Testar a imunidade dos estudantes do ensino superior poderá ser uma forma de “transmitir confiança” no regresso às aulas presenciais e na nova forma como as universidades e politécnicos terão de lidar com a pandemia. É essa uma das sugestões de Manuel Heitor — a par de outras, como horários desencontrados e turmas mais pequenas — para garantir que o funcionamento das instituições começa a ser retomado já em maio. Isto apesar de, neste momento, esses testes permitirem apenas perceber se alguém teve contacto o vírus — e não se está imune. Esse segundo passo só será possível quando for determinado o nível protetor dos anticorpos criados pela Covid-19.
O ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior já sabe que conta com a resistência de alguns reitores — que admitem, apenas, abrir alguns espaços e setores específicos —, mas, em entrevista ao Observador, diz que isso não é desautorizar o Governo e que espera que todos cumpram uma “autonomia responsável”. Até porque, assegura, “a autonomia não serve para tudo” e a universidade deve dar o exemplo ao país de como se responde a este problema sem medo, mas com conhecimento: “Se não é o ensino superior, quem é?”
Poderia estar em cima da mesa a limitação dessa autonomia, para garantir que todos cumprem as mesmas medidas? Manuel Heitor diz que não e que é isso que defende “dentro e fora do Governo” — mas recusa que esteja a ser pressionado por colegas do executivo para impor medidas às universidades.
Certo é que a pandemia obrigará a mudar os calendários, mas o ministro não acredita que seja necessário criar épocas especiais de exame. Usa, aliás, o exemplo de outros países para defender que bastará prolongar o segundo semestre até ao final de maio, início de junho, e garantir que toda a avaliação está feita até julho. Atrasar o início do próximo ano letivo é que não pode estar em cima da mesa.
Se as universidades aceitarem a ideia de retomar algumas atividades presenciais já em maio, o aluno continua a ter a liberdade de não fazer o mesmo, por medo de contágio, por exemplo. Nesses casos, Manuel Heitor entende que o estudante “não pode nem deve” ser penalizado por faltar, mesmo a aulas presenciais obrigatórias. E volta a apelar à responsabilização de todos, até na gestão de quem ensina, para proteger os mais frágeis. O ministro acredita que não será necessário contratar mais professores, para garantir o desdobramento das turmas — e ter, assim, menos alunos por sala de aula —, mas admite que seria uma oportunidade para “rejuvenescer o corpo doente”.
Do lado da Ciência, Heitor diz que o setor está mobilizado. Lembra a investigação que já está a ser feita na área do combate à Covid-9 e deixa uma garantia aos que estão a trabalhar noutras áreas: projetos, contratos e bolsas da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) vão ser prolongados, tal como os concursos que estavam a decorrer.
[Pode ouvir a entrevista na íntegra aqui. Ou ver os melhores momentos neste vídeo]
“Ensino superior pode acomodar horários para estudantes não usarem transportes públicos nas horas de ponta”
É desejo do Governo que os alunos do ensino superior comecem as aulas presenciais, ou que as retomem de alguma forma, já em maio. Conta com alguma resistência a esta medida?
O Governo deu uma recomendação sobretudo para que nas próximas duas semanas houvesse uma mobilização para o planeamento, para estarem prontas no dia em que seja libertado o estado de emergência. A noção que hoje deve vigorar é que diferentes áreas do ensino superior não têm de se portar exatamente da mesma forma, nem as instituições todas da mesma forma. Mas, de uma forma geral, acredito seriamente que as nossas instituições conseguem assumir aquilo a que eu chamaria uma autonomia responsável.
E se não o fizerem, se não voltarem em maio, o Governo fica desautorizado?
O Governo não fica desautorizado, nem as instituições, porque temos de defender sempre o princípio da autonomia do ensino superior, como consagrada na Constituição e como um marco que, no contexto europeu, define as democracias em que nos habituámos a viver. E a pior coisa era retirarmos autonomia às instituições. Dizendo isto, digo também que a autonomia não serve para tudo. Se temos hoje, por um lado, os estudantes do ensino secundário a terem de fazer exames presenciais, não há qualquer razão para o ensino superior não mostrar à sociedade, essa autonomia responsável, dizendo, mais do que qualquer outro nível, como é que nós, enquanto sociedade, nos devemos comportar perante uma pandemia. E a questão que se põe não é de 4 de maio ou se de um mês ou dois próximos. É a de que, no cenário de uma pandemia, nós vamos ter de resistir durante um ano até aparecer uma vacina. Por isso, estes dois meses são particularmente críticos para testar soluções que, de uma forma geral, vão ter de ser adotadas na sociedade portuguesa durante o próximo ano. Na melhor das hipóteses, teremos uma vacina na primavera de 2021, eventualmente no verão de 2021. E, portanto, teremos um ano onde temos de aprender a viver com uma pandemia e não podemos fechar as nossas economias e a nossa vida social, porque se não morrermos do vírus morremos de fome. E, por isso, esta responsabilidade que o ensino superior tem mais do que qualquer outro setor — porque vive, produz e difunde conhecimento — [implica] transmitir à sociedade como é que nos devemos relacionar com distanciamento, condições de higiene e de desinfeção e garantindo uma co-responsabilização de atores. Por exemplo: o ensino superior pode acomodar os horários de forma a que os estudantes não usem os transportes públicos exatamente nas horas de ponta nos principais centros urbanos. Pode transmitir elementos de confiança, por exemplo, com os testes serológicos, que nos podem dar informação nova sobre a nossa capacidade de gerar anticorpos e de ficarmos imunes à pandemia.
Sugere que as universidades façam testes serológicos aos seus alunos?
Exatamente, entre outras questões. O ensino superior tem hoje uma capacidade para desdobrar os horários, para poder minimizar grandes ajuntamentos de estudantes numa única sala e, por exemplo, ter mais aulas durante a noite ou, pelo menos, até mais tarde. E, por isso, tem uma flexibilidade de operação que pode e deve ser usada para nós todos aprendermos também a viver perante uma pandemia que não é extinta de um dia para o outro. E é a isso que eu tenho apelado e discutido com dirigentes estudantis, com os dirigentes das instituições universitárias e politécnicas, com o presidente do Conselho de Reitores das Universidades Portuguesas, com o presidente do Conselho Coordenador dos Institutos Superiores Politécnicos — que o ensino superior venha a público mostrar que é um setor responsável e que estamos também a formar as futuras gerações a aprender nestes momentos de crise como é que se combate uma pandemia.
Fala em autonomia responsável e em apelo à instituições. E se essa autonomia não for responsável e se esse apelo não resultar? Num estado de emergência, a autonomia das universidades pode sofrer restrições ou não? Sobretudo naquelas que não têm o estatuto de fundação?
Defendo que não, não devemos afetar a autonomia. Defendo, dentro do Governo e fora do Governo, que devemos sempre reforçar a autonomia…
… isso é uma questão dentro do Governo?
Não acredito que seja. Mas é normal, [porque] os governantes também são cidadãos como os outros, que o conceito de autonomia universitária possa ter várias interpretações.
Mas tem tido pressões nesse sentido?
Não necessariamente dentro do Governo, mais fora do Governo, mais de colegas meus, professores universitários, que gostariam de ter uma ação mais proativa nas suas próprias escolas e instituições. E tenho lidado diariamente com reitores e dirigentes de instituições a apelar, porque obviamente as opiniões não são consensuais.
E se o apelo não resultar?
Sempre resultou e não vejo razão nenhuma para não resultar. Agora, não podemos nem devemos querer uma solução única para todo o país, standardizada e homogeneizada. Diferentes instituições e diferentes áreas na mesma instituição podem ter soluções diferentes. Ainda na semana passada, na Universidade de Évora, participei numa sessão à distância do ensino da música de um instrumento e outra na área agrária. São áreas totalmente distintas. A professora de música dizia-me que, devido ao desfasamento do tempo, não conseguia ensinar um instrumento à distância e que, portanto, tinha de pedir vídeos aos estudantes. É óbvio que o ensino presencial é indiscutivelmente e absolutamente crítico nalgumas áreas. Estive, também, na Universidade do Minho a participar numa avaliação online de cirurgia. É possível fazer algumas partes da avaliação já à distância.
“Próximo ano letivo será de blended learning: parte presencial e parte à distância”
Como é que se faz uma avaliação online de uma cirurgia?
O professor dizia-me que algumas partes da matéria são possíveis e outras não. E é por isso que é essencial conjugar o contexto presencial, sobretudo em aulas práticas, aulas de laboratório, mas também nalguns aspetos de aulas teóricas. Isto não é uma situação portuguesa — ainda hoje [segunda-feira] de manhã falava com a comissária europeia Mariya Gabriel [atual Comissária Europeia para a Economia e Sociedade Digital] e com a ministra croata, que preside neste momento ao Conselho Europeu, e está a ser emitida uma recomendação a nível europeu para haver uma combinação cada vez mais ativa do ensino presencial e do não-presencial, num cenário de tempo que é sempre de um ano, em todo o próximo ano letivo. Os próximos dois meses, maio e junho, serão particularmente importantes para aprendermos a aprender e a ensinar durante todo o próximo ano letivo e, com isso, adquirir novas práticas do que na gíria se chama blended learning. É uma forma combinada de aprender e ensinar, onde uma parte é à distância, e outra tem de ser necessariamente presencial — e esta tem de ter condições de higiene e de distanciamento social garantidas, assim como o uso de equipamentos de proteção individual, nomeadamente viseiras e máscaras.
Referiu, aliás aos microfones da Rádio Observador, que haveria máscaras para todos e que elas estariam disponíveis a um preço mais acessível. Como é que pode garantir isso?
Obviamente, esta recomendação do planeamento da abertura do ensino superior, entre muitos outros sectores económicos, só foi feita depois de a Direção-Geral da Saúde ter definido normas técnicas de acordo com outras autoridades de saúde na Europa, como em França, onde escalonava, por exemplo, as máscaras em três tipos: as cirúrgicas para uso dos hospitais, as máscaras para aqueles que servem o público, e as de uso genérico. Ao mesmo tempo, foi montada uma operação, nomeadamente no centro tecnológico dos têxteis e vestuário — o CITEVE, em Famalicão — para, em colaboração com o INFARMED, certificar a produção nacional de máscaras. Ainda esta semana aparecerão em todas as grandes superfícies e nos supermercados, num volume considerável. Estamos a falar em vários milhões de máscaras que passarão a ser produzidas em Portugal de uma forma sistemática, por empresas portuguesas, com tecnologia de certificação portuguesa e a um custo que [torna] possível serem adquiridas por todos.
Mas isso será sempre responsabilidade das instituições do ensino superior?
Acredito que sim. São não apenas responsáveis, mas que têm que ter a disponibilidade — já o disse a vários dirigentes, já o disse ao presidente do Conselho de Reitores —, para garantir que as instituições disponibilizam máscaras a todos os estudantes para todas as sessões que tenham de ter uma componente presencial.
Prevê que seja necessário contratar mais professores para as turmas serem mais pequenas, para garantir o distanciamento social que referiu? Há salas suficientes? Na sua recomendação de sexta-feira referia como prioritários os laboratórios, as atividades de investigação e desenvolvimento, as atividades laboratoriais, as biotecnologias, a Medicina, ou seja, aquelas áreas que à partida apresentam mais riscos. Como é que isto se vai resolver?
Não necessariamente. Já lhe dei o exemplo da música, mas podía dar-lhe muitos outros, até algumas componentes de aulas teóricas faz todo o sentido terem uma componente presencial, sobretudo se as aulas forem desdobradas. Acredito que [com] o atual corpo docente é possível fazê-lo, até porque temos muitos jovens e, sobretudo, temos um número considerável de professores auxiliares nas universidades e professores adjuntos nos politécnicos que podem contribuir de forma decisiva. Mas claramente que também pode ser uma boa oportunidade para reforçarmos e rejuvenescermos o corpo docente, as instituições de ensino superiores.
Admite contratar mais docentes?
Se for necessário. Penso que não é, mas, se for, é uma boa oportunidade para se rejuvenescer o corpo docente. Temos de aprender, não apenas a combater no curto prazo, mas a lidar com esta situação de uma forma mais consistente para o futuro. As máscaras, [ou] a produção de zaragatoas em Portugal, são exemplos claros de que, de uma forma rápida, conseguimos mobilizar e garantir a produção nacional de equipamentos que passaram a ser críticos. No contexto europeu, Portugal apresenta condições particularmente benéficas, sobretudo numa relação entre as empresas e o sistema científico e tecnológico, para melhor nos posicionarmos em cadeias de produção de bens absolutamente essenciais — em que a Europa depende particularmente da China. Essa é também uma responsabilidade das instituições de ensino superior. O que se passou com as zaragatoas: uma empresa portuguesa que fazia cotonetes, em colaboração com o Centro Académico Clínico do Algarve e com o Instituto Superior Técnico, passou a fazer zaragatoas em Portugal devidamente certificadas e esterilizadas. E, por isso, hoje em vez de importar, até [podemos] exportar. Os ventiladores, e a mobilização da comunidade científica: um produto que era sobretudo importado em Portugal, vamos, espero, até dentro de um mês, poder conseguir exportar. Isto também é uma oportunidade grande para reorientarmos algumas linhas de produção e para incentivarmos à colaboração entre a capacidade científica instalada e a capacidade industrial que temos no nosso tecido empresarial. Por isso, olharmos também para esta pandemia como oportunidades para o posicionamento de Portugal é particularmente crítico. E temos tido alguns bons exemplos nas últimas semanas.
“A questão financeira para comprar equipamentos de proteção individual é perfeitamente secundária”
Regressando à abertura gradual e progressiva, como disse, das universidades e dos institutos politécnicos. Se um aluno se recusar a ir às aulas obrigatórias — porque há algumas aulas presenciais obrigatórias — por ter receio de ser contagiado, vai ser penalizado?
Não pode nem deve. A questão da obrigatoriedade no ensino superior tem de ser claramente enfrentada como sempre foi, porque estamos a tratar de adultos. Sempre que fui professor nunca tive faltas ou presenças nas minhas aulas e não vejo a necessidade nenhuma de o impor.
Mas levava isso em consideração…
Não, necessariamente. O ensino superior tem que ir muito para além do ser ou não ser obrigatório, ser ou não ser proibido faltar ou ir a uma aula. Fui educado numa geração onde se dizia que “é proibido proibir”. Acredito que não temos de proibir os estudantes de ir ou não ir à aula. Passa por, sobretudo, criar um clima de autoresponsabilização de docentes, dos estudantes e dos dirigentes das instituições — e é isso que tem acontecido, de uma forma geral, no ensino superior. Não vejo necessidade de dramatizar a situação, pelo contrário, vejo uma necessidade clara de o ensino superior mostrar como enfrentar uma situação sem medo. Todos nós, porque é humano, temos algum medo. Numa situação de medo usa-se sempre o princípio da precaução e deve ser o sector que domina a produção e a difusão de conhecimento a dar o exemplo de mostrar como é que reagimos sem medo, mas com mais conhecimento a uma pandemia. Se não é o ensino superior, quem é?
E se um professor se recusar a ir dar aulas, ou porque tem medo ou porque não tem onde deixar os filhos pequenos — como nós sabemos, as escolas não estão abertas —, o que vai acontecer a esse professor?
Cada caso é o seu caso. Obviamente, se o professor, ou pela sua condição de saúde, ou por uma condição da família, não puder ir dar uma aula, tem de partilhar com os seus colegas e resolver a situação. Mas, sendo professor, tem de dar a aula. Percebemos que nem todos os docentes — temos um corpo docente envelhecido, com uma média de idades que hoje ronda os 48 anos, temos professores até aos 65, 66 anos de idade…
Logo correm mais riscos…
Exatamente. É normal que não sejam todos tratados da mesma forma, por isso é que é preciso fazer um planeamento [para prever] desde o escalonamento dos horários até à questão crítica das condições de higiene, de desinfeção, dos equipamentos de proteção individuais, mas, sobretudo, pelo respeito dos próprios docentes. Alguns deles terão de ser escalonados de uma forma diferente e, por isso, este levantamento da atual situação e a reativação faseada das atividades presenciais não pode ser feita de um dia para o outro, tem de ser planeada.
Há pouco falámos das máscaras, das viseiras, falou também dos testes serológicos. Na sua recomendação falou em desinfetantes e outros materiais necessários para manter toda a segurança. Estes custos serão suportados pela universidades, pelo que disse há pouco. Vai haver um reforço do orçamento das instituições universitárias e politécnicas?
Sempre que foi necessário, conseguiu-se. Mas acho que, neste momento, temos de estar pelo lado da solução e indo resolvendo os problemas que aparecem caso a caso. Vivemos um risco de uma crise económica que vai muito para além daquilo que é o custo das máscaras que podem ser usadas no ensino superior. Penso que essa é uma questão que não nos deve assustar. Assusta-me, sim, aqueles que não têm oportunidade de aceder ao ensino superior ou que tiveram de se afastar do ensino e de aprendizagem. A questão financeira ou a questão da tesouraria para comprar equipamentos de proteção individual é uma condição perfeitamente secundária e estou estou perfeitamente ciente de que será resolvida sem qualquer tipo de problema.
Temos um grande número de alunos internacionais. A maioria regressou aos seus países. Sobretudo nas áreas que têm uma predominância do ensino presencial, o que é que vai acontecer? Como é que vão ser avaliados? E o que é que vai acontecer com os portugueses que estavam noutros países e podem estar a passar pela mesma situação?
Esta pergunta é particularmente importante, sobretudo no atual cenário de validação e valorização do ensino superior português no mundo, face a termos multiplicado ou aumentado em mais de 50% o número de estudantes internacionais nos últimos três anos em Portugal. Há duas situações totalmente distintas. Por um lado, os estudantes estrangeiros que estão em Portugal — tenho visitado muitas residências pelo país fora onde há estudantes que optaram ficar em Portugal e não regressar aos seus países, sobretudo, estudantes de origem africana, mas também brasileiros e europeus. Tenho apelado às instituições que os acolham bem. Muitas até mantêm as cantinas com serviços de take-away. Depois temos os que voltaram aos países de origem e, para esses, é normal que não possam voltar a Portugal ainda este ano letivo. Por isso, o meu apelo às instituições é que, nesses casos, consigam garantir que eles completam as suas disciplinas, os seus graus, se for caso disso, à distância. O caso dos portugueses é idêntico e a recomendação europeia é exatamente nesse sentido. A principal recomendação é que os estudantes em toda a Europa não se movam e, portanto, fiquem onde estão.
Este momento voltou a trazer a questão das propinas, além das outras despesas que os alunos poderão potencialmente vir a ter, com o prolongamento das aulas. Não faria sentido fazer ajustes nas propinas? Está a ser preparada alguma resposta que apoie os alunos nos gastos extra que vão ter?
Para ser muito claro: não há razão nenhuma para se ajustar as propinas. Não está a ser [feito] em Portugal, como em nenhum país europeu. O que nós estamos a fazer é ativar um mecanismo de emergência da Ação Social. O procedimento em curso em Portugal, de há uns anos a esta parte, prevê a possibilidade de, caso a caso, quando o aluno deixa de ter condições ou precisa de recorrer espontaneamente à Ação Social, ser ativado este mecanismo. São poucos casos, mas tem sido ativado, sobretudo para estudantes em condições socio-económicas bastante vulneráveis, para terem acesso a um computador ou à internet. Onde os serviços de Ação Social identificaram a necessidade de um apoio suplementar, foi sempre dado. Por isso, não deve haver nenhuma adequação, nem nenhuma alteração do regime de propinas. Devemos atuar ao nível da Ação Social, ativando sempre que é justificado o mecanismo de emergência para reforços adicionais pela Ação Social. Por outras palavras, aqueles que não tinham Ação Social, se de repente tiverem de ficar incluídos, devem sê-lo — e a Direção-Geral do Ensino Superior tem instruções para isso. Ou aqueles que já são bolseiros da Ação Social, se precisarem de um reforço e se o justificarem, têm sido ativados esses reforços em diferentes instituições do país.
Mas está previsto um reforço desse fundo de emergência?
Até agora, foi sempre feito. Todos os pedidos foram ativados, mas têm sido poucos casos.
“Não vale a pena adiar agora, pensando que depois fica tudo resolvido”
Preocupa-o a qualidade do ensino que vamos ter no final do ano? O Governo põe a hipótese de, por exemplo, recomendar às universidades a criação de um período no início do próximo ano letivo para uma recuperação das aprendizagens?
Isto não é um processo que afeta apenas Portugal. A resposta é a que também tem sido articulada a nível europeu: é um pedido claro para as instituições eventualmente até prolongarem os calendários este ano, sem ser excessivamente. De um modo geral, os semestres acabam no princípio, meados de maio, e não há qualquer tipo de problema de serem estendidos até ao final de maio, princípios de junho, mas garantir que todos os estudantes são avaliados até ao fim de julho. E por isso o apelo a que se preparem para inserirem ou voltarem a inserir componentes presenciais sempre que sejam necessárias, porque sabemos que, por muita que seja a qualidade do ensino à distância, há componentes que requerem claramente um esforço presencial. Mais uma vez, face à situação da evolução da pandemia e das curvas epidemiológicas que todos conhecemos, parece-me que é responsável agora prever durante o mês de maio e junho atividades presenciais que complementem aquilo que já foi o ensino à distância.
Não haverá épocas de exame especiais?
Não vejo razão para haver épocas de exame especiais e este é o entendimento que tem havido em toda a Europa: sempre que necessário, estender os calendários, desacoplar os horários para ter também aulas em períodos noturnos — e quando eu digo estender os horários é, em vez de o semestre acabar, de modo geral, em meados de maio, acabar no final de maio. Estamos a falar em três semanas.
Mas nunca atrasar o início do novo ano letivo…
Nunca atrasar o princípio do ano letivo. Temos de nos consciencializar que o próximo ano letivo deve começar em condições de relativa normalidade porque vamos ter um ano inteiro, até ao verão de 2021, para aprendermos a viver com esta pandemia. E por isso é que não vale a pena adiar agora, pensando que depois fica tudo resolvido.
No próximo ano letivo teremos então também ensino presencial?
Claro que temos de ter e claro que temos de valorizar esta combinação do ensino presencial com o ensino à distância.
Já foram definidas as regras de acesso ao ensino superior, mas há aqui uma questão de equidade em relação aos alunos que concluíram o ensino secundário no ano passado e neste iam fazer melhorias de notas. Como é que essa questão está?
A panóplia de casos é tão grande que solicitei à Comissão Nacional do Acesso ao Ensino Superior para dar uma solução a todas as questões levantadas e já homologuei o [respetivo] parecer, sobretudo para os casos das melhorias de notas, que se põe para um número reduzido — mas bastava ser um. São estudantes que já tinham acabado o ensino superior há uns anos (por exemplo, os que já estão no ensino superior e que querem mudar de área, muito típico em alguns que não entraram em Medicina e que estão hoje em faculdades de Ciências ou de Farmácia) e que querem fazer melhorias de notas; ou para outros que já tinham acabado o ensino secundário há uns anos e não tinham entrado no ensino superior. E, por isso, foi proposta uma solução, que autorizei, que dá vantagem sempre ao candidato para poder optar pela sua melhor nota, partindo do princípio que se mantém a base do acesso ao ensino superior, que é uma nota de candidatura com duas componentes: uma componente da prova de acesso; e outra componente da nota do ensino secundário. Foi definida uma fórmula, que já está disponível desde sexta-feira passada no sítio da internet da Direção Geral do Ensino Superior, e penso que resolve, protegendo sempre ou sendo favorável a todas as soluções. Há vários tipos de estudantes: aqueles que têm uma nota superior àquela que tinham tido ou aqueles que podem ter uma nota inferior.
E se os exames não se realizarem? Imaginemos o pior cenário: a pandemia agrava-se, não há exames. Como é que as universidades definem os critérios de entrada? Há alternativas pensadas?
Não, mas também não vale a pena neste momento. A ideia é: há exames. E penso que é a solução mais consensual…
Mas não está a ser preparado um plano B?
Não faz sentido estarmos agora a levantar opções para o plano B. Neste momento, há exames. A situação da evolução da pandemia dá-nos toda a garantia de que deve haver exames. E, por isso, se os alunos do ensino secundário podem fazer exames presenciais, não há razão nenhuma para os estudantes do ensino superior não o fazerem.
No caso da pandemia piorar, nem os alunos do Ensino Secundário farão exames…
Mas, nesse caso, cá estamos para resolver. Esse não é um cenário expectável, por isso acho que não devemos levantar essas opções nesta fase.
E como é que vai ser a receção destes alunos nas universidades? Muitos professores do ensino secundário têm alertado para as falhas do ensino online, neste momento. Vão entrar no ensino superior, provavelmente, com algumas deficiências. Está previsto algum mecanismo para resolver isto?
Tem toda a razão. O que se fez agora foi alterar o calendário do acesso, com um ligeiro prolongamento, e, portanto, as aulas dos novos alunos do primeiro ano serão iniciadas, sobretudo, em novembro, em vez de ser em meados ou princípio de outubro. Em todo o caso, é normal que o ensino à distância seja relativamente fácil quando já há uma relação de conhecimento entre o docente e o estudante. Para alunos novos, é bastante mais complexo. E, por isso, é indiscutível que o acesso dos novos estudantes tem de ter uma forte componente presencial. Naturalmente, será sempre complementado com o ensino à distância, mas tem uma componente presencial que vai ser muito mais importante do que para os outros alunos.
O que está a dizer é que os caloiros irão mais às faculdades que os outros no início do ano?
É normal que sim. Acredito que conseguiremos arranjar soluções equilibradas para o acesso e o início do próximo ano letivo. Naturalmente, sem ajuntamentos. E aqui apraz-me também relembrar que o movimento que lançámos há uns anos, o Dar a Volta à Praxe, agora é mais importante do que nunca, porque essas alturas são sempre alturas de ajuntamentos.
Podemos já assumir que a praxe vai ser proibida totalmente, até fora das universidades?
Eu, como disse, fui educado no conceito onde “É proibido proibir”. E, portanto, nunca proibimos as praxes, mobilizámos os jovens e os dirigentes a dar a volta à praxe, estimulámos o movimento a que chamámos EXARP. E hoje a adesão e a inserção no ensino superior tem sido feita com atividades mais variadas, do desporto à cultura, à música.
Que são também ajuntamentos…
São também ajuntamentos, que têm de ser feitos com distanciamento social muito mais rigoroso, como vai ter de ser todo o próximo ano letivo, no ensino superior e nos outros níveis de ensino.
“Vamos disponibilizar uma linha de apoio para os testes serológicos”
Em março, juntou-se a uma série de responsáveis políticos europeus num único apelo para que as sociedades científicas disponibilizassem o conhecimento que estavam a produzir sobre este novo coronavírus. Isso já foi feito?
Portugal tem assumido uma posição particularmente ativa quer na União Europeia (UE), quer no contexto da UNESCO para aquilo que chamamos uma estratégia de ciência aberta. Esta questão não é apenas para a Covid, é uma questão geral em todas as áreas do conhecimento contra a privatização do conhecimento. Esta ideia de que o conhecimento gerado tem de ser aberto a todos, sobretudo em termos do acesso, da participação e da relevância é cada vez mais crítica. E agora que estamos perante uma pandemia, aquilo que fizemos — um conjunto de ministros da UE, dos Estados Unidos, do Brasil, da Índia, da China — foi pedir às sociedades de editores para abrirem sobretudo o acesso às revistas. É um processo, também ao nível da UNESCO, está longe de estar concluído, tem havido muitos sítios na internet que se mobilizaram e em Portugal foi criado um sítio específico, Science4Covid, onde os cientistas disponibilizam conteúdos.
Mas em Portugal também há um caso muito específico. Ao mesmo tempo que o Governo português, na sua pessoa, fazia esse pedido, havia uma série de cientistas e investigadores portugueses que pediam às autoridades portuguesas que disponibilizassem os dados de doentes com Covid em Portugal, para eles próprios poderem ajudar. E estiveram semanas a mandar cartas abertas atrás de cartas abertas. Isso, entretanto, já foi respondido, mas alguns investigadores dizem que a informação vem a conta-gotas e é escassa. Porque é que foi preciso esperar tanto tempo e, a ser verdade que é assim, o que é que continua a falhar?
Tenho aqui de assumir uma posição muito responsável. Também me insiro dentro daqueles que acham que toda a informação deve ser disponível, mas percebemos que há limites na organização e na dimensão dos serviços públicos. Seria ótimo podermos ter todos os serviços perfeitamente organizados para, de um dia para o outro, disponibilizarmos toda a informação. Mas desde o serviço de chamadas do SNS24 a todos os outros dados possíveis, tudo tem de ser organizado e anonimizado, para poder ser libertado. E isso é um processo muito trabalhoso, sobretudo garantindo os princípios não apenas de igualdade, mas de privacidade da informação. E foi preparada com o tempo que foi possível pela Direção-Geral de Saúde, que é proprietária desses dados. Demorou algum tempo, mas estou em crer que foi feito nas melhores das intenções e não podemos criticar serviços que, ao mesmo tempo, têm que fazer muitas outras operações.
Esse trabalho está a ser feito pela FCT?
A FCT, em paralelo com o trabalho da Direção-Geral de Saúde, lançou, pelo terceiro ano consecutivo, e este ano focado na Covid, um programa para financiar as equipas de investigação que trabalham com autoridades de saúde para aplicação de sistema de informação, nomeadamente inteligência artificial, para tratar os dados. Mas a disponibilização dos dados foi feita exclusivamente pela Direção Geral de Saúde.
Foi criado um consórcio, [o Serology4Covid] com 5 instituições científicas [o Instituto Gulbenkian para a Ciência, o Instituto de Medicina Molecular, o Centro de Estudos de Doenças Crónicas da Nova Medical School, o Instituto de Tecnologia Química e Biológica António Xavier e o Instituto de Biologia Experimental e Tecnológica] para fazer testes serológicos. Qual é o apoio que o Governo vai dar? Teve algum papel na criação deste consórcio? A FCT vai financiar ou não?
Esse caso está em vias de desenvolvimento. Há uns meses começámos por participar na iniciativa europeia para apoiar atividades de investigação e desenvolvimento a nível europeu. Depois lançámos, através da FCT, um primeiro concurso chamado RESEARCH 4 COVID que já está concluído e vai já abrir a segunda fase. Entretanto, foram abertos dois grandes editais, para empresas e instituições do sistema científico com o acesso a fundos comunitários de cerca de 60 milhões de euros. E ainda, em paralelo, a Agência de Inovação lançou outro edital com 4 milhões de euros para sistemas já em curso. Em relação a estes há duas questões. Por um lado mobilizámos, de uma forma inédita, a participação dos laboratórios científicos portugueses para os fazerem: já temos 19 instituições, com 12 já certificadas pelo INSA [Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge] para os testes de diagnóstico, os testes virais. Baseou-se numa iniciativa, particularmente de reconhecer, do Instituto de Medicina Molecular da Universidade de Lisboa, sob a liderança da investigadora Maria Mota, que adaptou um protocolo internacional a reagentes nacionais para poder fazer os testes. Esse processo foi reorientado sobretudo para os lares, com um protocolo assinado com o ministério de Trabalho e Segurança Social de forma a reduzir a pressão sobre os hospitais. Na sexta-feira passada já tinham sido feitos quase 10 mil testes e a capacidade a partir desta semana deve ser de cerca de 3.500 testes diários. Estamos a falar de testes virais para os quais foi disponibilizada uma linha de financiamento de fundos comunitários a 100 por cento, a fundo perdido, pelo ministério da Coesão Territorial que financia a Segurança Social que depois financia cada laboratório. Em paralelo, estão a ser desenvolvidas várias iniciativas, não apenas do consórcio que referiu [que procura produzir um teste nacional], mas outras, para combinar os testes virais com testes serológicos que não são testes de diagnóstico, são apenas uma análise à capacidade de nós gerarmos anticorpos. São um teste de imunidade e particularmente importante para dar confiança à população naquilo que pode ser a reativação das atividades económicas e sociais. O último resultado, por exemplo publicado na sexta-feira passada na Califórnia, pela Universidade de Stanford, mostra que para uma amostra grande feita no sul da Califórnia, entre 50 a 80 por cento das pessoas que já tinham tido o vírus não tinham tido sinais. Isto mostra que, afinal, a taxa de mortalidade é muito baixa e os resultados da Califórnia mostram que, se se considerarem todos aqueles que afinal tinham sido infetados mas não tinham tido sintomas, o resultado não foi muito diferente de uma gripe sazonal. Hoje há muitos testes no mercado, com custos muito baixos. Enquanto o do viral é de 90 euros globais por teste, os serológicos têm um custo de cerca de 5 euros por teste. Estamos a tentar massificar, [apoiamos] várias instituições incluindo esse consórcio. E tal como disponibilizámos uma linha [de apoio] para o financiamento de testes virais, vamos também disponibilizar uma linha para os testes serológicos. Estamos à espera de ter quer o teste nacional quer os de outros laboratórios que estão a adquirir testes. Por exemplo, no Porto, o i3S, a nossa maior instituição científica, já está a lançar isso com o apoio específico da câmara do Porto. Estamos a lançar vários iniciativas nessa área.
A FCT comunicou a possibilidade de ajustes à calendarização dos projetos em curso, bem como a prorrogação das bolsas financiadas diretamente pela FCT. Mas não importa também acautelar o prolongamento dos prazos de bolsas financiadas indiretamente (projetos), bem como dos contratos a termo e a termo incerto financiados pela Fundação?
Claramente que sim, nem poderia ser de outra forma. Tenho sistematicamente instruído a FCT (com o total acordo, como não poderia deixar de ser, do conselho diretivo da Fundação), que todos os processos das bolsas, dos contratos e dos projetos são obviamente prorrogados por este período de uma relativa incerteza. Para além disso, a FCT prolongou, porque estávamos com vários concursos pendentes, pelo menos um mês os concursos de projetos. Estamos perante uma emergência, uma situação única, que nunca tínhamos vivido nem em democracia nem em 100 anos, e por isso têm que ser resolvidos com situações únicas. A FCT não pode senão aceitar outra coisa que não seja a prorrogação de todos os pedidos.
[Veja aqui a entrevista completa a Manuel Heitor]