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Manter legado de Centeno, deixar obra feita e remendar conflitos. O plano de Medina, o político, nas Finanças

Medina apresentou o seu primeiro Orçamento ("meu, salvo seja") e deixou pistas sobre o que quer fazer nas Finanças -- incluindo mudanças em relação aos antecessores. Colegas também veem diferenças.

Depois de Mário Centeno, o independente, e João Leão, o técnico, chegou a vez de Fernando Medina, o político, apresentar o seu primeiro Orçamento do Estado. Seu, “salvo seja”, como disse o próprio ao apresentar o documento no edifício das Finanças, no Terreiro do Paço: o arranque do novo ministro começou com um documento já preparado em boa parte pela equipa anterior, condicionado pela conjuntura de guerra e com muitas promessas de continuidade da política de “contas certas”.

Mesmo assim, o ministro das Finanças mais político dos últimos anos fez questão de deixar clara uma ideia: Medina vai querer deixar um legado próprio nas Finanças e espera “ir mais além” na obra que quer deixar feita durante a maioria absoluta – sobretudo ao nível das empresas, área que a direita tantas vezes tem acusado os Governos Costa de descurar.

As diferenças para o antecessor imediato, João Leão, são palpáveis, tanto ao nível do estilo e da comunicação como, comenta-se no Governo, na relação com os outros ministros. Quanto a Mário Centeno, o pai das “contas certas” que Medina tanto preza, também há promessas de mudança – desde logo, no diálogo com instituições com quem as Finanças mantinham relações difíceis.

O Ministro das Finanças, Fernando Medina, entrega o Orçamento do Estado para 2022 ao Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Assembleia da República. Lisboa, 13 de Abril de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Medina entregou o Orçamento a Santos Silva à hora de almoço, antes da conferência de apresentação do documento

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Primeiro aviso: contas certas não são “adereço” dos ministros

Passava pouco das 14h30, hora marcada para a conferência de imprensa no Terreiro do Paço, quando Medina, ladeado pelos seus secretários de Estado, entrou na sala. Vinha do Parlamento, onde entregara o documento ao presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, e fizera a primeira referência do dia à importância das “contas certas”.

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Seria a primeira de inúmeras: na apresentação deste primeiro Orçamento, Medina justificou variadas vezes a continuidade dessa política que, no entender do Governo, prestigiou o país junto das instituições de Bruxelas e deu a Portugal uma “voz” mais firme no contexto europeu. “Temos anos suficientes de contas certas para saber que é a melhor arma”, afirmou. “São um instrumento vital”, acrescentou. “É a política que melhor protege os interesses dos portugueses”, rematou (são três exemplos, mas poderiam ser muitos  mais).

Mas acrescentou uma ressalva. Essas “contas certas” que pretende manter mesmo enquanto as metas orçamentais fixadas pela Europa estiverem suspensas, como estão desde o início da pandemia, e que já tinha ido defender ao Luxemburgo nas primeiras reuniões no Eurogrupo e no Ecofin, não são apenas o “adereço de qualquer ministro”.

Como Medina se apresentou à Europa para ser herdeiro de Centeno

Se Centeno ficou no vocabulário político português como o homem das contas certas – muitas vezes criticado pela oposição por não libertar verbas e cativar investimento público necessário – e chegou a ser descrito como “o Ronaldo das Finanças”, Medina fez questão de garantir que essa fama não ficará circunscrita a um ministro: é mérito do Governo liderado por António Costa e assim continuará, agora nas Finanças lideradas por Medina.

Medina em modo absoluto promete reformas (e golos)

Arrumadas as promessas de continuidade, o novo ministro deixou, ainda assim, antever a vontade de deixar “obra” feita. Desde logo, com um graça dita em resposta a uma jornalista que lhe perguntava pelas reformas que estão ausentes deste Orçamento: “Perdoem a comparação, não é particularmente feliz, mas quando vemos um jogo da Seleção nacional não vamos exigir que ao terceiro minuto estejamos a ganhar por 4-0. Está a pedir-me que ao quinto dia esteja a ganhar por quatro anos de governação, e isso não é possível”. Conclusão: “Este Orçamento, sendo importante, não esgota a vida das reformas e do Governo”.

Assim espera Medina, que chegou já com este Orçamento quase fechado – é muito semelhante ao que tinha sido apresentado em outubro, antes do chumbo que provocou a crise política – e reconhece o documento como seu – “salvo seja, do país!” – mas admite que não é exatamente o que construiria estivesse livre para desenhar um Orçamento de raiz.

O Ministro das Finanças, Fernando Medina, entrega o Orçamento do Estado para 2022 ao Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, na Assembleia da República. Lisboa, 13 de Abril de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

No Executivo, garante-se que Medina, assim que chegou, foi interventivo no ajuste das políticas necessárias para fazer frente ao contexto de guerra; e essa será, até ver, a sua principal dificuldade, ficando obrigado a enfrentar uma inflação crescente e um aumento de preços que, combinados com a insistência nas tais “contas certas”, têm provocado críticas da oposição, que aqui vê um Orçamento “austeritário” (“em nenhum dicionário de política económica do mundo esta é uma política de austeridade”, chegou a atirar, lembrando medidas como o aumento extraordinário das pensões ou o desdobramento dos escalões de IRS).

O novo ministro espera, ainda assim, ter tempo para pôr em prática outras reformas. Desde logo, deu um exemplo concreto: quer levar a cabo em Orçamentos “futuros” a reforma do IRC, importante para garantir a competitividade das empresas portuguesas, e está preocupado com um tecido produtivo que já antes da pandemia tinha “deficiências nos capitais próprios”. É uma área de trabalho em que espera “ir mais além”, acabou por reconhecer, explicando que neste meio-Orçamento (meio de Medina, já que foi desenhado por João Leão, e para meio ano, já que só deve vigorar até outubro) “não está, nem podia estar, tudo feito”.

Os “golos” que Medina espera marcar ficarão, assim, para depois; para já, precisa de defender um Orçamento em que só pôde intervir na reta final e que vai ser preciso ir reajustando, como admitiu. Mas não foi por isso que deixou de dar algumas pistas sobre como será, também no estilo e no relacionamento com os outros, o novo ministro das Finanças.

As relações dentro e fora do Governo (e uma farpa a Centeno?)

Desde logo, no Governo é notada uma mudança significativa: apesar da preparação técnica que partilha com o antecessor, Leão, Medina tem mais “rodagem” política – graças à experiência como secretário de Estado e autarca em Lisboa – e facilidade de comunicação, além de ser naturalmente menos “tímido”. Isso notou-se, desde logo, na apresentação do documento aos jornalistas, mas notar-se-á também dentro do Conselho de Ministros – onde terá uma “boa capacidade de relacionamento” com os colegas, apontam fontes do Executivo.

Se Centeno chegou como independente e se fez político – ganhando um protagonismo evidente no Governo e até nas instituições europeias e chegando, de resto, a liderar o Eurogrupo – Leão foi sempre visto como alguém com mais qualidades para ser um bom técnico do que para estar debaixo dos holofotes. Os dois tinham, no entanto, uma dificuldade partilhada: manter as tais contas certas e ao mesmo tempo o bom relacionamento com os colegas no Conselho de Ministros, a quem tantas vezes negavam verbas e autorizações de despesa.

Conferência de imprensa do Ministro das Finanças, Fernando Medina, após a entrega do Orçamento do Estado para 2022 ao Presidente da Assembleia da República, Augusto Santos Silva, no Ministério das Finanças com Sofia Batalha (Secretário de Estado do Orçamento), António Mendonça Mendes (Secretário de Estado dos Assuntos Fiscais) e João Nuno Mendes (Secretário de Estado do Tesouro). Lisboa, 13 de Abril de 2022. FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

No seu arranque, Medina fez questão, desde logo, de deixar um sinal relevante para a relação que terá daqui para a frente com Pedro Nuno Santos, uma das dinâmicas para as quais as atenções ficam voltadas neste novo elenco governativo. Desde logo, porque são dois dos putativos candidatos à sucessão de António Costa, embora Medina tenha perdido muito peso nessa corrida depois da derrota surpreendente e pesada em Lisboa contra Carlos Moedas. Depois, porque Pedro Nuno Santos não se coibiu de ter um embate muito público com o antecessor de Medina, João Leão, que criticou por não resolver a dívida histórica da CP nem dar autorizações para compras essenciais (“Se estivesse dependente de mim estava resolvido”, diria Pedro Nuno, deixando as fraturas do Governo – e as críticas que outros ministros faziam, em surdina, às Finanças – bem expostas).

Desta vez, Medina atirou a questão da dívida da CP para uma decisão que tem de ser tomada em “diálogo” com a Comissão Europeia, mas deixou garantias taxativas de que será realizada, no máximo, no próximo ano – “e não é por estar comprometida do passado. É porque eu acredito mesmo nela”. O tempo dirá se cumpre a promessa e se a relação com Pedro Nuno, que tem nas suas mãos dossiês tão decisivos (e orçamentalmente pesados) como a TAP e a CP, é pacífica.

Quanto a outros conflitos das Finanças do passado, Medina tentou deixar um sinal de paz: desde logo, numa aparente farpa a Mário Centeno – que teve uma relação conflituosa com o Conselho de Finanças Públicas – recusou ter “estados de alma” em resposta às conjunturas e frisou que o CFP já “validou” o cenário macroeconómico apresentado pelo Governo, validação que Medina considera “importante”.

Uma mudança digna de registo em relação aos tempos em que o CFP então liderado por Teodora Cardoso acusava o ministério das Finanças de cumprir “os mínimos exigidos por Bruxelas” e Centeno respondia com ironia: “Já é um avanço dizer que se fez o mínimo. As instituições vão amadurecendo as suas análises”.

O último cachimbo da paz foi estendido à concertação social com uma declaração taxativa: “Eu sou daqueles que valorizam de forma significativa a concertação”, para mais em tempos de maioria absoluta – uma “oportunidade única e uma responsabilidade histórica”, reconheceu.

Adeus, parceiros

O ministro reservou, no entanto, palavras menos doces para a esquerda com que, graças à mesma maioria absoluta, já não terá de lidar e negociar, como aconteceu com os seus antecessores, numa relação difícil que tantos embates gerou nos anos de geringonça.

Quando, no Terreiro do Paço, falava sobre a necessidade de aprovar rapidamente este Orçamento para pôr os apoios e aumentos previstos no terreno, explicou que esses atrasos são “uma das consequências negativas” do chumbo do anterior Orçamento, o que veio provar que não era indiferente “viver em duodécimos” – um dos argumentos que a esquerda dava para garantir que o chumbo do OE não seria nenhum drama nem justificaria a convocação de eleições antecipadas, como acabou por acontecer. (Ironicamente, uma das bandeiras que agitou com mais força e que quer pôr em prática mais rápido era uma reivindicação da esquerda: o aumento extraordinário das pensões, e não apenas das mais baixas).

Agora, Medina promete “abertura” para ouvir as propostas dos partidos na fase da especialidade que ainda decorrerá no Parlamento até à votação do seu primeiro meio-Orçamento, a 27 de maio. Mas não precisará de mais do que isso: com maioria absoluta, terá muito mais margem — e menos desculpas, como aponta a oposição — do que os seus antecessores para cumprir as intenções que anunciou. Ou seja, manter a herança das contas certas – uma promessa que precisa de equilibrar com o legado das reformas que quer deixar em nome próprio.

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