O histórico do PS, em entrevista ao programa Vichyssoise, contou como estão a ser estes dias de confinamento, que diz serem piores do que os tempos em que esteve no exílio e de quando chegou a ser preso pelo regime. Elogiou Rui Rio pela coragem política de dizer que só era oposição ao vírus e disse discordar da ideia de Ramalho Eanes de que “se for preciso, os mais velhos devem dar os ventiladores aos mais novos”. Considera que essa é uma incoerência para quem semanas antes foi contra a eutanásia. A atitude dos mais velhos, defende, deve ser “lutar pela vida” e fugir da divisa franquista do “viva la muerte”. Limitado a duas opções, e num registo menos pesado, Manuel Alegre confessa que preferia passar a quarentena com Cavaco Silva do que com Pedro Passos Coelho. No sábado, por ocasião dos 47 anos do PS, vai falar com jovens militantes socialistas, por videoconferência, sobre o papel dos socialistas no 25 de Abril.
Manuel Alegre: a luta pior que o exílio e a discordância de Eanes
Vivemos tempos inéditos. O Manuel Alegre, em 1975, durante o estado de sítio, teve um papel importante, sobretudo de mobilização do PS. Como é que a compara com esta situação que vivemos hoje em dia?
Esta situação é mais difícil porque agora não sabemos ao certo quem é o inimigo, nem quando é que acaba.
Como têm sido os seus dias?
Têm sido dias de reclusão. Não contava que nesta fase da minha vida viesse a passar por isto, de estar preso em casa, de não poder contactar com filhos nem com netos, de ter de ter esses cuidados todos. Enfim, é outra forma de resistência e de resiliência, mas muito mais desagradável porque nós não sabemos o que é que vai acontecer. Nem ninguém esperava que isto pudesse acontecer. É uma espécie de peste negra desta era em que todos nos julgávamos omnipotentes e omniscientes. E afinal não somos.
Falou da questão da resistência. Tem um passado de resistência e chegou a viver exilado vários anos. Ainda assim considera estes dias mais difíceis do que os dessa altura?
As coisas não se podem comparar. Eu era muito mais novo, nesses dias. Fui para a Argélia com 28 anos. Antes tinha estado na guerra e depois na cadeia, portanto fiz o périplo todo. E é muito duro e difícil partir para o exílio com vinte e tal anos também sem saber quando se volta. Mas havia outra inspiração: queríamos derrubar a ditadura, libertar o país, era um tempo das grandes utopias. Toda a gente andava a querer fazer a revolução em todos os sítios do mundo. Estávamos perpendiculares ao tempo e à história. Sentíamos que estávamos na história e a mudar a história. Agora não, é um tempo muito diferente. De repente aconteceu isto. Há muita gente agora que, quando fala de retoma, fala como se tudo voltasse a ser o que era, mas acho que já nada voltará a ser o que era. Quando há estas grandes ruturas históricas, seja a I Grande Guerra, a II Grande Guerra e agora isto, que nós não sabemos bem o que é nem como vai acabar, os comportamentos alteram-se e a própria visão do mundo se altera.
Mas o que perspetiva que vem a seguir a isto?
Não sei. Sei que neste momento a prioridade é encontrar uma vacina e combater isto com os meios que temos. E cá nos temos aguentado. Os próprios portugueses meteram-se em casa e deram um exemplo grande de contenção. Acho que também beneficiaram do facto de ter havido as situações de Itália e Espanha. O que vem aí não sei, mas creio que vai ser diferente. Pode ser pior, pode ser melhor. Pode ser pior em muitos aspetos: a economia vai sofrer um grande rombo, vai haver pessoas desempregadas, isto vai ser difícil para muita gente. Se calhar vamos ter que viver de outra maneira, aprender outras coisas. Vai haver mudanças. Em que sentido? É difícil dizer.
Ainda assim há uma coisa que não vai mudar. Na próxima semana comemora-se o 25 de abril, e os partidos à direita na Assembleia da República já vieram defender que estas comemorações não deviam ser feitas no Parlamento. Justificam a posição com as medidas restritivas. Acha que a comemoração devia ser suspensa?
O 25 de Abril criou um espaço de liberdade e esse é o seu principal legado. Para todos os portugueses. E isso significa que se pode concordar ou discordar. Mesmo aqueles que não comemoram o 25 de Abril, e não o querem comemorar, estão, de certa maneira, a prestar uma homenagem a esse espaço de liberdade que o 25 de Abril criou para os portugueses. Comemorar na Assembleia da República, com menos gente, é uma forma de mostrar que a democracia não está suspensa, que continua. E que esse espírito do 25 de Abril também continua.
Mas considera que há aproveitamento político destes partidos, aproveitando a desculpa do vírus para impedir comemorações que não querem fazer por razões ideológicas?
Um aproveitamento há, mas isso é uma coisa menor. O importante, eu já disse, é que os capitães de abril são os profissionais de saúde. São eles que estão a dar o grande exemplo para todos os outros portugueses. E essa é a prioridade das prioridades e até é a melhor maneira de celebrar o 25 de abril: o combate contra o coronavírus. Isso, para mim, é indiscutível. Quanto ao resto, faz parte da vida e da política, acho que é uma coisa menor. Mas é um direito que assiste, as pessoas podem concordar ou podem discordar. Como disse, esta é a superioridade moral do 25 de Abril.
Como avalia a liderança de António Costa neste período? Tem tomado as melhores decisões?
A liderança dos principais órgãos do Estado tem sido correta e, no essencial, tem sido boa. Fecharam as fronteiras, decretaram o estado de emergência, têm-se procurado equilibrar a prioridade que é a questão sanitária com outra que é não deixar afundar a economia. Agora, é preciso alguma prudência em relação ao futuro e há muita coisa que tem de ser repensada. Quando se fala de retoma, muita gente pensa que os aviões vêm aí cheios de turistas para o Algarve. Na minha opinião, isso não vai acontecer. E há outras conclusões que devemos tirar: temos as fábricas farmacêuticas muito longe, ficámos muito dependentes. Todo o ocidente, aliás, incluindo os americanos. Foi tudo para a Ásia, houve as deslocalizações. A Europa e o Ocidente têm de voltar a produzir os seus bens essenciais. Tem de haver um processo de reindustrialização, pelo menos daqueles bens essenciais. Não sermos tão dependentes. E ainda não vi uma visão diferente, não vi essa preocupação, pelo menos nessas reuniões dos académicos, economistas. Pensa-se como se tudo fosse ser igual e acho que não vai ser igual.
Faz sentido aquela ideia de um país a duas velocidades em que os mais velhos e os grupos de risco vão continuar confinados, enquanto o resto das pessoas pode ir saindo à rua? Não pode criar uma espécie de “gueto”?
Na última mensagem, o Presidente da República alertou, e bem, para essa situação. Claro que há pessoas mais frágeis, mas também há velhos de 100 anos que têm resistido, de 90 e tal anos que têm resistido. E alguns bastante mais novos que não têm aguentado. Depende do estado de saúde das pessoas, da capacidade de resistência, do estado físico. Não tanto da idade. Há pessoas de 20 anos que podem estar muito enfraquecidas e para quem esta doença é muito difícil e outros que são mais rijos, com 90 e tal anos, que se aguentam. Agora, é evidente que as pessoas de maior idade têm de ter mais cuidado. Eu estou preparado psicologicamente para isso. Irei ter mais cuidado, evidentemente. Tenho filhos, tenho netos. Estou perfeitamente consciente que o vírus continua por aí, não foi eliminado. Houve um retrocesso, houve uma contenção, não sabemos quantas pessoas estão infetadas, quem está imunizado ou não.
E esta estratégia corre o risco de ser entendida como abandono, por parte destes idosos?
Isso foi visto sempre com preocupação e nunca como abandono. Preocupação de tratar das pessoas sabendo-se que a resistência das pessoas mais idosas, que normalmente têm outras doenças associadas, é mais frágil. Foi nesse sentido que a presidente da Comissão Europeia falou, não usando talvez a melhor expressão, nem no dia mais adequado, que foi a Páscoa.
E concorda com as declarações do general Ramalho Eanes sobre a cedência dos ventiladores aos mais novos?
O general Eanes é uma pessoa que eu respeito e admiro, com quem estive junto nalguns momentos muito importantes da construção da democracia. Aquilo que disse foi muito louvado, mas não estou de acordo. Não se pode ser contra a eutanásia, como ele foi, no seu direito, e depois estar a dizer uma frase que pode ser interpretada como uma espécie de eutanásia em relação aos mais velhos, sem serem eles a pedir, nem por vontade deles. Nós devemos resistir. Eu vou lutar pela minha vida até ao fim, em todas as circunstâncias. Claro que, se fosse preciso dar a um mais jovem, em situação extrema, o meu ventilador, concerteza que daria. Mas o estado de espírito dos mais velhos deve ser idêntico ao dos mais novos: resistir, lutar pela vida e defenderem-se. Isso é que é a atitude. E o que apetece dizer nestas circunstâncias não é viva la muerte, como aquele fascista da guerra civil de Espanha, mas viva a vida! Sempre. Em todas circunstâncias. E lutar por ela.
Quando há pouco lhe perguntámos pela liderança de António Costa respondeu no plural, dizendo “a liderança dos principais órgãos…”. Referia-se ao Presidente? Está a existir um liderança partilhada a dois, nestes tempos de emergência?
Tem sido partilhada. Nós gostamos muito do conflito pelo conflito, mas acho que é bom numa situação destas. As pessoas têm estilos diferentes. O Presidente da República, ao princípio, facilitou. Depois percebeu e agora a liderança tem sido partilhada entre os principais representantes de órgãos de soberania. Presidente, primeiro-ministro e presidente da Assembleia da República, mas sobretudo entre Marcelo Rebelo de Sousa e António Costa, tem havido uma liderança partilhada. E isso é bom para o país.
E a oposição deve estar suspensa, como Rui Rio praticamente pôs o PSD nesta fase?
Houve uma intervenção do Rui Rio na Assembleia da República que eu apreciei. Logo na primeira, no estado de emergência, quando isto começou. Nem percebi porque é que os outros partidos não bateram palmas porque é preciso coragem para fazer o que ele fez, como líder da oposição. É sempre muito mais fácil atacar, dizer que o governo não fez aquilo que devia fazer, que já devia ter feito, etc, etc. Ele disse: ‘Neste momento não sou oposição, sou oposição ao vírus’. É preciso coragem. Coragem política, seriedade. Discordo muito de muitas coisas que ele diz, mas neste sentido esteve bem. E como em política as coisas são vistas como perdas e ganhos, acho que isto lhe dá dividendos.
Não se corre o risco de não haver contraditório?
Mas há. Existe sempre nas pessoas e ai dos líderes políticos que não saibam interpretar o sentimento das pessoas. Quer quando as pessoas estão em sintonia com as medidas que se tomam, quer quando estão em desacordo.
Tem elogiado o mandato de Marcelo Rebelo de Sousa. Há condições de Marcelo ser candidato com o apoio do PS como Soares no segundo mandato?
Ele gostaria, mas isso não sei. Não vou fazer previsões sobre isso. Já tenho a minha conta de eleições presidenciais.
Como histórico do PS, gostava mais de ver uma situação desse género, ou acha que uma figura como Ana Gomes devia ser a melhor opção?
Sou um grande amigo da Ana Gomes. Gosto muito da Ana Gomes, pelo que fez em Timor, onde também esteve o meu filho. Pelo que fizeram os dois. Foram dos diplomatas que melhor se portaram nessa situação. Tenho uma grande admiração por ela, mas que não me vou pronunciar. Nem sei se ela quer ser candidata, acho que ela está mais interessada noutras coisas. Não é altura de falar disso. Nem creio que neste momento seja muito importante. Os candidatos não se inventam.
Surgem naturalmente?
Surgem. Eu, por acaso, sou um exemplo disso na minha primeira candidatura. Diziam que eu ia ser um suflé, mais isto mais aquilo, mais aqueloutro. Sem apoio de ninguém e contra candidatos que não eram brincadeira: Cavaco Silva, Mário Soares, Francisco Louçã, o Jerónimo, foram todos em força.
Teve um milhão de votos.
Mais de um milhão de votos. 21% de votos, sem apoio de ninguém.
Quem quiser seguir em frente para a Presidência da República não tem de estar à espera de apoios partidários?
Tem de haver uma corrente nesse sentido. Eu não tinha endoidecido, nem sequer estava muito interessado nisso. Entrei mais por irritação do que por outra coisa, mas verifiquei que havia uma corrente. Recebia mensagens de todos os lados. As pessoas queriam algo de novo e apontaram ali para mim. Podia ter sido para outro, mas foi para mim. E é difícil que isso volte a acontecer com aqueles resultados.
O PS faz este domingo 47 anos, vai participar nas comemorações no sábado, vai fazer uma conversa também através das redes sociais. Consegue achar alguma graça a esta nova forma de juntar pessoas neste momento de distanciamento social?
Acho que é uma boa ideia e acho que é preciso conhecer um pouco da história do PS, sobretudo os mais novos. É uma história mal conhecida, sobretudo desde o primeiro congresso na ilegalidade até à aprovação da Assembleia Constituinte. Há uma visão redutora do que foi esse processo nos primeiros anos. Fala-se dos militares como se tudo se tivesse reduzido aos militares — claro que tiveram importância, primeiro porque derrubaram o regime –, mas esse processo de conflito foi um conflito político e ideológico, com muitas manifestações de rua. Uma coisa brutal. De um lado e de outro. De um lado estavam os que tinham radicalizado a revolução, queriam ir para a frente com os militares e apoiar um processo que levaria a uma espécie de Indonésia ou à instauração de regimes semelhantes ao que existiam na Europa de Leste; e no outro, aqueles que queriam, acima de tudo, a democracia política, com direitos sociais. E esse combate foi liderado, desde o princípio, pelo PS.
E vai falar sobre essa importância do papel do PS.
Sim. Até agosto, nessa altura, o PS esteve institucionalmente praticamente sozinho porque só depois da Alameda é que o apareceu o manifesto do Grupo dos 9. O Grupo dos 9 teve uma grande importância, os seus elementos estiveram sempre muito perto e em conversa connosco, eram nossos aliados, mas a verdade é que a manifestação pública do grupo dos 9 só apareceu depois das manifestações colossais do PS no estádio das Antas no Porto e na Alameda em Lisboa. Portanto, essa história é uma história fundadora, mostrámos ao mundo que era possível passar de uma ditadura para a democracia sem cair numa nova ditadura. E fizemos isso numa transição revolucionária, o que abriu caminho à transição democrática na Espanha, na Grécia, no Brasil e noutros países. Nesse processo, a liderança política, civil, foi do PS. Foi uma revolução pioneira. E a outra, que diz respeito aos militares, é que houve um golpe de Estado, os militares tomaram o poder, houve depois as confusões que sabemos, mas a verdade é que eles cumpriram a palavra dada, restituíram o poder às instituições democráticas livremente eleitas pelo povo português. Isso também é um facto singular e muito original.
Para terminar, propomos uma série de perguntas rápidas. Preferia passar esta quarentena com Cavaco Silva ou Passos Coelho?
(Risos) Cavaco Silva.
Já enviou uma carta aberta ao primeiro-ministro sobre tourada. Preferia um país sem corridas de touros, ou sem celebrações do 25 de abril na assembleia da República?
Com corridas de touros e com comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República.
Escreveu um poema sobre Lisboa nos tempos de pandemia. Nestes tempos, se tivesse de o fazer, a quem escreveria um poema, António Costa ou Marcelo Rebelo de Sousa?
Nem a um nem a outro. Não escrevo poemas a políticos. Nunca escrevi odes ao Estaline, nem ia escrever poemas ao Costa.
Que voz gostou mais de ouvir a cantar um poema seu? Zeca Afonso ou a sua filha Joana Alegre?
As vozes que mais gostei de ouvir a cantar poemas meus foram Adriano Correia de Oliveira e Amália Rodrigues.