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O 25 de abril não trouxe só a democracia. A revolução, diz o general Loureiro dos Santos, permitiu aos militares fazer as pazes com o povo e lavar a face pelos mais de 40 anos em que serviram de “sustentáculo” à ditadura de Salazar e Marcello Caetano. E há marcas quer persistem. O “respeito” que o poder político tem pelos militares é, sobretudo, consequência do “receio” de que a história volte a cumprir-se. Loureiro dos Santos esteve de um e do outro lado da barricada: era comandante das tropas portuguesas em Cabo Verde quando os capitães saíram às ruas. Nos meses que antecederam a Revolução, conta, já defendia abertamente a instauração de um “regime socialista” em Portugal. Vieram os cravos, viveu-se o Período Revolucionário Em Curso (PREC) e, quando percebeu que uma parte dos militares estavam pôr em marcha os “disparates” que vinham defendendo, o general recuou. Temeu que Lisboa se tornasse o epicentro da guerra dos dois grandes blocos mundiais: União Soviética e Estados Unidos.
Depois, foi ministro da Defesa — conta que foi ele quem ajudou Maria de Lurdes Pintasilgo a lidar com a questão “Cunhal” no Governo –, foi chefe do Estado-Maior do Exército, conselheiro presidencial. Leu muito sobre Defesa, Segurança, Estratégia. Publicou outro tanto e tem quase duas dezenas de obras editadas. Foi uma espécie de segunda vida, uma atividade que se tornou mais intensa com o aproximar do fim da carreira militar.
Hoje, não se deixa atormentar por decisões passadas. Primeiro, porque não tem “arrependimentos”. Segundo, porque essas decisões passaram a um pretérito mais que perfeito que não merece segundas leituras. Oitenta anos de idade, quarenta ao serviço do Exército. Um militar que “cumpriu a sua missão” durante quatro décadas, que comandou pelo “exemplo” e que, ainda criança, se deixou fascinar pelo rebuliço provocado pela chegada dos oficiais da GNR ao posto que o pai comandava. Foi logo aí que decidiu: queria ir para a Academia Militar. Queria ser ele a provocar o rebuliço com a sua chegada. Mas, garante, foi um comandante entre iguais. Liderou pelo diálogo, nunca pela força.
“Sempre quis ir para a Academia Militar, ser oficial”
Quando telefonei com o objetivo de lhe propor esta conversa, a primeira pergunta que me fez foi: “Quer que comente o quê?” Continuam a procurar muito a sua opinião?
Agora, furto-me mais a isso. De vez em quando faço, mas agora tenho, não sei se mais cuidado, se alguma preguiça. Eu já fiz 80 anos, não é? Nasci, segundo me diz a minha mãe, a 28 de agosto de 1936. Embora a minha data de nascimento seja 2 de setembro.
Nasceu em Vilela do Douro, concelho de Sabrosa. Costuma voltar à sua terra?
Sempre que vou ao norte, faço uma visita. Aliás, todos os anos faço isso. Claro que vou visitar a família que tenho lá, e que se junta. Na casa onde nasci vive uma prima minha, que a comprou.
Recorda-se dessa casa?
É uma casa térrea, como a maior parte das casas lá na aldeia. O chão é de xisto. Mas não guardo muita memória. Saí de lá com pouca idade, tinha três anos. O meu pai era da Guarda Republicana, foi promovido a segundo cabo e foi comandar um posto para Santa Marta de Penaguião. Nós fomos com ele.
Estive a pesquisar sobre Vilela do Douro. É uma terra pequena, com umas poucas casas. Mas uma das principais ruas tem o seu nome.
É a rua General Loureiro dos Santos. A placa está mesmo em cima da casa onde nasci.
Uma homenagem da gente da sua terra?
Sim, claro, para aquela gente… aquela aldeia é mesmo pobre. Embora agora comecem a ver-se umas casas de emigrantes em França que regressaram e que fizeram construções novas. De resto, é uma aldeia muito pobrezinha, muito pobrezinha.
Já só guarda memórias de Santa Marta de Penaguião.
Tenho memórias do Natal, das prendas. O meu pai era comandante da GNR e ele mandava sempre fazer uma árvore de Natal para que depois se distribuíssem as prendas aos filhos dos guardas militares. Houve uma fase, como todos nós, em que estava convencido de que era o Menino Jesus que nos trazia as prendas. Mas, um dia, fiquei escondido de véspera e “alto, que já não há Menino Jesus”. Foi aí que descobri.
O que é que se recebia no Natal?
Uma coisa pequenina, uma coisa qualquer, porque aquilo era tudo pobre. Os soldados ainda eram mais pobres que o meu pai. Recordo-me de recebermos um carrinho ou um comboio de lata. Para nós era uma coisa excecional.
Ainda não andava na escola?
Não, comecei a andar lá, em Santa Marta de Penaguião. É curioso aquilo que me aconteceu.
Conte.
Fui para a escola em outubro e, por volta de fevereiro do ano seguinte, o meu pai foi transferido para Vila Pouca de Aguiar. Ia uma camioneta de carga levar mobílias e nós também íamos em cima da camioneta. Era um aventura. Então para nós, miúdos, era uma coisa fantástica. Passados uns dias, disse ao meu pai: “Pai, eu quero ir à escola”. E ele: “Vai lá, desenrasca-te”.
Não queria largar os estudos.
Queria continuar na escola. Usávamos uma sacola de pano — isso já não se usa — que a minha mãe fazia, para usarmos a tiracolo. Pus aquilo e fui sozinho para a escola. Quando lá cheguei, disse ao professor, um senhor velhote: “Eu andava na primeira classe e tal”. Então pediu-me para fazer uns exames e no final disse-me: “Tu já estás muito adiantado, passas já para a segunda classe”. E aí ganhei logo um ano.
E anos mais tarde acaba o liceu como melhor aluno.
Fui o aluno mais bem classificado do país. Até havia um prémio, o prémio nacional dos liceus.
Qual era o prémio?
Era um prémio monetário. Mas não fui eu que o recebi, foi o meu pai. Eu só tinha 20 e 19, notas dessas. Mas estudava muito pouco, muito pouco.
A boa prestação, tinha-a por gosto, por imposição…
Não, era por gosto. E não me custava nada. Eu depois passei a gostar de ser um bom aluno.
Vinha de uma aldeia pobre. Percebeu cedo que a escola podia ser o caminho para uma vida melhor?
Eventualmente. Mas não me recordo de pensar isso. A partir de certa altura, comecei a pensar a ir para militar.
Além do seu pai, havia militares na família?
O meu pai era guarda republicano. Depois, só eu fui militar. Quando fiz o sétimo ano de liceu… sempre quis ir para a Academia Militar, ser oficial.
O que é que o puxava para a vida militar?
Só tenho uma explicação. O meu pai era comandante da GNR e comandava o posto da guarda. Ao lado do posto havia a casa do comandante do posto, onde vivia o meu pai, a minha mãe, os meus irmãos e eu. Aliás, havia mesmo uma porta de passagem entre o posto e a casa do comandante. Eu devo ter ficado deslumbrado com a visita dos oficiais que iam fazer ronda ao posto.
O que tinham de especial essas rondas?
Sempre que estava para aparecer um oficial o meu pai tinha um cuidado enorme, mandava os soldados limparem tudo. Julgo que me marcou ver um oficial e a importância que tinha um oficial. Toda aquela gente, com dias de antecedência, andava muito preocupada para receber o oficial. Penso que foi isso que me fez querer ir para a Academia Militar.
“Não sei se sou político ou não”
Alguma vez teve curiosidade de consultar a página que lhe é dedicada na Wikipedia?
Não, nunca consultei.
O general é apresentado como um militar — e disso nenhumas dúvidas haverá — mas também como um político. Revê-se nessa designação?
Não sei se sou político ou não. Eu desempenhei funções políticas.
É certo. Foi ministro da Defesa de Mota Pinto e de Maria de Lurdes Pintasilgo. Mas isso é diferente de ser político.
Penso que se diz que sou político porque fiquei conhecido, numa determinada altura da minha vida, por ter tido funções políticas. E por agir, mesmo como militar, nas minhas funções de comandante — fui sempre comandante, nos vários escalões — de uma forma que mostra uma certa habilidade em resolver os problemas sem ser pela força, sem obrigar as pessoas a fazerem alguma coisa, arranjando um modo de levar os outros a colaborar connosco. Consegui que os meus subordinados se sentissem meus colaboradores e não indivíduos que andavam a cumprir ordens.
Nunca pela força.
Exatamente. E isso sempre me deu muito gosto porque me apercebi de que não é preciso usar processos drásticos para que os nossos subordinados vão avante com determinado tipo de tarefas. A própria maneira de agir leva a que, muitas vezes, até sejam eles a ter essa iniciativa e a ficar contentes com a forma como desempenham as tarefas.
Olha para os seus homens como aliados e não como subordinados.
Sempre fiz isso. Tive sempre duas regras. Uma: os meus subordinados são meus pares, esse era um ponto muito importante. E havia outra regra: dar o exemplo. Nunca mandava fazer uma coisa que soubesse que não era capaz de fazer. Não era permanentemente. Mas, de vez em quando, em momentos inesperados, aparecia a fazer coisas que não eram propriamente da minha função mas que sabia que os meus subordinados gostavam. Gostavam de ver e aprendiam com isso.
Por exemplo.
Durante uns tempos, como coronel, comandei a fortaleza de Cascais, o centro de instrução de Artilharia anti-aérea. Às vezes, saía de casa às quatro da manhã e, por volta das quatro e meia, sem ninguém saber, entrava no quartel e a partir do toque de alvorada punha-me em frente à porta de armas, do lado de dentro, a cumprimentar as pessoas que entravam. Os soldados, na sua maioria, ficavam lá, não iam a casa, mas havia oficiais e sargentos que tinham de entrar à alvorada. Com essa presença, mostrava que eu também fazia aquilo que exigia que eles fizessem.
Em algum momento precisou de pulso firme para comandar as tropas?
Não me lembro de necessitar de ameaças. Nunca precisei disso. E houve momentos delicados, especialmente no Ultramar. Houve momentos em que era preciso as pessoas arriscarem e nunca tive problemas.
“A minha comissão [no Ultramar] foi relativamente fácil”
Foi aí, no Ultramar, que sentiu que o exemplo era importante para garantir a lealdade dos seus homens?
Sim, foi aí que o senti e foi aí que procurei praticá-lo. Acho que os resultados confirmaram a minha ideia.
Foi para a guerra pela primeira vez em 1962. Com que missão?
Fui mobilizado para Angola comandar uma unidade de anti-aérea. O Estado-Maior tinha notícia de que os jovens da resistência estavam a aprender a andar de avião no Congo do Zaire. Estava a desenhar-se uma ameaça aérea e isso levou a que o Estado-Maior português tivesse proposto mandar material anti-aéreo para lá e fui comandar esse material. Fui comandar uma bateria anti-aérea que se instalou em Luanda e foram, simultaneamente, uma série de pelotões comandados por alferes e tenentes que instalaram material de anti-aérea nos principais aeroportos do norte de Angola. Cada pelotão tinha um radar que detetava os aviões. Era um material muito sofisticado para a época.
Pensar na guerra colonial é recordar uma guerra muito mais física. Foi destacado com 27 anos. O que significava ser chamado para ir à guerra com essa idade?
Para nós, militares de carreira, era uma experiência que pensávamos — e julgo que bem — que nos enriquecia e nos dava experiência de combate, que era aquilo para que existíamos. Para os militares obrigados, de modo geral, era uma situação delicada. Nunca tive problemas com os meus oficiais. Há um que já morreu, mas ainda hoje me dou muito bem com eles.
Recorda-se de todos os oficiais com quem esteve na guerra?
Sim, sim.
Ficam relações para a vida?
Ficam. A minha unidade era a bateria anti-aérea 386 e depois havia uma série de pelotões. Todos os anos fazemos um almoço de confraternização. Juntamo-nos num restaurante a meio caminho entre Lisboa e o Porto porque o meu pessoal era do país inteiro, foi um recrutamento nacional.
Na guerra forjam-se relações como não é possível em qualquer outro contexto?
Acho que sim. Não é fácil noutros contextos criarem-se as amizades e a disponibilidade para morrer, para arriscar a vida por um camarada como na guerra.
Essa ideia da morte por perto está presente a todo o momento?
Sim. Quando íamos juntos sabíamos que aquele camarada que ia ao meu lado, se eu tivesse algum problema, ele faria tudo o que pudesse, inclusive arriscando a vida para me safar. E eu faria o mesmo por ele.
E essa consciência, a consciência de que a qualquer momento pode acontecer algo que nos deite por terra, torna-nos mais frágeis ou mais fortes?
Julgo que quando a ameaça ainda não surgiu há um certo receio, uma certa fragilidade. Mas quando ela surge não nos damos conta. Fazemos tudo o que é necessário.
As marcas ficam?
Ficam algumas marcas pessoais com camaradas. Ficam essas marcas. Mas a minha comissão foi relativamente fácil. A minha base era em Luanda e só saía de vez em quando, de avião, para visitar o equipamento e unidades espalhadas — algumas vezes saía a pé a acompanhar os meus soldados nalguma patrulha.
Mais tarde, já em 1972, é mobilizado para Cabo Verde. Aí teve um contacto mais próximo com a população?
Embora vivesse em São Vicente, tive mais contacto. Dávamo-nos relativamente bem.
Na prática, no caso concreto, havia tropas portuguesas em território cabo-verdiano. Sentia-se que se estava em território ocupado?
Nunca senti isso. Os próprios cabo-verdianos sentiam-se portugueses.
“Já não somos o sustentáculo da ditadura”
Como foram os momentos a seguir à notícia de que tinha havido uma revolução em Portugal?
Recebi a informação pela rádio, um ou dois dias depois. Imediatamente reuni os oficiais e sargentos — porque eu era o chefe do Estado-Maior — e comecei por dizer: “Finalmente, podemos andar com a cabeça erguida”.
O que é que isso significava?
Depois, expliquei-lhes: “Houve uma revolução em Lisboa e nós já não somos o sustentáculo da ditadura. O país passou a ser uma democracia e os órgãos que nos vão comandar são eleitos e isso deve-se aos militares, foram os militares que o fizeram, de certa maneira redimindo-se daquilo que têm andado a fazer, que foi sustentar durante tantos anos a ditadura”. A ditadura vivia porque os militares não se sentiam mal com a ditadura. Quando se sentiram mal com a ditadura, ela acabou. A ditadura teria fim quando os militares tivessem a consciência de que seria um erro continuar a situação. Aliás, tinha uns ecos daquilo que se passava aqui em Portugal, com o Movimento das Forças Armadas. Conhecia um deles, o Melo Antunes, que era um dos meus melhores amigos. O Melo Antunes era do meu curso, éramos muito, muito amigos. Era um homem fora de série.
E foi fácil fazer a transição mental: representar um Estado que ocupava um território e, logo a seguir, passar a representar um Estado que estaria de saída?
Para mim, foi muito fácil. E, de certa maneira, foi como se descarregasse algum peso que tinha em cima das costas. Porque conversávamos na sala de oficiais. Gostava de conversar com as pessoas, até para que os oficiais se abrissem. Bebendo um cálice, as pessoas estão mais disponíveis para dizer algumas verdades. Eu explorava isso. Conhecia perfeitamente o sentimento dos oficiais e eles sabiam perfeitamente o que eu pensava. Eu dizia-lhes muitas vezes: “Precisamos de ter um regime democrático”. Até falava num regime socialista.
Falava-se nesses termos, já?
Falava-se, falava-se. Aliás, tinha lá um oficial parente de um truta do regime. Falava com ele à vontade, nunca tive problemas com isso. Na altura, o chefe do Estado-Maior do comandante militar era um coronel de Cavalaria do Exército, e do comando-chefe era um almirante. Essas pessoas tinham ligações ao regime. Não era nomeado um comandante militar de uma província um indivíduo de que houvesse desconfiança de que pudesse pôr algum problema ao regime. Ficaram muito desequilibrados quando tiveram conhecimento daquilo que se passou.
Ainda teve contactos com esses comandantes durante algum tempo?
Logo que se soube, fui falar com o almirante e sugeri-lhe que mandássemos uma mensagem para Lisboa a dizer que as Forças Armadas de Cabo Verde apoiavam a revolução. Ele torceu-se todo, coitado. “Oh senhor major, mas porque é que havemos de fazer isso?”. Nós tivemos conhecimento da Junta de Salvação Nacional (JSN). E eu disse-lhe: “O senhor almirante conhece os militares da JSN?” Ele disse que sim. “Olhe, conheço os do Exército e é da melhor gente que temos”. Ele tinha a mesma opinião sobre os da Marinha. “Então qual é a sua dúvida? Não vão fazer nenhum disparate, nenhuma aventura”. Passados uns dias, eles foram embora e fiquei sozinho.
O general tinha sido mobilizado em 1972. Volta a Portugal já em 1974, já depois de o regime ter sido deposto.
Vim cá porque, a certa altura, foram-se embora os comandantes e vim ver o que havia de fazer. Ao mesmo tempo, saiu o governador, que era também um oficial e que estava na [cidade da] Praia. Vim cá, fui à Presidência — era Spínola o Presidente — e falei com o oficial de gabinete. Apresentei-me, ele não me conhecia, e disse que precisava de falar com o presidente para que me desse indicações, porque eu não tinha lá ninguém. No dia seguinte fui lá, entrei, [estava Spínola] com o monóculo. E pedi-lhe: “O meu general tem de nomear alguém para me substituir, para continuar a ser aquilo que era, chefe do Estado-Maior”. E ele disse: “Voltas para lá e passas a ser o governador, o comandante-chefe e o comandante militar”. E assim foi.
Nessa passagem por Lisboa, sentiu alguma diferença nas pessoas?
Havia um certo desafogo. As pessoas conversavam muito umas com as outras, muito, coisa que não acontecia antes. Isso foi o que mais me marcou. Havia uma certa alegria.
“Portugal podia tornar-se um satélite da URSS e os EUA podiam fazer qualquer coisa”
Quando volta de Cabo Verde passa a exercer funções no Conselho da Revolução, vive por dentro um dos períodos mais críticos da história contemporânea portuguesa e, no 25 de Novembro, opõe-se ao golpe militar. Quando é que se apercebe desse movimento?
Havia muitos sinais de radicalização. De vez em quando, havia pessoas que diziam alguns disparates e isso começou a preocupar-nos. A certa altura, o disparate veio para a rua, quando os paraquedistas ocuparam as bases aéreas. Antes disso, eu e outras pessoas — como o Ramalho Eanes — juntávamo-nos e estávamos preocupados com a deriva dos acontecimentos. Pensávamos que tínhamos de estar preparados para fazer qualquer coisa.
O que temiam?
O perigo que víamos era o de o país tornar-se um satélite da União Soviética, o que seria um desastre para Portugal. E tínhamos a perceção de que isso podia acontecer. E quando se dá a ocupação das bases, pensámos que tínhamos de responder. Era a altura de evitar que se continuasse nesse deslize para uma situação que não desejávamos. Trabalhámos sempre sob a coordenação do general Costa Gomes, que era o chefe do Estado-Maior das Forças Armadas e que passou a ser Presidente da República interino. Eu trabalhava diretamente com ele e fazia a ligação com o Eanes, que foi para a Amadora ocupar o posto de comando e foi assim que conseguimos deter uma situação que podia levar ao desvario, a uma situação muito complicada. Portugal podia tornar-se um satélite da União Soviética e os Estados Unidos podiam fazer qualquer coisa que prejudicasse o país como resposta a essa ameaça que eles também temiam.
Uma invasão norte-americana?
Uma invasão ou, pelo menos, um apoio a alguns elementos que eram até mais radicais que nós e que estava disponíveis para algumas ações. Houve atentados terroristas no norte e situações com mortes civis mas que não foram decisivos para fazer abanar o poder político que se tinha estabelecido.
Foram os anos mais intensos que viveu em Portugal?
Talvez tenham sido. Não sabíamos nunca o que ia acontecer ou o que podia acontecer. As coisas foram-se compondo e depois a situação estabilizou com os primeiros Governos de iniciativa presidencial. Votámos no Eanes para presidente. Já havia [entre nós] uma ligação muito forte, que ainda hoje existe.
Falam regularmente?
O Eanes telefona-me quase todos os dias. Conversamos muito. E agora, que estamos os dois velhos, falamos sobre estarmos à espera de, qualquer dia, desaparecer. Existe uma ideia de que o Eanes é um tipo muito sério, mas ele tem um espírito de humor fantástico. Faz-me sempre rir. Ele liga-me sempre por volta do meio-dia, meio-dia e pouco. Ele começa logo a tratar-me por jovem e eu fico logo: “Não me chames jovem!” E depois lá começamos a conversar.
O primeiro-ministro Mota Pinto chamou-o para ser seu ministro da Defesa. Esse convite surpreendeu-o?
Não, porque o Eanes disse-me: “Tens de ir para ministro da Defesa”. Eu disse-lhe que tudo bem, se fosse necessário, ia. E quando o Mota Pinto me contacta já sabia que ia receber o convite. E depois aconteceu o mesmo com a Maria de Lurdes Pintasilgo. Era uma senhora fora de série, uma primeira-ministra assim [e mostra o dedo em gancho]. Era, sim senhor. Mas tinha categoria.
Houve algum embate político entre os dois?
Não. Ela assustava-se muito com as queixas do Álvaro Cunhal. Ficava um bocado nervosa quando o Álvaro Cunhal lhe telefonava ou ia falar com ela. Eu dizia-lhe para ter calma, que não havia problema. Mas uma vez houve um problema. A seguir à Revolução, por instigação do Partido Comunista, os camponeses do Alentejo tomaram conta das propriedades. E isso, durante algum tempo, foi aceitável. Mas, depois, houve necessidade de regularizar a situação. Ver quais eram os latifúndios, reduzi-los, mas voltar a dar as terras aos donos.
E os camponeses não gostaram.
Houve alguns problemas. A certa altura, as pessoas que estavam a tomar conta das terras, e que julgavam que as terras tinham passado a ser delas, punham resistência. Numa propriedade houve uns tiros e morreram duas pessoas. A senhora [Maria de Lurdes Pintasilgo] ficou absolutamente em pânico e começou logo a falar com o Cunhal, deu ao Cunhal o Governo. Eu tinha ido fazer uma visita oficial aos Estados Unidos, convidado pelo Governo americano. Quando regressei, chego ao aeroporto e vejo uma série de ministros à minha espera. “Que raio”, pensei eu, “aconteceu qualquer coisa aqui”. Contaram-me o que se passava e disseram: “Qualquer dia o Cunhal é quem manda”.
O que é o general que fez?
Disse-lhes: “Vamos resolver isso”. Falei com a Maria de Lurdes Pintasilgo e disse-lhe que não podia ser assim. “E depois, como é? Eu não tenho capacidade, não tenho força”. Respondi-lhe: “Eu arranjo-lhe a força, não há problema nenhum”.
Saiu desiludido com essas suas experiências na política?
Não, ainda hoje acho que cumpri o meu dever. Era mais uma missão, tal como tinha ido para Angola e Cabo Verde. Era mais uma missão que me tinham dado e que eu tinha desempenhado.
“[O poder político] respeita mais por receio do que por considerar que a força militar merece respeito.”
Algum ministro o marcou pela positiva nestes anos de democracia?
Acho que não. Não estou a ver ninguém. Nem pela positiva nem pela negativa. Quando deixei essas funções, afastei-me um bocado. De vez em quando falava com o Eanes, que ele pedia-me um conselho ou outro. Mas vim fazer a minha vida normal, de oficial do Exército, e fui subindo na carreira.
Até que, em 1993, enquanto chefe do Estado-Maior do Exército, bate com a porta, em discordância com o primeiro-ministro Cavaco Silva.
Foi numa reunião do Conselho de Defesa Nacional. Pedi a palavra e disse ao Presidente da República [Mário Soares] que não concordava com a decisão que o senhor primeiro-ministro estava a tomar relativamente à antecipação da passagem à reforma dos oficiais, porque isso reduzia o vencimento da reforma e fazia com que os oficiais fossem tratados como carne para canhão. Mário Soares virou-se para Cavaco Silva e disse que achava que eu tinha razão. O primeiro-ministro disse que o assunto estava resolvido e muito bem resolvido. Não fiquei muito satisfeito.
E saiu. Para não perder a face?
Tinha solicitado a opinião dos meus oficiais relativamente àquilo que o Governo queria fazer. Todos deram a opinião, com que eu concordava, e todos confiaram em mim para defender os seus interesses. Perante o facto de não ter conseguido, decidi passar à reserva.
O poder político tem respeito pelo força militar?
Respeita mais com receio do que por considerar que a força militar merece respeito.
É o peso da lição aprendida.
Exatamente.
Tem agora 80 anos. Lida bem com a sua idade?
Perfeitamente. O que me custa são as mazelazitas que tenho. Sei que a minha idade já é um pouco complicada, mas lido perfeitamente.
A idade fê-lo refletir mais sobre o seu percurso?
Não, acho que não. Muitas vezes olho para trás e penso: “Terei feito alguma coisa que hoje não faria?”
E que resposta recebe de volta?
Não noto nada. Claro que quando as coisas são passado já não nos magoam e é natural que olhemos para elas com mais à vontade. Mas não me arrependo das coisas que fiz, das decisões que tomei. Tive problemas na vida, pessoais e familiares, como todas as pessoas têm, mas as coisas foram correndo naturalmente. Os meus filhos são fantásticos, dou-me muito bem com eles. Estou divorciado.
Divorciou-se com 69 anos…
Sim, já foi com uma certa idade. As coisas são como são. São os males do coração. Do coração, de um certo ponto de vista. É que eu fumava muito e fiquei com problemas nos pulmões e no coração. Fui operado há uns anos mas estou fino.
Nesse momento teve medo do inevitável?
Não tive medo. Tive consciência de que isso me podia acontecer e preparei-me para isso. Foi a primeira vez que redigi um testamento.
É uma forma de preparação mental?
É. Eu pensei: “Posso morrer”. E depois perguntei-me: “O que é que posso fazer?” Tinha de fazer um testamento porque achava que devia destinar certas coisas a determinadas pessoas, os meus livros, por exemplo, e foi nessa altura que fiz o testamento.
Se lhe pedisse para se definir, o que diria?
Sou um militar que procurou cumprir a sua missão.
Sob que valor supremo?
O valor supremo da vida, sempre o valor supremo da vida naquela que é a função dos militares para garantir a vida e bem-estar de todos nós. Os militares, por vezes, têm de arriscar a vida pelos outros, pelo país, pelos seus concidadãos. É assim que vejo o papel dos militares.