Parece um festival de verão, mas não é um festival de verão. E não é o facto de Álvaro Covões andar de um lado para o outro a dar ordens ou de a partir do palco nos chegarem ritmos de hip hop acelerados que vai provar o contrário.
O guru dos festivais “foi convidado a colaborar, gratuitamente, com a Unidade de Missão para a Jornada Mundial da Juventude da Câmara de Lisboa”, tinha revelado logo em janeiro a autarquia liderada por Carlos Moedas. Quanto a Joe Melendrez, MC e orador católico de Los Angeles, Califórnia, aos pulos no altar-palco — “Make some noise for Jesus!!!”, pediu assim que o pisou —, é apenas um dos vários artistas convidados para atuar esta terça-feira, dia 1 do evento, no Parque Eduardo VII, antes e depois da Missa de Abertura, celebrada a partir das 19h pelo cardeal patriarca de Lisboa.
Falta menos de hora e meia para o ponto alto do dia, que é o da abertura da Jornada Mundial da Juventude de Lisboa, ainda sem o Papa Francisco, que só esta quarta-feira de manhã aterra em Portugal.
Bem longe do palco erguido no cimo do parque, rebatizado durante esta semana como “Colina do Encontro”, dezenas de peregrinos aproveitam as sombras das árvores mais próximas da rotunda do Marquês de Pombal para fugir ao calor inclemente que se faz sentir. Enquanto isso, outros acumulam-se em torno das torneiras colocadas mesmo ali ao lado, em dispensadores de água “literalmente feitos para estrangeiros”, assinalarão horas mais tarde, já com a missa a decorrer, Rita, de 57 anos, e Teresa, de 70, sem acreditação de peregrinas ao pescoço mas moradas “mesmo ali em baixo” — “‘Water refill station’, diz aqui tudo menos água!”, queixar-se-á a primeira; “Acho que devia haver mais sítios de distribuição de água”, dirá a segunda, logo depois de assinalar o maior problema deste dia 1: “É muito difícil movimentarmo-nos ali dentro, às 18h já não se conseguia andar”.
São 16h40. Com a ajuda da colega Almudena, estudante de Direito na Universidade de Pamplona, Pilar, de 22 anos, ensopa os compridos cabelos castanhos numa das torneiras, numa retroversão admirável para qualquer praticante de yoga. Está de calções de ganga e t-shirt amarela de voluntário, com uma bandeira de Espanha pelas costas, e, ainda assim, a morrer de calor. Espanha pode ter fama de ser mais quente do que Portugal, explica, mas em Bilbao, de onde é natural, os termómetros raramente sobem além dos 25ºC. No Peru, acrescenta outra amiga, Maria Paz, dois anos mais nova, a estudar administração de empresas também em Pamplona, não é muito diferente. “No máximo, faz 28 graus. Mas está tudo bem”, assegura — e inaugura uma contagem que rapidamente se revelaria impossível de manter ao longo da tarde-noite. Mesmo quando identificam algum problema na sua experiência com este início da JMJ, os peregrinos fazem questão de garantir que não há problema, está sempre tudo bem.
Nem a propósito, no palco, Joe Melendrez continua a incentivar o público — “Hands up, everybody says Jesus!” —, mas as três amigas espanholas, ligadas ao Opus Dei em Navarra e encarregues de prestar assistência durante a Jornada aos peregrinos com mobilidade reduzida, garantem que não conhecem o artista, nem nenhum dos outros que já ali ouviram atuar. Em Espanha, diz Almudena, o que está a dar são os Hakuna, “um grupo católico que faz canções para jovens” e que não tem nada a ver com o lema celebrizado pelo Rei Leão (mas podia) — “Hakuna Matata, não há problema”.
Alojadas em Telheiras, no Colégio Mira Rio, pagaram o “Pack Peregrino” que, por 145 euros, lhes dá direito a transportes e alimentação numa série de estabelecimentos associados ao evento. “Temos uma app, que tem um mapa que indica os sítios onde podemos comer. Hoje estava tanta gente que tivemos de procurar um supermercado para comprar o almoço, era impossível. Mas não é um problema”, garante a voluntária, que ainda se inscreveu para a JMJ de Cracóvia, em 2016, mas não conseguiu vaga, estando por isso a experienciar pela primeira vez ao vivo e a cores o maior encontro de jovens católicos do mundo. De entre o grupo, só a peruana Maria Paz é repetente, em 2019 esteve no Panamá, com o colégio onde andava na altura. “Foi uma das melhores experiências que vivi. Desfrutei tanto que este ano quis ajudar outros peregrinos a ter a mesma experiência que eu, é uma forma de agradecer a quem me ajudou.”
Também ali à sombra, Marcos, de 62 anos, é uma espécie de líder do grupo de oito, todos brasileiros, todos ligados ao Caminho Neocatecumenal e à Paróquia do Bom Jesus dos Aflitos, em Águas Claras, cidade a 19 quilómetros de Brasília. Catequista, no currículo conta com três JMJ — Madrid, Rio de Janeiro e Cidade do Panamá —, quatro com a que esta terça-feira começou. Garante que a música alta e a animação são normais — “Não podemos esquecer que as Jornadas são feitas para os jovens. No Panamá estávamos a dormir na vigília quando fomos acordados pelos músicos”, recorda entre risos.
Convidado a fazer uma comparação entre eventos, começa por responder com diplomacia mas não esconde que, desde 2011, a fasquia tem vindo sempre a subir: “Cada situação é um caso diferente, os países estão-se aprimorando nos eventos e nas ofertas que vão disponibilizando, mas o mais importante é o propósito da Jornada, que é ser uma palavra de vida eterna”.
Tal como Almudena, Maria Paz e Pilar, também Marcos e o respetivo grupo, em que se incluem a mulher, Rita, e Fabrízio, João Pedro e Maxwell, três jovens estreantes nestas andanças, optaram pelo “Pack Peregrino”. Alojados em Almada, repartidos por quatro casas de famílias da Paróquia de Nossa Senhora da Assunção, tiveram dificuldades em juntar dinheiro para pagar os 10 mil reais (cerca de 1.900 euros) que a viagem custou, por cabeça, e tiveram dificuldades em almoçar esta terça-feira, dia em que Lisboa e arredores se começaram a encher de peregrinos de todo o mundo exceto Maldivas. “Esperámos 40 minutos na Padaria Portuguesa, é muita gente, podia haver mais sítios onde pudéssemos ir”, assinala Marcos, para logo a seguir garantir que não é um problema assim tão grande e que está tudo bem. “Isso não diminui em nada a festa.”
Lágrimas, quebras de tensão e transportes lotados: “Não dá para descrever, só chorar de emoção”
Se há coisa que poderá fazê-lo, têm avisado Proteção Civil e INEM, são as temperaturas elevadas que esta semana vão fazer-se sentir em Lisboa. E a verdade é que, neste primeiro dia, em que os termómetros nem chegaram aos 30ºC e não faltavam sombras, foram já vários os peregrinos a ter de abreviar a celebração.
Às 17h30, num dos dispensadores de água colocados no lado direito do Parque Eduardo VII — batizado há exatamente 120 anos para assinalar a visita a Portugal do soberano britânico, filho mais velho da Rainha Vitória, explicámos a Marcos e companhia, não sem antes consultar rapidamente o Google —, a fila de espera já chegava aos 15 minutos. Menos de uma hora mais tarde, junto às baias de acesso à zona do Pavilhão Carlos Lopes, por onde Marcelo Rebelo de Sousa acabara de passar, para gáudio dos peregrinos portugueses, são centenas as pessoas de credenciais na mão. “Sou do setor B. Preciso de passar, o meu grupo está ali”, vão pedindo, num sem número de idiomas diferentes, perante o olhar “não posso fazer nada” do segurança, que tão pouco fala outra língua que não português.
Apesar de cada credencial ter o seu setor, esta terça-feira, uma espécie de ensaio geral para a Cerimónia de Acolhimento marcada para as 17h45 de quinta-feira, já com o Papa Francisco no altar palco, os peregrinos não tinham obrigatoriamente de ocupar o seu lugar. Problema (talvez um pouco mais grave do que o número de restaurantes disponíveis com Menu Peregrino): essa informação não foi divulgada, pelo que centenas de pessoas perderam várias horas a tentar passar de um lado para o outro do Parque Eduardo VII, apenas para chegarem ao fim da linha e verem o caminho vedado.
Ali, junto à escadaria de acesso ao Pavilhão Carlos Lopes, por onde passou Marcelo e por onde continua a passar Álvaro Covões, de um lado para o outro, é o que acontece com Mathilde, de 19 anos, estudante de Versailles pela primeira vez numa Jornada. Está a chorar, sente-se mal, se não se sentar imediatamente vai desmaiar, explica Alice, a amiga que a amparou, já sentada nos degraus, o local para onde estão a ser encaminhados os peregrinos que naquela zona vão soçobrando: “Estamos há uma hora e meia a tentar chegar ao setor B02, não conseguimos passar, foram buscar-lhe açúcar, teve uma quebra de tensão”.
Nos minutos seguintes, ao colo de um membro do corpo de bombeiros, há-de chegar outra peregrina, que é imediatamente deitada na relva e hidratada, um dos socorristas a abanar um leque para a fazer melhorar. Antes da hora marcada para a Missa de Abertura, já com a orquestra alinhada sobre o palco, chegará mais uma, também indisposta, mas consciente. “A esta hora estão a começar a chegar estes casos, são muitas horas, está muito calor, as pessoas estão cansadas”, já tinha admitido um dos seguranças de serviço no local.
Cerca de uma hora depois, pelas 19h55, já eram centenas as pessoas que tentavam abandonar a Colina do Encontro, ainda antes de os voluntários dispersos pelo parque e arredores começarem a distribuir a comunhão — estava demasiada gente e temiam não conseguir jantar se saíssem mesmo no fim, explicou um dos peregrinos do grupo de 20 organizado pela paróquia de Lamego; estava demasiada gente e “uma das meninas passou mal”, revelou uma peregrina de um grupo de cinco, com origem no Brasil, “teve uma crise de ansiedade”.
Poderia ter procurado ajuda um pouco mais abaixo, junto ao Marquês de Pombal (que também tivemos de introduzir ao grupo do brasileiro Marcos, mas dessa vez sem recurso à ajuda da internet), mas não fazia ideia de que a “Tenda da Calma” existia, reconheceu a peregrina, de Pernambuco, a acompanhar o grupo de estudantes de São Paulo, com pouco mais de 20 anos.
Horas antes, sentada junto à tenda que é uma novidade nas Jornadas e que é partilhada com a APAV, a psiquiatra Margarida Neto já antecipava que este fosse um dos problemas esperados naquela unidade de saúde mental. “Ansiedade, ataques de pânico, fobias de não se conseguir sair de onde se está — situações simples deste tipo é o que esperamos receber. Outras situações como surtos psicóticos ou exaltações místicas, que são visões ou alucinações, são muito mais raros, não me parece que vão acontecer”, explicou a médica, psiquiatra na Casa de Saúde do Telhal, da Ordem Hospitaleira de São João de Deus.
“Aqui as pessoas são diferentes, isto não é um festival de verão, não temos aqui a Super Bock”, assinalou ainda, para depois garantir que, se a meio da tarde deste dia 1 ainda não tinha recebido ninguém a precisar de ajuda, também não tinha visto um único peregrino de copo de cerveja na mão. “Não são expectáveis situações de consumo de álcool ou de droga. É muito engraçado ver isto, é a prova de que é possível ter um estilo de vida saudável e fazer a festa”, apontou ainda a psiquiatra, católica, para depois revelar que em 1982, aquando da visita de João Paulo II a Portugal, esteve exatamente ali, no Parque Eduardo VII, munida de bidões de água, a dar água aos peregrinos, que traziam cada um a sua caneca.
Há 41 anos, Karen, Gabriele e Vinícius nem sequer existiam. Hoje, que têm 20, 21 e 18 anos, estes três estudantes brasileiros estrearam-se na JMJ — e destoam não apenas do grupo de 18 peregrinos em que estão incluídos mas de toda a multidão de olhos postos no ecrã gigante colocado em plena rotunda do Marquês de Pombal, pouco antes de Manuel Clemente dar por encerrada a Missa de Abertura. De olhos marejados de lágrimas, explicam que estar ali, de carne e osso, a viver um sonho que durante anos acompanharam pela televisão, “é uma emoção que não cabe”. “Não dá para descrever, só chorar de emoção”, diz Gabriele. “Vou continuar chorando até chegar ao alojamento”, admite Vinícius, o mais emocionado, já a descer a Avenida da Liberdade para começar a longa viagem de regresso até à Arrentela, Seixal.
Esse é outro problema, mas também de importância relativa, há de revelar pouco depois Maria, peregrina de 20 anos natural de Coimbra, instalada na zona de Belém — os transportes. Pouco passava das 16h desta terça-feira quando saiu do alojamento, para se por a caminho da missa. Acabou por chegar mais de três horas depois, já a liturgia da palavra tinha acabado. “Foi caótico. Os autocarros estavam cheios, os comboios estavam cheios, acabámos por ter de vir a pé. Mas está tudo bem.”