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"Maina Mendes": a revolução silenciosa de Maria Velho da Costa

"Maina Mendes", de Maria Velho da Costa, foi publicado em 1969. Tem uma nova edição e permanece como obra impar, um dos livros mais radicalmente feministas da literatura portuguesa.

Aprendemos com Mary Shelley e o seu Frankenstein que a experimentação é sempre monstruosa, pois ela representa um fuga ao modelo vigente, uma potencia desestabilizadora, imprevisível, aberta ao caos. Assim são as criaturas, mais do que personagens, de Maria Velho da Costa (1938-2020). Elas são mulheres inclassificáveis, que desestabilizam o pensamento, a linguagem, elas não se prestam a serem dominadas pelos leitores como uma forma de entretenimento ou escapismo. Em Maina Mendes, a sua primeira obra de fôlego (e que fôlego!), como em todos os romances que se lhe seguiram, a escritora nunca temeu alienar leitores, escrever para poucos, usar jogos de linguagem que escapam aos nossos padrões de pensamento e que, sobretudo, escapam à lógica do romance realista-naturalista, que, ainda hoje — sobretudo hoje — faz as delicias de leitores e rende muitos euros às editoras.

É bem provável que hoje a obra polifónica e experimentalista que sempre foi a de Maria Velho da Costa não achasse editora, não obstante ela ser uma autora de uma das obras mais radicalmente feministas da literatura portuguesa e apesar de Maina Mendes nunca ter tido, até hoje, neste tempo de todos os feminismos, nenhuma obra com a qual possa ombrear. A reedição pela Assírio & Alvim convida-nos e descobrir Maina Mendes, que através do seu silêncio obstinado faz ruir toda a lei patriarcal de uma linguagem feita por — e para — o domínio dos homens sobre as mulheres.

Circula a ideia de que há um acordo tácito de entendimento entre escritores e leitores, em que os primeiros escrevem para entreter os segundos, tendo subjacente a lei de mercado, em que é preciso vender, logo, é preciso escrever coisas que vão ao encontro dos desejos e interesses dos leitores. O sentido da narrativa tem que ser claro e facilmente compreensível, nada que dificulte a tarefa, nada fora do modelo para que possam ser alavancadas as vendas. Até na poesia a regra é a do realismo e do muito sentimento e pouco pensamento, pouca dificuldade, pouco atrito.

A capa de "Maina Mendes", de Maria Velho da Costa, na reedição da Assírio & Alvim

Maina Mendes foi publicado pela primeira vez em 1969 e, em 1977, foi-lhe adicionado um prefácio de Eduardo Lourenço que se mantém nesta edição da Assírio & Alvim. O livro é o oposto de todo este suposto acordo tácito e, em 1969, quando foi publicada pela Moraes (ao mesmo tempo que a A Noite e o Riso, de Nuno Bragança, outra obra excêntrica face aos modelos vigentes na altura), Portugal vivia, apesar da ditadura, um momento de grande abertura ao experimentalismo literário e poético; foi a década do grupo  Poesia61, da Poesia Concreta de E.M e Castro, Salette Tavares, Ana Hatherly, de Os Passos em Volta de Herberto Helder.

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Foi também a década em que as mulheres entraram em força na literatura até então quase só masculina, com a honrosa exceção de Agustina Bessa-Luís. Isabel da Nóbrega, Maria Judite Carvalho, Natália Nunes, Fernanda Botelho, Maria Isabel Barreno traziam novos mundos, novas paisagens à literatura lusa. Havia uma disponibilidade dos leitores para serem instabilizados, para a surpresa, para a luta com o texto que não se dá a ver, que não se presta ao sentido literal, como acontece atualmente com a ditadura dos bestsellers e suas narrativas convencionais.

Como escreveu João Barrento, o romance de Maria Velho da Costa é “um espaço de desordens (…) em que figuras de mulheres atravessadas por uma pluralidade de vozes e atravessando os caminhos da recordação subjetiva procuram chegar a si mesmas e à linguagem, a uma voz que possam chamar sua”.

“Maina Mendes” e o poder da recusa

O enredo do romance Maina Mendes é simples, embora inovador para a época, em que vingavam os romances neorealistas e presensistas: conta a vida de Maina Mendes ao longo de três gerações: Maina, o seu filho Fernando e a sua neta Matilde. O livro divide-se em três partes, onde se ouve primeiro o silêncio de Maina, depois a voz do seu filho mentalmente fraco, Fernando, e por fim a voz babélica de Matilde, ou Holly. Cada parte do livro sub-divide-se em várias secções, cada uma delas presidida por uma citação. Estas citações podem ser em qualquer língua e não têm tradução no rodapé. A utilização de várias línguas misturadas com o português será, a partir daqui, muito usada por Velho da Costa nas suas obras como símbolo de abertura ao outro, à pluralidade sem fim de que é feita a vida.

Maina não fala, o seu silêncio é uma recusa e um gesto de protesto absolutamente radical. Para não se assemelhar à mãe e às outras mulheres, como a criada Dália, para subverter as regras, Maina recusa aquilo sobre o qual qualquer lei humana se suporta: a palavra, a linguagem, o discurso. Ao recusar-se a falar, Maina rejeita a lógica patriarcal do mundo.

A grande questão deste romance é a linguagem. Maina Mendes, menina burguesa fechada em casa, a viver entre mulheres que aceitaram passivamente a sua condição de subalternas, submissas, educadas, vive dentro de um mundo cerrado que lhe exige que cumpra um destino igual. Mas Maina, mesmo sem o saber, carrega o germe da mudança, da recusa, da liberdade radical. Maina é um ser individual, soberano, dona de si e do seu destino.

Os vidros das janelas estão opacos e desenha-se com a ponta do dedo um arco de correr e o pau de guiá-lo. (…) Maina Mendes, cujos dedos põem ainda entre si e o vidro (…) os círculos do barco a vapor e depois as lâminas de uma tesoura aberta. (…) Maina Mendes desenha a dedo fugas moventes na névoa que da boca seca cai ao vidro. Muitas crianças o fazem (…) mas nenhuma com tão pouca alegria e tão quieta ira. (…) desenhando no vidro com tal rancor, coisas que (…) não são do rapaz oculto na menina sã a desbravar, mas antes de uma fúria de fêmea e atilada.”
[“Maina Mendes”, Maria Velho da Costa]

É assim, através de uma janela, encerrada do lado de dentro, atrás do vidro embaciado, que entrevemos a criança Maina, quase só um vulto, sem contornos definidos, enigmática, fora do tempo. E assim será durante toda a história: nunca a veremos claramente, também quase não ouvimos a sua voz. Apenas um gesto obsceno que ela faz à mãe, a bofetada que leva em troca e depois o silêncio e o desagregar de todo o edifício lógico. Maina emudece (e enlouquece?). Há um médico que garante que a mudez da menina não tem causas físicas, mas é uma questão de humores alterados.

Maina não fala, o seu silêncio é uma recusa e um gesto de protesto absolutamente radical. Para não se assemelhar à mãe e às outras mulheres, como a criada Dália, para subverter as regras, Maina recusa aquilo sobre o qual qualquer lei humana se suporta: a palavra, a linguagem, o discurso. Ao recusar-se a falar, Maina rejeita a lógica patriarcal do mundo. A linguagem, tal como o pensamento que nela se expressa, lógico, racional é da ordem do paterno, enquanto a linguagem sem lógica, aberta a todos os jogos de sentido que as crianças têm quando aprendem a falar, é da ordem do materno, como explicou o psicanalista Lacan. Maina, muda, regride a esse mundo sem regras e aberto a todos os possíveis que é a língua materna, e torna-se símbolo de um mundo (e de um país) por vir, onde a palavra do ditador e do masculino daria lugar à palavra no feminino: a palavra sem regras, emancipatória, livre.

Maria Velho da Costa em 2013, quando recebeu o prémio Vida Literária

PEDRO NUNES/LUSA

A incomunicabilidade de Maina só cessa com a cozinheira Hortelinda, o único ser humano ao qual ela se consegue ligar, uma vez que ambas pertencem ao universo dos excluídos; Hortelinda por ser pobre, Maina por ser muda. Não obstante vir a casar e tornar-se mãe, só com Hortelinda ela criará um vinculo afetivo profundo, daí que a morte desta corresponda a um novo colapso e internamento de Maina, presumimos, num manicómio, do qual só sairá anos depois.

A sua mudez misteriosa é, sobretudo, uma resistência passiva intransigente e inamovivel, como a que encontramos em Bartleby de Herman Melville, ou em Elisabeth Vogler, no filme “Persona”, de Ingmar Bergman. Mas ao contrário destes, Maria Velho da Costa entra na cabeça de Maina Mendes e confronta o leitor com uma linguagem que visa trazer-nos o inconsciente da persongem. Aproximamo-nos de Maina, não através do que os outros dizem, mas sendo confrontados com os seus pensamentos como se fosse poesia virada do avesso; golfadas e golfadas de palavras que não obedecem à lógica nem à sintaxe, que nos impedem de captar um sentido, um sentimento, palavras que cavalgam ante os olhos do leitor que se sente apanhado no labirinto insuportável da desrazão.

O romance de Maria Velho da Costa é também símbolo do seu destino como mulher e escritora, numa sociedade e num meio literário determinado e organizado pelo masculino. Com este seu primeiro romance, a escritora posiciona-se automaticamente num registo de liberdade total em relação aos cânones literários e sociais de um país que vivia sob uma ditadura moralista e conservadora.

Fora do tempo e fora do mundo racional, o leitor incauto é aprisionado na sua teia. Através da polissemia das palavras, Maria Velho da Costa faz-nos entrar no silêncio também polissémico de Maina Mendes. Mas fá-lo de uma absoluta brutalidade. Aqui não há traços a indicar silêncios, não há pontuação, cesuras, espaços em branco. Só palavras em torrente. Para chegar a compreender este livro é preciso passar pela prova de fogo que é o mundo interior da criança muda que se recusa a ser o que esperam dela, que só consegue levar a sua avante porque se auto-exclui do processo de trocas comunicativas.

O que literalmente — e literariamente — falando deixa sem voz a atenta criatura, filha imaginária de castros esboroados e negros e intima conivente de labaredas familiares, não é, senão em segundo grau, a violência masculina, mas a diferida e inversa violência da passividade maternal contra a qual ergue o seu punho infantil possesso de milenar protesto sem palavras.”
[Eduardo Lourenço, no prefácio de “Maina Mendes”]

Na segunda parte do livro encontramos o filho que Maina deixou entregue ao pai. Estamos no mundo masculino, portanto a linguagem volta a ter sentido. O monólogo deste filho, que tenta compreender a sua história à luz da loucura materna, devolve-nos a uma linguagem lógica, pois ele, sendo homem, fala e pensa (linguagem e pensamento nunca estão desligados) segundo a lei patriarcal.

Maria Velho da Costa, a escritora maior do que o seu mundo

Na terceira, e última parte, ouvimos Matilde, neta de Maina, aquela cuja liberdade de ser nos fala em fragmentos de texto escritos em várias línguas, remetendo para um mundo babélico aberto à alteridade, aberto ao mundo — ao contrário de Maina, sempre fechada no lado de dentro de uma janela, sempre um vulto. Matilde aparece-nos nas cartas que escreve ao pai, que acabará por se suicidar. A sua morte representa (todos os homens neste livro morrem) a morte da lei patriarcal e a aurora de um novo mundo onde as mulheres não querem dominar como dominam os homens, mas ter direito a uma liberdade e a direitos iguais. Assim, de certa forma, o romance de Maria Velho da Costa é também símbolo do seu destino como mulher e escritora, numa sociedade e num meio literário determinado e organizado pelo masculino. Com este seu primeiro romance, a escritora posiciona-se automaticamente num registo de liberdade total em relação aos cânones literários e sociais de um país que vivia sob uma ditadura moralista e conservadora.

Por ser um livro radicalmente experimentalista, que se desprende das normas e se abre ao caos do que é múltiplo, do imprevisto, não é uma novidade editorial, mas é um livro incessantemente novo.

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