Depois de ter sido preso por ler um livro, Luaty Beirão publica o seu — “Sou eu mais livre, então” (Tinta-da-China). Poder-se-ia falar num fim irónico, mas isso não seria totalmente adequado. É irónico, sim, mas não um fim. Ao Observador, o rapper luso-angolano sublinha que vai continuar a “provocar” o regime de José Eduardo dos Santos, mesmo que ele próprio aceite o rótulo de “filho do regime”. Também conta que passava o seu tempo atrás das grades a recordar o pai, João Beirão, que era uma figura de topo do regime e bastante próximo do seu Presidente. E de como evitava pensar na filha, ao ponto de se esquecer do seu rosto. Luena, então com um ano e meio, foi o seu verdadeiro calcanhar de Aquiles — sobretudo durante a greve de fome que durou 36 dias.

Quando lês o teu diário na prisão ainda te reconheces naquela pessoa ou já é uma coisa muito distante, tendo em conta o que se passou pelo meio?
Reconheço-me plenamente. É um diário, eu na verdade não tinha a ideia de que isso podia sequer vir a ser publicado, sobretudo na forma que está, porque tem montes de notas misturadas, e assuntos de ‘tragam-me cuecas na próxima semana’, recados para eu não esquecer para dar à família. Eu usava o meu diário como tudo, o meu bloco de notas, ? Portanto era eu sendo eu e eu não me transformei tanto assim depois de ter saído da prisão. Portanto sim, identifico-me plenamente. Eu quando tive de reler o diário [para entregar o texto à editora] o que fiz foi uma transcrição. Pensava “pá, isto não me parece que seja material publicável, que seja de interesse de alguém ler isto, mas, pronto, vou passando”. Disse à Bárbara [Bulhosa, diretora da editora Tinta-da-China] ‘passo-te um dia de cada vez e tu vais-me dizer se estás interessada ou não para eu continuar, porque não me vais dar esse trabalho de transcrever 100 páginas para ficarem num documento word’. Então fui passando e ela dizia que estava a gostar, que gostava, que queria, e foi assim.

Ao longo do diário, sobretudo na primeira fase, escreves sobre coisas que não têm nada a ver com a prisão. Parece uma postura defensiva, até blasé de uma pessoa que não quer encarar os problemas e que se faz forte em relação ao que tem à frente. Há uma parte em que até falas sobre o programa de chat mIRC e o sobre a Uber. Como é que uma pessoa que está na prisão durante um processo destes se dedica a pensar como é que a Uber pode ser lucrativa ou não?
O que acontece é que eu estou num processo de escrita. A pessoa está fechada, não tem nada para fazer e só sobra ir escrevendo coisas. “Olha, uma ratazana”, “olha, aqueles gajos estão a cantar uma canção religiosa…”, e então começas a escrever “a religião realmente…”. São reflexões que entram no meio das pequenas coisas que me apetece narrar. Essa reflexão do mIRC foi porque me lembrou qualquer coisa que me levou para essa época. Então fui pormenorizar demais, fui detalhar demais. Não sei responder porquê, não é uma mania de querer estar forte, ou qualquer coisa. Também não pensei “agora vou escrever sobre o mIRC para eventualmente, se alguém ler este diário um dia perceber que eu não estava minimamente afetado”. Eu estava afetado, obviamente. A pessoa está privada de liberdade… O que eu me esforçava por fazer era contornar aqueles pensamentos que me pudessem fazer sentir mal. Pensar na minha filha… Chegou a haver momentos — e eu acho que não digo isso em caderno nenhum — em que eu não me conseguia lembrar bem do rosto dela. E por mais que isso me pudesse afetar, por outro lado eu pensava que se calhar era bom para mim, porque permitia-me focar-me para me defender, para estar forte e aguentar. No regime como o nosso nós sabemos que as leis são meros acessórios, são meros bibelôs decorativos. Portanto nós não contamos, nós não podemos contar quanto tempo estamos ali.

Falas da tua filha poucas vezes no diário. Mas há uma parte inicial em que falas de um sonho…
É horrível…

… onde ela se está a afogar mas depois consegue salvar-se sozinha. Obrigaste-te a não pensar na tua filha enquanto estiveste na prisão?
Não sei se foi o meu subconsciente ou se será o meu consciente… Quando começava a pensar nela procurava fazer outra coisa, pensar noutra coisa, para desviar o pensamento. Porque tinha noção de que isso era uma das coisas que me podiam fazer fraquejar. E eu não tenho problemas em chorar. Ainda mais sozinho, ? Ninguém me está a ver.

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Aliás, dizes nessa parte que choraste, depois do pesadelo da tua filha.
Nesse momento e noutros. Quando pensava no meu pai, por exemplo, e confrontava-me com o pensamento de “o que é que seria se estivesses vivo, o que é que seria se eu nesta situação, e tu aí fora?”. Como é que ele reagiria, ?. Como é que seria a nossa relação?

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Como é que seria a relação dele, um homem bastante ligado ao regime, o que até é dizer pouco, ter um filho que é um preso político, como era o rótulo em que te encaixavas?
Ele era muito ligado ao regime, porque teve um percurso em que se associou, em que defendeu e esteve engajado.

Ele foi presidente da Fundação Eduardo dos Santos (FESA) e teve que mais funções?
O posto principal dele era diretor nacional do INACOM, do Instituto Nacional de Comunicações, e foi esse posto que ele acumulou com o de presidente da FESA. Quando saiu da FESA continuou com esse cargo. Mas antes disso teve outros, alguns deles um pouco menos confortáveis de falar. Ele não falava muito comigo sobre isso. Mas também não me ralhava, nem tentava impedir que eu pensasse por mim. Quando eu começava a tentar dar sinais de estar insatisfeito com aquilo ele tentava dar nuances e demonstrar que as coisas não são lineares, mas sempre com muita candura, muito calmo, sem se chatear comigo. O meu pai não era tipo um hardliner do regime. Trabalhava lá dentro, mas não é daquelas pessoas que vai à televisão defender e que chega a casa e que tenta impingir-nos aquilo. Nunca, nunca o meu pai tentou me convencer sequer a aderir ao partido ou ter cartão de militante ou participar numa reunião dos Comités de Ações Políticas, os CAPs. Nunca. Portanto, eu sentia, e depois olhando em retrospetiva, que ele já não se identificava muito com aquilo, mas estava preso lá dentro.

No diário escreveste uma letra de uma música chamada ‘Carta a um pai que já se foi’. Como é que chegaste a isto? Isto foi logo no início. Começas a escrever dia 3 de julho e no dia 4 já estás a escrever esta letra. No segundo dia com papel e caneta escreves uma carta ao teu pai.
Eu pensava muito nele, pensava muito nele. Não voltei a pegar nisso, desde que saí não voltei a pegar em nenhuma dessas letras que estão aí. Mas, sim, isso demonstra se calhar o quanto eu pensava nele e quanto eu imaginava como é que poderia ser, como é que teria desenvolvido a nossa relação, até que ponto é que teria sido sustentável eu fazer o que eu faço sendo ele quem era. Pá, eu amava o meu pai, obviamente, independentemente de tudo é meu pai. Há coisas sobre ele, que ele fez e eu que eu não sei. Mas, pronto, sei que ele escolheu estar de um lado que agiu mal e que fez mal e que criou esta situação em que todos nós vivemos hoje.

E como é que lidas com o facto de teres um pai que amavas e ainda hoje amas, e ao mesmo tempo dizeres que houve coisas que se calhar ele fez e tu não sabes? Como conjugas esse esse amor que lhe tens e essa incerteza?
Não sei se seria muito justo julgá-lo pelos erros que cometeu, porque eu sei que ele acreditava que estava a fazer bem, que estava a fazer pelo melhor, não dele mas do país. Enfim, se fez alguma coisa de grave obviamente que não vou dizer… Agora, neste momento, só a História é que o pode julgar. Se ele estivesse vivo e fosse alguma coisa muito grave em que ele tivesse estado envolvido, teria de aceitar. Não ia deixar de ser meu pai, não teria deixado de sentir o que sinto por ele, porque ele foi um pai excelente. Foi um pai incrível e não sei se me poderiam ter dado uma educação melhor em casa. Tenho de lidar com isso da forma possível. Entender que o que nós somos hoje não é necessariamente o que nós vamos ser amanhã e que podemos arrepender-nos. E não temos de estar permanentemente a chorar pelos erros do passado. Choca-me termos de aceitá-los e transformá-los para o presente e para o futuro.

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Vives bem com o rótulo de filho rebelde de regime ?
Com naturalidade. Não deixa de ser verdade. Não tenho como me ofender com isso, não deixo de ser um filho do regime. Se eu pude estudar nos colégios, se pude depois ir estudar fora, se tive acesso a uma educação de qualidade, se o meu pai me podia financiar isso, foi porque eu beneficiei das injustiças e dos desequilíbrios que este regime criou. O regime do qual o meu pai fazia parte. Eu nasci no seio dele. Portanto, eu não deixo de ser um filho do regime. Então, não me posso ofender com isso. É um rótulo, é mais um rótulo, a gente leva com tantos. Eu também não sou propriamente apreciador do rótulo de revolucionário, não gosto. Não me descrevo assim.

Como é que te descreves, então?
Um cidadão consciente e intolerante à injustiça e que não aceita viver sob o jugo do medo. Acho que em Angola isso, só isso, se calhar é ser revolucionário, porque é preciso desafiar muita coisa. É preciso estar disposto a não ter emprego, é preciso estar disposto a levar com paus, é preciso estar disposto a levar com cocaína na roda da bicicleta, levar com essas coisas… É preciso estar disposto a isso. Mas sem fazer nada demais, ? Tipo, reivindicar algo que até já está na nossa lei, que até já está na nossa Constituição. Não acho que isso seja revolucionário. Revolucionário é transformar imediatamente e ir para o choque, ir para o combate. É preciso extremar posições e pegar na AK. Não é o meu caso. Eu não me vejo assim. Mas são rótulos e a pessoa vive com eles. Todos nós temos. Gordo, magro, alto, mau jogador, mau amante, bom nisso, mau naquilo… Eh, pá… Parvalhão, engraçado, cómico… Todos nós levamos rótulos e todos nós damos rótulos aos outros. Então, pronto. Tenho que aceitar só com naturalidade. Filho do regime é só mais um deles.

Há prejuízos claros que saem de tudo isto. Falas de vez em quando da tua filha, de como não te lembravas da cara dela, ou como me disseste noutra entrevista que quando voltaste para casa ela não te reconhecia e tinha receio. Eras um estranho em casa.
Não é o momento em que ela olhou para mim como um estranho, é o momento em que ela olhou para mim como se eu fosse uma alma do outro mundo. Como alguém que tinha desaparecido sem dar nenhum aviso e de repente acha que pode vir de novo para aquele espaço onde ela se habituou a viver sem a minha presença. E houve ali um momento que foi difícil para mim, obviamente, isso foi das coisas mais difíceis, sentir que ela ficou um pouco traumatizada, porque começou a gritar. Ela não lida assim com nenhum estranho que entra ali em casa. Portanto, não era como se eu fosse um estranho. Se fosse um estranho ela ia cumprimentar. Mas, não, ela não quis ir para ao pé de mim. Ela gritava. Não sei como entra na cabeça de uma criança de um ano e meio a ausência súbita e repentina de uma pessoa que passava com ela todos os dias, desde o momento em que ela acordava, até ao momento em que ia dormir. E isso terá sido o momento mais difícil.

Mas achas que uma criança de um ano e meio será capaz de pensar tanto nisso? Não estarás a transformar isso para ti, que és a pessoa que melhor sabe dizer o que verdadeiramente se passou? Ela não tem como saber. No fundo, a tua filha tornou-se no teu calcanhar de Aquiles.
As pessoas tentaram jogar essa carta para me convencer de algumas coisas. De deixar essa vida, ‘olha a tua filha, não vais deixar uma órfã’, como depois para desistir da greve de fome. Mas eu de certa forma blindei-me. Porque eu sabia que esse ia ser o meu ponto fraco. Eu sabia que se a visse, se tivéssemos algum tipo de contacto, podia fraquejar. E eu tive a ocasião de ter esse contacto lá na [Clínica] Girassol [em Luanda, onde Luaty foi internado na última fase da greve de fome], podia ver quem quisesse e escolhi não vê-la. Sei que é mesmo o meu calcanhar de Aquiles. É. Eu não sei o que é que ela pensou. Eu pedia à mãe para não inventar coisas do género “o papá está a trabalhar fora”, “foi viajar”. Não, não mintam à criança. Tentem explicar-lhe de uma outra forma. Mas o que eu senti foi que ela ficou ressentida. Ela ficou magoada por causa da reação que teve nas primeiras horas que nos voltámos a ver.

Vamos falar da greve de fome. Qual foi o teu processo mental para lidar com isto, quando já sabias que os outros ativistas tinham desistido, ao mesmo tempo que te contavam de manifestações com algumas centenas de pessoas em Lisboa?
Eu só tomei consciência que tinha todo esse movimento que se criou, sobretudo aqui em Portugal, quando cheguei à Clínica Girassol, já muito lá para a frente. Mas o processo… O Domingos [da Cruz, autor do livro que os ativistas liam quando foram detidos] mandou-me um recado a dizer que já estava de acordo com os outros e com as famílias e que íamos encetar a greve de fome. Para mim, uma greve de fome, não é algo com que se deva brincar. Se a gente começa uma greve de fome e exige uma coisa, enquanto não nos derem essa coisa nós não vamos parar por motivos secundários. E eu senti que a maior parte dos outros parou por não perceberem da mesma forma que eu o que é que queria atingir, ou por simplesmente não lhe darem a dimensão que a greve de fome devia ter, na minha perspetiva. Essa ferramenta é uma ferramenta muito séria. Estás a pôr em causa a tua própria vida.

Mas ficaste desiludido com eles por terem parado?
Não, não, não. Eu não fiquei desiludido. Se calhar, se calhar… Não, isso não vou dizer, deixa estar. Desiludido não fiquei. Eu acho que nós defendemos a liberdade das pessoas de fazerem aquilo que sentem, se se identificarem com as coisas que são propostas. E, querendo ou não, alguém propôs a greve de fome. Os outros aderiram à ideia e às vezes eu sinto que há uma pequena imposição moral. ‘Eh, pá, se os outros fazem então nós vamos fazer também.’ Eu sinto que as pessoas às vezes pegam nas coisas para se fazer o coletivo mas depois descobrem que afinal não têm estofo para aquilo. Eu não posso ficar magoado ou recriminá-los por terem parado. É uma decisão pessoal, é individual e mexe com coisas muito sérias. Então, pá, obviamente que posso dizer que lamento um pouco que não tenham refletido o que é que implicava antes de aceitarem, mas não fico ressentido por terem desistido. Eu optei por continuar, podia também ter optado por “ah, os outros desistiram eu vou parar também”. Não, mas eu capacitei-me do que é que aquilo implicava. O que é que significa. E das consequências que podia ter.

Isto era um discurso que já tinhas há algum tempo, até antes da prisão. Eras o kamikaze. A greve de fome podia ser suicida. Na altura foi grave.
Eu nem sei ainda se tem algum tipo de consequências, não sei em quanto tempo é que se podem manifestar as consequências da privação a que eu sujeitei o meu corpo. Agora vou aproveitar que estou cá [em Portugal] para fazer um check-up. Mas os médicos diziam-me: ‘Tu estás aparentemente bem. Mas a partir deste momento, a qualquer altura as coisas podem falhar.’ E, pronto, estás permanentemente com os pés à beira da falésia, a olhar pelo precipício.

Ou com o avião quase a dar no inimigo…
A querer decidir se puxas o paraquedas ou não!

Lembro-me de estar a ouvir a letra dessa música na altura em que estavas em greve de fome e pensava ‘o que se está a passar agora está escrito’.
É profético.

Não é só nessa música, na ‘Cuka’, com o Batida [projeto musical de Pedro Coquenão, amigo próximo de Luaty], dizes que ‘quem fala as verdades vai para o caixão’ ou ‘quem fala a verdade para o outro lado da cidade’.
Sim, só que com a diferença de ser eu a decidir deixar-me levar para a morte, eu não estava propriamente a fazer com que me matassem. Nos outros é: falas e eles depois matam-te. E ali a decisão era “eu vou deixar-me morrer”. Sim, não deixa de ser uma atitude um pouco kamikaze. Mas… Olha, felizmente as coisas acabaram bem, eu já tenho aqui um pouco de pneuzinhos recuperados e podemos rir-nos hoje disso. A coisa podia ter acabado bastante pior. Houve uma altura em que a minha mãe, antes de eu sair da prisão de Calomboloca, no 19º dia, quando senti que já estava a começar a perder os sentidos — aliás, vi tudo escuro, mesmo, percebi que era falta de líquidos e falta de açúcar, a urina já muito castanha — e a minha mãe disse-me que eu estava a cheirar a acetona. Aquilo para ela era um indício de que as coisas não iam durar muito mais tempo. Mas em momento algum a minha mãe me tentou convencer a desistir. A minha mãe foi muito forte.

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Ela sabia que não era possível convencer-te?
Ela sabe que sou obstinado. E, sobretudo, disse-me que não queria utilizar esse tipo de chantagem emocional, porque depois não se perdoaria se eu desistisse dos meus princípios, porque sabia que depois eu ia ter problemas de consciência. Ela não queria ser responsável por esses problemas.

Tens receio de ficares agarrado à imagem daqueles 36 dias de greve de fome e de ficar para sempre o kamikaze?
Não me posso permitir ter receio disso. Infelizmente, a maior parte das pessoas não vai aprofundar o nosso caso, não vai tentar saber o nosso background, o porquê da nossa luta. A maior parte das pessoas pegou naquele momento, que simbolizava algo em que acreditavam naquele momento, era uma um bocado como uma moda. Enquanto aquilo dura, as pessoas estão lá e congregam-se à volta. Depois de passar, passa ao próximo. Isso é o mundo de hoje. Se calhar sempre foi assim. As pessoas são de causas curtas. Há muitas causas para defender no mundo. “Este já está bem, já saiu da prisão, está fixe.” Eu tenho de aceitar isso e de saber viver com isso. O que eu penso é: se isso contribuir de alguma forma para que essas pessoas, quando ouvirem falar de Angola, prestem um pouco mais de atenção, porque já têm essas noções do que é que levou àquele momento, ganhamos qualquer coisa sempre. Nós queremos partilhar esse nosso sofrimento com todos. Eu estava a dizer há bocado que depois de todo o ruído, de panelas vazias a baterem, sobra qualquer coisa. E isso que sobra é bom. O que sobra são pessoas interessadas em informar-se e a fazerem coisas construtivas e consequentes.

Mas em termos concretos, o que é que sobrou deste processo todo? Vocês continuam a marcar alguns encontros e manifestações que, não sendo marginais, atraem muito poucas pessoas.
Sempre foram. O que sobrou disto tudo foi que agora temos uma voz que é ouvida com outro tipo de atenção, não só lá dentro como cá fora. Eu estou a vir de Genebra, fui convidado pela Amnistia Internacional para um evento das Nações Unidas para falar do nosso caso. Não sei mais quanto tempo é que este interesse vai viver. Mas também não estamos a ordenhar a vaca. Nós vamos continuar a fazer coisas. Independentemente de serem 15, a forma como se reage aos 15 é o que chama a atenção. Ultimamente nós estávamos muito focados no Dago, que foi libertado, e em fazer pequenos atos de provocação. Em Angola é muito fácil provocar, porque eles sentem-se confrontados por tudo e por nada. Então íamos fazendo pequenos atos isolados. Tipo, uma pessoa sozinha à frente da Comarca e ainda assim vem um batalhão da polícia completo, 20 pessoas, de mota, fardados, à paisana e criam um monte de confusão por causa de uma pessoa. E criam factos. Ou quando vamos visitá-lo eles fecham as portas da prisão e ninguém visita os seus parentes, criam factos. E acaba em bordoada e [somos] levados para a esquadra, sem acusação de novo. Criam factos.

Estás a usar a palavra “provocação”, que é forte e tem uma conotação que vos liga a uma ideia de que vocês estão a querer causar algo através da vossa ação.
Nós queremos, nós queremos causar algo.

O que se passou em frente à comarca de Viana é uma provocação vossa, também?
Não deixa de ser, mas nós fomos visitar uma pessoa. Chegámos, tirámos a senha e esperámos a hora da visita. Vimos a hora da visita passar e ninguém visitou ninguém. E fomos pedir satisfações. E ao pedir satisfações eles reagem sempre mal. E reagindo mal, nós não reagimos como eles querem…

Começaram a bater na porta…
… só é provocação porque eles criam as situações. Nós ali não fomos para provocar, mas tínhamos a ideia de que eles não iam querer que nós o visitássemos. Agora, tinham de nos dizer porquê. Legalmente. Tinham de falar em termos de lei, não é “nós não queremos, vocês não entram”. É isso que nós estamos a querer provocar. Nós queremos provocar que o Estado de direito se torne de facto num Estado de direito, não se torne só formalmente mas também de facto.

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Vocês ao fazerem isso têm perfeita noção de que vão ser agredidos, detidos de um momento para o outro…
Sim, a questão é porquê? Nós sabemos que eventualmente podemos ser agredidos. A questão é porque é que tem de ser assim? Nós não vamos lá [e dizemos] “vamos lá para eles nos agredirem e terem notícias!”. Não! Não é isso. Mas não vamos aceitar “vão-se embora”. Porque se nós temos a noção de que nos vão bater, então nós não marcamos nada. Não fazemos manifestações, ainda que com 10 pessoas, não fazemos nada. Rigorosamente nada! “Olha, o concerto está cancelado, aceita e vai-te embora para casa.” Então não fazemos nada! Se nós não reagimos, o que eles encaram como provocação e que nós próprios achamos que é provocação, porque sabemos que eles não querem que nada aconteça. Nós não podemos deixar que as coisas sejam assim. Nós queremos que se cumpra o que está no papel. Então não deixa de ser uma provocação, mas é uma boa provocação. É uma provocação pedagógica. É muito básico o trabalho que ainda tem de ser feito, é muito de sapa. E alguém tem de se dispor a fazer isso. Infelizmente são sempre 20, 30 ou 40, em pequenos grupos de 10 onde cada um faz as suas pequenas ações. Mas é necessário, porque o que nós queremos provocar é que as mentalidades mudem, que as coisas se abram e que esse tipo de gesto não seja interpretado como golpe de Estado.

Vocês estarem em frente à prisão, um a um, com cartazes, não é um golpe de Estado. Mas vocês, naquela sala, até 20 de junho de 2015, estavam a discutir um livro que falava dessas possibilidades em Angola.
Não do golpe de Estado, mas sim de forçar [a queda de um ditador] dentro dos marcos democráticos, ou seja, pressioná-lo para se demitir. A queda do ditador é ele próprio dizer: “Olha, ‘tá bem, tirei voado, paz! Não quero mais nada com isto e vou-me embora”. Técnicas pacíficas e legais de pressionar os dirigentes políticos a abdicarem dos seus cargos. Eu não vejo golpe de Estado aí, mas acho que o tribunal também não conseguiu provar. Basicamente era isso, nós estávamos a analisar o livro e a ler que tipo de ferramentas é que a gente pode aplicar no nosso contexto onde as pessoas têm medo por tudo e por nada. Não vou dizer que é praticamente impossível, o regime fez questão de nos dar a ferramenta melhor, prendendo-nos, e avançámos uns bons anos de trabalho. Porque convencermos as pessoas a protestarem, a reagirem, a darem a cara, não há nada mais difícil no nosso país.

Mas ficou mais fácil?
Não vou dizer que ficou mais fácil, ainda é muito prematuro para avaliar. Sinto que as pessoas estão a falar mais, mas ainda não estão a agir em conjunto. Mas fala-se muito mais do que se falava. As pessoas estão muito mais abertas. Eles próprios, para maquilharem um pouco, começaram a criar espaços na televisão e na rádio nos quais chamam pessoas com sensibilidades diferentes, que dizem coisas que já são mais ou menos em dissonância com aquela voz única. Há ali pequenas conquistas que estão a começar a transferir-se para o resto da sociedade, as pessoas sentem menos receio de falar. E nós que vivemos lá dentro sentimos isso. Pessoas que não vivem lá, mas que vão lá periodicamente, sentem isso muito mais do que nós e dizem que isto mudou muito. Ao nível da consciência das pessoas, de maturidade, de noção de conquista do seu espaço, mudou muito. Falta muito, obviamente, mas alguma coisa está a mudar ali.

O debate esquerda-direita não costuma acontecer em ditaduras. Geralmente, ou se é contra ou a favor do regime. Mas será que vocês já vão para lá dessa fase? Consideras-te uma pessoa de esquerda ou de direita?
Na pergunta anterior mencionaste, e bem, que nós continuamos a não conseguir congregar mais do que 15 ou 20 pessoas. Obviamente todos temos ideias a nível individual, mas como grupos ou coletivo não formalizamos o pensamento nessa forma tão já para a frente. E isso de esquerda ou direita é muito complicado. Há pessoas que parecem de esquerda que defendem coisas de esquerda ou socialistas, mas que depois vão aplaudir o golpe institucional no Brasil. Parece que as pessoas não estão informadas, não têm esse posicionamento tão contundente e que são um pouco mais livres do que esses rótulos de esquerda ou direita.

Mas acreditas que és uma pessoa de esquerda ou de direita?
Acredito que sou muito mais de esquerda, mas também não me quero fechar nesse rótulo.

Podes votar em Portugal?
Posso.

E alguma vez votaste?
Em branco.

Nunca votaste em nenhum partido aqui?
Nunca votei em nenhum partido mas, obviamente, se tivesse de votar em algum partido seria mais Bloco de Esquerda do que outra coisa.

Que foi talvez o partido que mais deu a mão à vossa causa na fase mais aguda.
Estou até a falar antes disso, ainda estava lá Francisco Louçã. Eu gostava de o ouvir e sentia sinceridade, naquilo que é possível num político.

Há uma parte no diário em que pedes que te levem o livro “Os Donos Angolanos de Portugal” [do qual Francisco Louçã é co-autor], e colocas lá na parte dos autores “três wís” [Em Angola, “wí” é usado como sinónimo “gajo” em Portugal].
[Risos] Yá, yá! Porque eu não me lembrava do nome de todos. Um deles é o Louçã, se não estou em erro.

É o Francisco Louçã, sim. Gostas desse wí?
Gosto, gosto dele. Mas não vou dizer que gosto e que sou incondicionalmente dessa pessoa. Eu vou vendo as intervenções e vou simpatizando mais ou menos. Eu simpatizava por exemplo com o Guterres. Simpatizava por exemplo com aquele que foi diabolizado agora, o [José] Sócrates.

O José Sócrates comparou-se a ti, soubeste?
Soube, soube. E gostei da resposta do Daniel Oliveira. Ele mandou uma coisa curta, naquelas dicas do fim, para fechar, e ele disse [Luaty imita a voz e os gestos do colunista do Expresso]: “Eh, pá, só para fechar, eu queria dizer que acho que é incrível o Sócrates ter tido o topete de se comparar…”. Eu só fiquei a rir, ? Mas, comparações à parte, eu gosto é de sentir que elas são sinceras, que são honestas. Que não estão a tentar convencer alguém de alguma coisa, que têm ideias próprias. E eu sentia esse tipo de simplicidade no Guterres — que depois vai sendo confirmado com pequenas ações, acho que ele anda num Skoda. Isso diz muito, para mim. E sentia isso com o Sócrates, que tinha um programa na televisão. Mas eu não seguia tudo. Sou muito cético em relação aos políticos e alguns deles são mestres na arte de quererem fazer de sinceros.

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Há muita mestria na política portuguesa em relação a Angola. Talvez já não haja tanta porque o petróleo já esteve mais caro. Mas houve partidos que hesitaram tomar uma posição em relação ao teu caso, desde o PSD e o CDS, que estavam no Governo, ao PCP. Na qualidade de cidadão português, como é que encaras isto?
Alguns deles, mais dentro do PS e do PSD, têm negócios lá em Angola, como está demonstrado nesse livro que citaste há bocado. E têm interesses particulares, que obviamente vão interferir com a sua consciência. O dinheiro fala mais alto. Agora, o PCP… Não é uma questão de dinheiro, é uma questão de ortodoxia jurássica da qual eles não se conseguem livrar, nem mesmo com estes jovens. Há uma disciplina qualquer ali, porque são camaradas da Internacional Socialista. O MPLA não devia estar na Internacional Socialista, já não é socialista há muitos anos! O Presidente, ele próprio, declarou que estava aberta a “acumulação primitiva do capital”. É estranha essa fidelidade canina — e neste caso não me parece ser financeira ou económica, posso estar a ser ingénuo —, mas não me dececiona, já estava preparado para isso. Prefiro ficar contente com os que fazem. Houve alguns deputados do PS, mas sobretudo do Bloco de Esquerda que foi muito firme. Mas não é dizer que por isso eu, votando, vou votar no Bloco. É o partido com que eu mais me identifico, gosto de ver aqueles jovens com garra, que confrontam e que vão à comissão do [Banco] Espírito Santo e cascam no homem. Porque aquilo foi uma brincadeira, aquela vossa comissão aí! Gosto dessa garra, gosto dessa energia.

Publicas este teu diário com a Tinta da China, que é de longe a editora em Portugal que está mais investida na denúncia deste ângulo de Angola e que já arranjou problemas legais por causa de livros como o “Diamantes de Sangue” do Rafael Marques. Alguns destes problemas sobraram para a Bárbara Bulhosa. É uma editora militante, concordas?
Ainda bem que ainda há pessoas assim. Capazes de desafiar o que acham que está errado e de dar voz àqueles que acham que precisam de ter voz. Ela está num país livre. Ela é um bocado como eu. Se alguém lhe diz de fora que se fizeres isso vou-te pôr tribunal, “então agora mesmo é que eu quero fazer! Agora é que eu vou fazer! Eu até só queria lançar esse livro porque gosto do Rafael, porque ele é boa pessoa e eu dou-me bem com ele, mas se é assim então agora deixa-me ver o que é que têm aí mais para publicar.” Eu faria isso. E acho que ela é um bocado assim também. Não sei até que ponto é que esse tipo de atitude terá jogado na decisão dela de querer publicar este meu diário, mas aprecio isso. Eu gosto de pessoas assim, porque as pessoas que vivem a pensar eternamente no que é que podem perder se fizerem o que a consciência lhes diz não são pessoas que vivem bem, não são pessoas que vivem tranquilas. Ficam calvos mais cedo.

Como é que achas que o teu livro será recebido pelas pessoas que são próximas do regime?
Depois de perder contacto com a maior parte dessas pessoas, também não sei como é que eles evoluíram como seres humanos. Não sei até que ponto é que têm conflitos interiores de pertencerem à bolha e não quererem rebentá-la. Mas sei que tem muita gente lá dentro que está satisfeita com o que nós estamos a fazer, que acha que é importante aquilo que estamos a fazer, que está satisfeita e que vai ler o livro. Alguns vão gostar e outros não. Alguns não vão gostar por causa do estilo, pela forma de eu escrever, de falar… Outros vão ficar surpreendidos porque não conhecem este meu lado, porque só pensam que eu sou só isso ou aquilo. Mas muitas dessas pessoas vão ter curiosidade de folhear esse livro.

Até José Eduardo dos Santos?
Não sei dizer. Espero que sim. Espero que sim. Para me conhecer um bocado melhor, ? Já que ele recusa desde 2011 o pessoal a dizer “convida-nos para o teu jardim, vamos conversar, sê um pouco aberto, ouve, aceita a diferença de opinião”. Se calhar com o livro vai ser um bocado mais fácil. Não sei, isto também não é a minha vida completa. É um momento do meu percurso no qual ele está grandemente envolvido e é parte responsável. No fundo ele criou este livro. Não haveria livro se não houvesse prisão.