos fartos da pandemia, todos estamos fartos das restrições, todos queremos estar com a nossa família, os nossos amigos, e ter os nossos momentos de descontração, mas acho que, como um todo, abusámos. E isso é uma fatura que infelizmente se vai pagar muito caro em termos de vidas, em termos do rigor a que obriga este confinamento e também a nível económico. Se tivéssemos sido capazes de manter outro tipo de atitude, provavelmente não teríamos a necessidade destas medidas e não teríamos as consequências económicas que vamos ter, já para não falar nas de saúde.
O que se passa em Santa Maria e nos outros hospitais
No seu hospital, no seu serviço, como é que está a situação neste momento?
Quando eu saí tínhamos uma vaga, com a hipótese de ter duas ou três, mas já havia vários candidatos para as diferentes vagas, portanto uma situação bastante difícil, se pensarmos que aumentámos muito a capacidade do serviço. Inicialmente tínhamos 31 camas a cargo da medicina intensiva, neste momento no hospital, que agora está todo muito transformado e virado para o tratamento da Covid, temos 55 camas só para doentes Covid em medicina intensiva. Houve um aumento franco da capacidade, mas que não é suficiente.
E esse aumento pode continuar a acontecer? Conseguem ter espaço e meios para ampliar ainda mais o serviço?
Espaço e meios físicos é mais ou menos fácil, a dificuldade há-de estar sempre nos recursos humanos, daí a necessidade, como já foi feito, de ter de suspender a atividade normal, tanto a programada como a não urgente. Neste momento até a atividade não muito prioritária tem de estar suspensa, de maneira a podermos ter os recursos humanos para podermos dar resposta a todos estes doentes. Quando nós falamos de hospitais como Santa Maria, São João, o Centro Hospitalar Central de Lisboa, o Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, estamos a falar dos grandes hospitais do país, aqueles hospitais que são polo de rede de referenciação e que têm de dar resposta, não apenas aos doentes que têm internados, mas a todo o conjunto de doentes a nível do seu polo de referenciação, e muitas vezes a nível regional e nacional, portanto é uma situação bastante difícil.
Como é que está a ser no Santa Maria, dizia que tem duas vagas e mais candidatos do que isso para as ocupar…
Mas isso não é exclusivo de Santa Maria, isso acontece neste momento praticamente em todos os hospitais ao nível do país. É a chamada “política da cama quente”, mal temos a cama livre já sabemos que temos alguém que pode vir a entrar ou a necessitar desta cama.
E isso acontece todos os dias? Em Santa Maria há novos doentes a entrar todos os dias nos cuidados intensivos?
Neste momento sim, em Santa Maria e em todo o país. Só naqueles sítios onde estão completamente tapados é que não. Mas, mesmo assim, mal existe uma vaga, principalmente nesses sítios, é imediatamente ocupada.
Quem são as pessoas que estão internadas nos seus cuidados intensivos? Sabemos que a Covid-19 tende a ter consequências mais graves em pessoas com idade avançada e com comorbilidades, mas o tratamento em cuidados intensivos nem sempre se adequa a estes doentes, certo? Há pessoas mais novas? Há jovens?
Sim, temos doentes de várias faixas etárias; já tivemos doentes de 20 e poucos anos, já tivemos doentes de 90 e bastantes. Neste momento o que vemos, apesar de tudo, é uma faixa mais jovem, temos doentes dos 40 ou 50 até aos 70 anos, e também, uma ou outra vez, doentes mais novos. A principal comorbilidade que nos tem aparecido nesta vaga é a obesidade. É o que vemos mais frequentemente, temos doentes obesos. E nem precisam de ser grandes obesos, basta serem doentes com excesso de peso ou obesidade de grau 1.
E são doentes que estão em estado grave?
Muito grave, muito grave. Neste momento isto é aquilo a que chamamos a “desnatação”: temos poucas vagas para a procura, de maneira que, tendencialmente, temos os doentes mais graves a ocupar as camas de medicina intensiva. Os doentes graves, mas não tão graves, não conseguem ser logo admitidos na medicina intensiva, só entram quando já estão muito mais graves, e isto pode ser uma das explicações para o aumento da mortalidade que se verifica agora na segunda vaga.
Porque demoram mais tempo a ter os cuidados de que precisariam…
Sim, e isso está demonstrado cientificamente. Quando foi em Itália, da primeira vaga, quando se comparou a mortalidade nas diferentes regiões, percebeu-se que os que tinham maior facilidade de acesso à medicina intensiva tinham menor mortalidade do que os que tinham menos acesso.
E foi por isso que o Santa Maria se expandiu desta forma e passou a ter unidades de cuidados intensivos por todo o hospital.
O Santa Maria e todos os outros hospitais abriram extensões do serviço de medicina intensiva em vários polos dos hospitais, nos blocos operatórios, nos recobros, e em enfermarias, para aproveitar outras unidades monovalentes que existiam. Há circunstâncias, que dependem de hospital para hospital, em que se consegue ter esta expansão em áreas contíguas, o que poupa recursos em termos de pessoal e de equipamento; e outros em que isso é mais difícil, por razões nem sempre compreensíveis, o que dificulta ainda mais a gestão. Às vezes são problemas dos hospitais que já têm mais algum tempo ou estão sub-dimensionados. Mas houve uma expansão da medicina intensiva muito grande em todos os hospitais, praticamente para o dobro das camas que existiam em janeiro.
Em termos nacionais qual é exatamente a capacidade atual em UCI?
Tínhamos perto de 620 camas de nível 3 e nível 2 em medicina intensiva em janeiro e neste momento a nossa capacidade anda à volta das 1.133, 1.200 camas, depende da forma de fazer a contabilidade… São 1.242 camas de total nacional de capacidade máxima neste momento, mas todos os dias andamos a tentar expandir ainda mais as camas da medicina intensiva. No início estávamos mal: em 2012 tínhamos dos piores rácios de camas por 100 mil habitantes da Europa, em 2016 já estávamos melhor mas continuávamos na cauda, tínhamos 6,2 por 100 mil e a Itália, por exemplo, tinha 12,5, a Alemanha 29.
E agora, como é que estamos?
A Comissão tinha feito um projeto para aumentar a capacidade de medicina intensiva, até ao fim do primeiro semestre de 2021 poderíamos atingir as 9,4 camas por 100 mil habitantes. Era um aumento muito significativo, à volta de 50% da capacidade. Neste momento está francamente superior.
Mas mesmo assim não chega.
Mesmo assim é pouco e acho que é fácil perceber, recorrendo a duas frases já muito célebres. Uma é “O que é que ainda não perceberam?” — não há camas que cheguem para estes números [da pandemia]. A outra: “É só fazer as contas”. Na primeira vaga, os doentes tinham, em média, 17 dias de tempo de internamento em medicina intensiva. Se tivermos mil ou 1.200 camas e 20 mil doentes por dia, que é o que foi dito que poderíamos atingir no início de fevereiro segundo as últimas projeções, e se 1% destes doentes for para medicina intensiva (o que até é menos do que na verdade acontece), estamos a falar de 200 doentes por dia em medicina intensiva. Ao fim de 6 dias preenchemos todas as camas existentes no país. Só que neste momento já lá estão deitadas à volta de 1.100 pessoas…
Como ajudar a tornar as coisas mais fáceis
Posto este cenário, o que é que se faz?
Têm de se cumprir todas as regras do confinamento, tem de se garantir o isolamento social, a lavagem das mãos, o uso correto da máscara em todas as situações, limitar os contactos, limitar as deslocações ao essencial, e tentar de todas as maneiras que a transmissão continue a estes níveis. Este é o primeiro e mais importante passo, não há nada que se possa fazer se este passo não for feito. E depois temos de tentar ganhar tempo, ganhar alguma capacidade de resposta ainda — e isso é parar toda a atividade que não seja essencial neste momento, limitarmo-nos à atividade muito prioritária, principalmente em termos cirúrgicos, e aproveitar rapidamente todos os recursos humanos que estavam noutro tipo de atividades. É necessário que isto aconteça não só na anestesia, mas em todas as especialidades. Acho que é imperativo que todos os hospitais definam muito rapidamente quais são as atividades que necessitam de manter abertas em cada um dos seus serviços, que lhes afetem o menor número possível de profissionais e que distribuam todos os outros pelas atividades que neste momento são essenciais. Isso quer dizer que podemos ter médicos de outras especialidades a tratar doentes nas enfermarias, nomeadamente ortopedistas ou oftalmologistas a tratar doentes de medicina interna. São médicos. Mesmo que possam não fazer um trabalho médico muito diferenciado, podem ajudar a fazer trabalho de enfermagem e isso é essencial. Provavelmente já todos recebemos mensagens de médicos de Londres em que há relatos de professores de Neurologia ou de Vascular ou de outras especialidades mais específicas, que neste momento não estão muito sobrecarregadas, que já estão a tratar doentes na enfermaria Covid, com a orientação dos profissionais que estão mais treinados.
E isso em Portugal também já está a ser feito? Ou tem de ser feito mais?
Tem de ser feito mais, em Portugal não está a ser feito desta maneira, a maior parte das especialidades não estão a ser chamadas para o tratamento destes doentes e não há esta perceção de reduzir francamente a atividade das especialidades e de elas virem participar no tratamento destes doentes. A altura em que temos todos de demonstrar a nossa solidariedade uns com os outros, quer individual, quer institucional, quer entre as diferentes especialidades e os diferentes grupos profissionais, é agora, não vai ser mais tarde.
É nesta fase que podem entrar também os privados?
Os privados já entraram, neste momento já estão acordos firmados e os privados já estão a receber doentes com Covid, quer em internamento de enfermaria, quer em internamento de medicina intensiva. Mas ainda não estão na sua expansão total, como está o Serviço Nacional de Saúde, ainda têm uma margem para poder aumentar as suas camas e a sua disponibilidade, mas estão a fazê-lo e a muito bom ritmo. Já não falo no Serviço Nacional de Saúde, falo no Sistema Nacional de Saúde. Todas as camas que se puderem abrir são essenciais, mas se não se conseguir parar o rio a montante não nos vai ajudar muito mais.
Li uma entrevista em que dizia que isso também é válido para os hospitais de campanha.
Os hospitais de campanha não resolvem os problemas de intensivos; a não ser que nós estejamos em situações de bloqueio de saída. Podemos ter bloqueios de entrada, em que o doente não entra porque não há camas, e podemos ter dificuldades em escoar os doentes da medicina intensiva e isso levar depois a que não consigam entrar novos doentes. Neste último caso, os hospitais de campanha podem eventualmente ajudar. Nos hospitais de campanha temos normalmente os doentes menos graves, que podem necessitar, ou não, de uma terapêutica endovenosa, mas que não necessitam de muita atenção médica nem de muitos cuidados de enfermagem nem de grandes aportes em termos de oxigénio. Há doentes que às vezes estão na enfermaria e precisam de estar internados, seja para completar ciclos terapêuticos, seja porque não têm condições sociais para cumprir o seu isolamento em casa, e que podem ir para os hospitais de campanha e assim gerar vagas nas enfermarias para os doentes que já estão em condições de sair da medicina intensiva. Deste ponto de vista, de certeza que os hospitais de campanha ajudam. E também ajudam aliviando o peso das enfermarias, que sabemos que também estão muito sobrecarregadas. Falo da medicina intensiva porque é a minha área, mas também vimos as imagens dos serviços de urgência, sabemos como é que estão as enfermarias, todo o sistema de saúde está extremamente sobrecarregado por esta vaga de doentes. E temos tido sorte…
Sorte? Em que sentido?
Porque apesar de tudo não temos tido, até agora, aquelas vagas de frio e não temos praticamente gripe — se olharmos para os dados do Observatório, não há gripe. Nisso as medidas do uso de máscara e algum grau de confinamento têm um papel muito importante. Foi o que aconteceu na Austrália: olhamos para os dados do hemisfério sul e vemos que não houve praticamente gripe neste inverno. Esperemos que assim aconteça aqui em Portugal, porque senão era difícil, mais ainda do que já está.
Relativamente aos ventiladores, que em março eram o principal problema, foi feito um reforço enorme ao longo dos últimos meses. Temos ventiladores suficientes agora?
Tínhamos à volta de 1.100 ventiladores em Portugal. Com as aquisições feitas pela ACSS [Administração Central do Sistema de Saúde], com as doações, com a recuperação de ventiladores que estavam parados, e com a aquisição de novos ventiladores diretamente pelos hospitais, neste momento devemos ter cerca de 2.200 ventiladores em Portugal, o que é mais do que suficiente. Não temos é pessoal suficiente para conseguir manejar todos os ventiladores caso eles sejam necessários. Não é só uma questão de ter o ventilador, temos de ter pessoas capazes de cuidar dos doentes que estão nos ventiladores, 24 sobre 24 horas, e isso é muito difícil. Não temos gente, portanto temos de funcionar em regimes de trabalho completamente diferentes dos habituais.
Como é que se pode resolver, ou tentar resolver, esta parte?
Vários países fizeram esquemas de um responsável com vários sub-responsáveis, que vão sendo como que os braços de uma estratégia que é delineada e controlada por uma pessoa mais experiente, com competências para fazer essa gestão da ventilação e da estratégia global dos doentes — é o chamado “intensivista-polvo”. Esta vai ser a única hipótese de tratarmos estes doentes.
E isso não está a ser feito ainda?
Está, em vários hospitais já temos a integração de membros de outras especialidades na medicina intensiva para trabalharmos em conjunto.
Portanto, é preciso fazer mais.
É preciso fazer mais. Precisamos de mais pessoas a trabalhar na medicina intensiva a nível nacional, precisamos da colaboração de pessoal de outras especialidades, e principalmente precisamos de pessoal de enfermagem. Há um défice muito grande de pessoal de enfermagem a nível nacional, e então de enfermagem de medicina intensiva o défice é enorme.
Os piores momentos da pandemia e o que ainda está para vir
Como é que estão vocês, os profissionais de saúde que todos os dias, há mais de 10 meses, não fazem outra coisa senão tentar dar resposta a esta situação?
Estamos fartos. Começa a haver um certo grau de desânimo, porque achávamos que com a vacina podia haver um fim mais rápido à vista, e agora já sabemos que esse fim nunca há-de ser assim tão rápido, porque precisamos de ter cerca de 60% ou 70% da população toda imunizada e com as duas doses. Estamos fartos desta pandemia, de todas as restrições a que todos os cidadãos estão obrigados, cansados do trabalho que temos, preocupados porque não vemos o fim à vista, preocupados e frustrados porque vimos as consequências do que está a acontecer, e com um sentimento de alguma impotência, que agrava ainda mais essa frustração, porque neste momento, devido ao facto de não terem sido cumpridas as medidas de isolamento, temos um aumento enorme de casos. Começamos a ter doentes a que não vamos conseguir dar resposta e isso é uma coisa terrível. De alguma maneira, estamos habituados a lidar com a morte, ou aos doentes morrerem-nos, mas depois de conseguimos fazer tudo de acordo com o estado da arte e com as nossas capacidades técnicas. Quando não conseguimos acudir aos doentes é muito pior.
Não podem sequer ter a consciência de que fizeram tudo para, é isso? E essa é outra questão, a morte está presente todos os dias.
Posto de uma maneira fria, sabemos que mais ou menos cerca de 30% dos doentes que passam pelos serviços de medicina intensiva mais complexos, com um casemix mais complexo, não chegam a sair vivos do hospital. Sabemos que a morte está presente no nosso dia a dia e, de alguma maneira, habituamo-nos a lidar com ela, e temos defesas para estas situações habituais. Claro que há sempre um ou outro doente que nos toca mais fundo, que nos faz pensar e que nos abala como pessoas.
No seu caso que doentes foram esses, que o abalaram mais?
São vários… Os primeiros doentes que me morreram, quando comecei a trabalhar, lembro-me do nome, lembro-me da cama, lembro-me da cara, sei perfeitamente o que aconteceu. Depois, com o tempo, vamos tentando recordar também os bons momentos, lembramo-nos todos daqueles doentes por que, individualmente ou como grupo, fizemos muito para que recuperassem e essa é a parte boa da medicina intensiva. Temos os doentes mais graves e quando os conseguimos recuperar é muito bom.
Essa percentagem de 30% de casos que correm mal na medicina intensiva mantém-se com o Covid?
Na primeira vaga, segundo a base de dados nacional, a mortalidade ao nível da saída da medicina intensiva andava por volta dos 21% e 28% a nível da saída do hospital, e comparava-se favoravelmente com a mortalidade a nível internacional. Neste momento estou convencido de que a mortalidade é francamente maior, não tenho números nacionais, mas sei que em algumas unidades a mortalidade ultrapassa os 40%.
E isto estará relacionado com o tal atraso no acesso aos cuidados intensivos ou não só?
Acho que é uma das causas, provavelmente é multifatorial, não sabemos. Acho que os doentes chegam mais tarde e mais graves, e essa é a principal razão.
Estamos há 30 minutos a falar sobre cuidados intensivos e doentes Covid…
Quer dizer que neste momento, com os últimos números, já morreram cinco pessoas com Covid.
E assim se podia encerrar uma conversa, é incrível… Mas perguntava-lhe, em relação aos outros doentes — porque eles continuam a existir e porque continuam a acontecer acidentes —, no estado atual das coisas, estes doentes graves e urgentes começam a correr o risco de não receber os cuidados de que necessitam?
Sim, mas o problema não é só do não Covid. Neste momento todos os doentes correm o risco de não ter o melhor tratamento na janela de tempo ideal. E isto porque, na verdade, o sistema está todo saturado. Na primeira vaga vimos uma diminuição enorme da procura dos serviços de saúde por outra patologia que não a Covid; praticamente acabaram os acidentes de viação, as idas à urgência por outros motivos, e o número de enfartes do miocárdio diagnosticados reduziu francamente. Uma parte foi efeito da diminuição de atividade (faziam-se menos exames, menos diagnósticos de algumas patologias); por outro lado não havia tanto trânsito e não havia tantos acidentes; e depois as pessoas também tinham medo e não recorriam ao serviço de saúde — isto pode eventualmente explicar parte do aumento de mortalidade que houve comparativamente a anos anteriores. De alguma maneira, estamos com esperança de que aconteça a parte boa desta diminuição da procura, ou seja que haja menos acidentes, que haja menos outras doenças — relembro o caso da gripe e das pneumonias, porque se as pessoas estiverem em casa há menos probabilidade de acontecerem — e que consigamos passar esta fase com menos danos acessórios. Agora não nos podemos esquecer que o problema que se vai pôr nestes doentes, e que se põe nos doentes com Covid, tem a ver com a procura dos serviços de saúde, que é enorme neste momento.
Portanto, apesar de ter vindo tarde, pode ser que este confinamento ainda consiga ajudar.
Espero que sim, mas sabemos que vai demorar tempo a fazer efeito. E sabemos que, além desse tempo, vai haver sempre um intervalo até se fazer sentir no hospital e na medicina intensiva. Sabemos que os internamentos em medicina intensiva são muito prolongados, em média, como disse, na primeira vaga andaram nos 17 dias. O que quer dizer que só bastante tempo depois de se começar a fazer sentir o efeito em termos globais é que vamos ter um alívio em termos hospitalares. Neste momento, nas últimas previsões, vai demorar até meio de abril para conseguirmos trazer os números nitidamente para baixo e eu acho que não podemos cometer erros desta vez. Temos de ter um Rt, não apenas de 1 mas francamente abaixo de 1. Da primeira vez andámos a falar em Rt de 0,7. Temos de ter a coragem de assumir que queremos ter Rt nessa ordem, não digo de 0,7, porque não sei se é real, mas temos de ter Rt francamente mais baixos. E temos de trazer os números de prevalência francamente mais para baixo, não podemos estar nos 960, é impossível. Só quando chegarmos aos 3 mil ou 2 mil casos diários, ou até menos, é que podemos começar a pensar em aliviar medidas, antes disso acho que é impossível.
Estava a falar em abril…
Neste momento estamos preparados para oito semanas, no mínimo, muito duras. Estaríamos a falar na última semana de março para eventualmente começar a melhorar alguma coisa. Mas melhorar alguma coisa não é as coisas estarem perto do fim.