Na era do streaming, há dois cenários que convivem em simultâneo: uma bolha pessoal, meticulosamente preenchida, canção a canção, resguardada das tentações do algoritmo; e a praça pública, onde o povo se congrega em redor de uma mão-cheia de canções. No final do ano, acontece a colisão cósmica e enquanto partilhamos orgulhosamente as nossas escolhas, as plataformas de streaming rompem a bolha. Afinal — quem diria — Portugal inteiro não está a ouvir as variações melódicas intrincadas de Geordie Greep, mas um funk malandro a propósito da possibilidade de rebolar os glúteos, com a mãozinha na parede.
No início do mês, o Spotify, a principal plataforma de streaming de música, publicou as dez canções e artistas do ano mais ouvidos em Portugal, a seco, sem mais aquela, e agora parecem dizer-nos “contentem-se com este ínfimo retrato da complexa praça pública da canção portuguesa”. Uma lista avulsa de dez canções não responde à principal questão: o que distinguiu este ano dos restantes? O Observador analisou os dados públicos do Spotify, com base nos dez lugares cimeiros que a plataforma disponibiliza semanalmente e revela um ano de alterações de paradigma, assim como de continuidade.
A América fez-se ouvir outra vez
Primeiro, a alteração de paradigma determinante: os ouvintes portugueses foram às cabines de voto da música e elegeram os EUA. Em 2024, entre as 520 canções analisadas, a nacionalidade mais ouvida é a norte-americana, um regresso ao pódio após anos de domínio dos músicos brasileiros e portugueses. A escalada foi íngreme: há dois anos, era apenas a quarta nacionalidade mais ouvida em Portugal; no ano passado, apenas 8% das canções eram norte-americanas, hoje são 32%; temos que recuar até 2020, ano de pandemia, para reencontrar uma liderança norte-americana.
Antes que digam “eu já conheço a culpada desta cantiga e ela chama-se Taylor Swift”, neste que foi o ano da graça da Eras Tour no Estádio da Luz, fiquem a saber que a autora de The Tortured Poets Department não tem uma única canção no pódio português (mas foi a artista mais ouvida na plataforma pelos respeticos assinantes em Portugal). Esta é uma das marcas de 2024 que provocam ataques de ansiedade aos executivos da indústria musical: o single de sucesso é um tiro no escuro. As duas canções norte-americanas mais populares em Portugal são de Teddy Swims e Benson Boone e se nunca ouviu estes dois nomes, esse é precisamente o ponto. A segunda canção mais ouvida do mundo, Beautiful Things de Benson Boone, é um dramalhão rockeiro nascido no TikTok, e Lose Control de Teddy Swims é soul de um autor de versões do Youtube, à espera de ser entoado em concursos de talentos de melismas vocais.
O melhor exemplo do caos discográfico é o êxito estrondoso de Espresso de Sabrina Carpenter, a obra-prima da pop de 2024, de uma cantora que, depois de uma extensa discografia que não aquecia nem arrefecia, reinventou-se como espalhafatosa sedutora e chegou-se à frente com a canção mais popular do mundo — novamente, para desespero das editoras, nenhum astrónomo conseguiria prever a trajetória deste cometa.
Além dos caloiros, há ilustres repetentes. A polida Birds of a Feather, de Billie Eilish, confirma que, após as obstinações experimentais adolescentes, a voz da californiana pertence a uma tradicionalista pop, mais Barbra Streisand que Madonna. A cantiga comezinha do ano, pronto a servir na FM, é Die With A Smile, de Lady Gaga e Bruno Mars, que agradou particularmente os portugueses, sendo a canção que mais semanas liderou no Spotify em Portugal.
Canções mais ouvidas em Portugal no Spotify em 2024
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- “Tata”, Slow J;
- “Bênção”, Mizzy Miles com Van Zee e Bispo;
- “Alô”, Dillaz com Plutónio;
- “Beautiful Things”, Benson Boone;
- “‘POCPOC”, Pedro Sampaio;
- “Lose Control”, Teddy Swims;
- “Carro”, Bárbara Bandeira com Dillaz;
- “Gata Only”, FloyyMenor com Cris Mj;
- “Si No Estás”, Iñigo Quintero
- “Birds of a Feather”, Billie Eilish
E o que dizer de Not Like Us, o epílogo da rixa entre Drake e Kendrick Lamar? O rapper de Compton derrotou o canadiano na sua própria categoria — as canções de encher um estádio — e ainda, com o dano colateral de milhões de pessoas a sugerirem jocosamente que Drake é, não há outra forma de dizê-lo, pedófilo — “Tryna strike a chord and it’s probably A minor”, versa Kendrick Lamar em Not Like Us. O beef promete novos capítulos em 2025, desta vez judiciais, após Drake processar a própria editora, que partilha com Kendrick Lamar, e o Spotify, pelo alegado inflacionar da canção — repetimos uma última vez, foi um ano especialmente aflitivo para as grandes editoras.
Mais mulheres e menos bandas
A segunda alteração de paradigma em 2024 é uma história ainda por desenrolar: ouvem-se cada vez mais artistas mulheres em Portugal. Além das anteriormente mencionadas — Sabrina Carpenter, Billie Eilish e Lady Gaga — destaque ainda para a brasileira Luísa Sonza, com o funk ligeirinho Sagrado Profano. Os homens ainda lideram em larga distância, constituindo 71% das canções analisadas, contudo, de ano para ano, os portugueses clicam em mais música protagonizada por mulheres: hoje, representam 29% das canções de sucesso, um aumento de 2% em comparação com o ano passado. E tenhamos em conta que, há dois anos, representavam somente 16%. 2024 é, portanto, um marco significativo.
A terceira remodelação na praça pública da canção que se ouve em Portugal via streaming é mais uma confirmação do que uma revelação: a morte lenta das bandas. É inegável, os grupos com canções populares são uma absoluta raridade e estão a desaparecer dos lugares cimeiros das tabelas. Vejamos os números: em 2021, 36% do top 10 semanal é constituído por bandas, em 2022 é 34%, 2023 desce abruptamente para 24%, e agora estamos em 20%. A tendência é agravada pelos avanços tecnológicos que permitem uma excelência da autoprodução: hoje, os projetos musicais nascem, moldam-se e dão-se a conhecer sem que o músico solitário precise de sair de casa. E sejamos honestos: quem é que tem tempo para gerir egos, dividir royalties, e encontrar uma sala de ensaios?
O regresso do rock e outras canções “giríssimas”
Apesar das mudanças significativas, há uma continuidade evidente no gosto musical português, estabilizado há três anos: os portugueses ouvem essencialmente — e por esta ordem — pop, hip hop e funk brasileiro. Além dos três géneros que reinam em Portugal, não há indústria de renovação mais feroz do que a musical e este ano assinalou o inesperado regresso do rock e da house music ao Olimpo do streaming. Os Linkin Park, agora com a vocalista Emily Armstrong a substituir o falecido Chester Bennington, carregam sozinhos o bastião do rock em The Emptiness Machine — a última vez que o rock esteve por aqui foi há três anos, com a versão Beggin dos Måneskin; e o DJ alemão Adam Port, na companhia de Stryv e Malachiii, resgatou a house em Move, um saracoteio que os portugueses apreciaram durante a época balnear.
Em sentido oposto, o reggaeton, outrora um garante nas pistas de dança, praticamente desapareceu da vista, exceção feita ao chileno FloyyMenor, em Gata Only. Os ritmos calientes hoje são outros: o merengue sedutor de Karol G em Si Antes Te Hubiera Conocido, uma música “giríssima”, segundo o crítico de música Pedro Santana Lopes, um bailarico que o faz “lembrar várias coisas” — e que ninguém duvide das lembranças deste lendário notívago; e o arrocha Só Fé, de Grelo, o músico brasileiro que não precisa de muito, não, só pede a Deus saúde, cachaça, pensos higiénicos para a mulher e leite para o bebé — digam-nos que outro povo consegue, com este balanço inebriante, colocar uma lista de supermercado num refrão.
Há dois anos, a música brasileira representava metade das canções mais ouvidas em Portugal. Entretanto, o cenário mudou radicalmente e constitui agora somente 25% do bolo do streaming, atrás dos norte-americanos e portugueses. Por outro lado, 2024 é ano da consolidação do trap brasileiro, estas odes à sensualidade, ostentação e narcotráfico não nos devem largar tão cedo; e o baile funk ainda mexe, este ano destacamos o hino anti-tribalista Não vou namorar — imaginem que Marisa Monte, como diz a canção, já sabia namorar, mas optava pela pouca-vergonha.
Hip Hop Tuga: a tomar Portugal de assalto
A música portuguesa continua a gostar dela própria: o português é a segunda nacionalidade mais ouvida em 2024 — 27% das canções analisadas. O valor está dentro da média dos últimos anos, sendo que, a esta altura do campeonato, é melhor chamarmos as coisas pelos nomes: esqueçam a definição genérica de “música portuguesa”, estamos a falar essencialmente de hip hop tuga.
Canções com mais semanas seguidas no top semanal do Spotify
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- “Die With a Smile”, Lady Gaga e Bruno Mars (8 semanas)
- “Bênção”, Mizzy Miles com Van Zee e Bispo (7 semanas)
- “Sagrado Profano”, Luísa Sonza com KayBlack (6 semanas)
- “Tata”, Slow J / “Interestelar”, Plutónio (5 semanas)
- “MTG QUEM NÃO QUER SOU EU”, DJ Topo / “Move”, Adam Port, Stryv e Malachiii (4 semanas)
A canção mais popular do ano no Spotify em Portugal é Tata de Slow J, começou a escalada no final de 2023, subiu ao topo em janeiro e manteve-se à espreita. Agora, um ano e duas noites na Meo Arena depois, parece-nos um triunfo natural, mas lembram-se da estranheza que foi ouvir Tata pela primeira vez? Alguma vez em Portugal, a canção mais ouvida do ano dá-se a conhecer em kimbundu, embalada em tarraxinha, embrulhada em hip hop, numa meditação identitária de um homem à procura do seu país? Não é propriamente como ouvir as declarações melosas de Ivandro, que imperaram absolutas nos últimos anos. A sequência de Tata na liderança foi derrubada em pleno carnaval pelo POCPOC do funkeiro Pedro Sampaio, na mesma semana em que renasceu Ivete Sangalo com o hilariante pagodão Macetando, outro hino carnavalesco.
Em síntese, 2024 é mais um capítulo de glória para o hip hop tuga: os puristas podem desdenhar Bênção de Mizzy Miles, com a participação de Van Zee e Bispo, mas é hip hop — mais baladeiro, é certo, mas as batidas estão lá — e liderou a tabela durante sete semanas consecutivas. Alô, de Dillaz, é a terceira canção mais ouvida, do recomendado novo álbum do rapper de Alcabideche, O Próprio, onde não falta a habitual bufonaria de trocadilhos: “Na porta um aviso pá caça, que eu sou Rei Leão no meu lar/ Tou à espera que ela Mufasa, pa pôr a cueca a Scar”. No final de fevereiro, em 10 canções, oito eram de Dillaz.
O terceiro brilharete português, ainda a liderar o Spotify, é o Interestelar de Plutónio, que segue à risca o filme de Christopher Nolan, ora vejam: depois de um fulgor inicial, escasseiam recursos naturais de trap em Portugal, e este astronauta de Cascais aceitou lançar-se ao espaço numa missão urgente de salvamento — “Por isso hoje eu vou lá fora/ Entrar na nave e vou-me embora”. A vantagem é que, ao contrário do filme com o mesmo nome, aqui não há qualquer plot twist, Plutónio salvou-nos deste martírio; Carta de Alforria é o objeto raro em 2024, ao mesmo tempo que sobrevoa os restantes rappers, assenta os pés na terra — “Sou herdeiro duma luta doutra geração/ Continuo aqui, dói no coração/ Mesma honra, mesma luta desde a abolição”, elucida em Como 1 Rei.
Por último, não esqueçamos que estas canções correm numa pista muito particular, os algoritmos obtusos do Spotify, a plataforma que tem centralizado de igual medida as esperanças da indústria musical e o terror dos músicos. Em 2024, pela primeira vez desde o lançamento em 2006, o Spotify deve alcançar resultados de rentabilidade positiva nos quatro trimestres (ainda não se conhecem os resultados do último trimestre). É um virar de página que pode confirmar, finalmente, a sustentabilidade do negócio do streaming, depois do Spotify reestruturar a empresa no final do ano passado, incluindo o despedimento de 1500 trabalhadores.
Artistas mais ouvidos em Portugal no Spotify
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- Taylor Swift
- Dillaz
- Van Zee
- Slow J
- Plutónio
- The Weeknd
- Travis Scott
- Billie Eilish
- Drake
- MC Ryan SP
O Spotify é rei neste mercado, ainda mais na Europa — a título de exemplo, 40% dos assinantes do Spotify Premium são europeus. No último Loud & Clear, o relatório criado há três anos para responder aos críticos pela falta de transparência e sobretudo pelos pagamentos pífios aos músicos, o Spotify revelou que 15 mil músicos europeus ganharam mais de 10 mil euros em 2023; ainda são valores irrisórios em comparação com os tempos em que realmente se vendiam discos, mas demonstra um aumento de rendimento de, pelo menos, alguns músicos, e certamente das plataformas. Confirmando-se a rentabilidade da empresa, o que podemos esperar de 2025? As grandes editoras e distribuidoras a correr atrás de prejuízo, e os músicos independentes a pressionar cada vez mais pelo aumento das percentagens de pagamentos.