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Manuel S. Fonseca é fundador e editor da Guerra & Paz

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Manuel S. Fonseca é fundador e editor da Guerra & Paz

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Manuel S. Fonseca: "A 'cancel culture' não é uma coisa nova. Era o mesmo que Salazar fazia"

O editor recordou os anos que passou em Angola no livro "Crónicas de África". Em entrevista ao Observador, recordou os momentos difíceis, mas também bons e formativos, e os cheiros de África.

Manuel S. Fonseca, que passou a infância e juventude em Angola, regressou aos anos de 1959 a 1976 no seu mais recente livro, Crónica de África, uma “viagem encantada”, repleta de grandes aventuras e episódios caricatos, como o do chimpanzé que se empoleirou numa carrinha que fazia a distribuição de bebidas pelas mercearias do musseque Sambizanga, um dos bairros humildes nos arredores de Luanda, para chegar às garrafas de Coca-Cola.

Crónica de África, publicado este mês de fevereiro pela Guerra & Paz, editora de que Fonseca é fundador e editor, reúne um conjunto de textos que o ex-programador da Cinemateca e ex-diretor de programas da SIC, hoje com 69 anos, escreveu sobre as suas experiências em Angola, sobretudo em Luanda, da infância à adolescência e da idade adulta à participação utópica no alicerçamento da independência. O Observador conversou com ele.

"Crónica de África", uma "viagem encantada" a Luanda de Manuel S. Fonseca, foi publicada em fevereiro pela Guerra & Paz. Tem prefácio de Pedro Norton

As suas crónicas estão repletas de referências a filmes, a livros, a canções. 
Para mim, essas vivências não são decorativas, não são eruditas, no sentido de tentar pintar a minha adolescência com cores que não são minhas. Estão lá porque são vivenciais. Esses livros, esses filmes e essas canções fizeram mesmo parte das cenas que vivi, e tinham de estar lá integradas.

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Diz a certa altura que “a escrita é uma leveza nefelibata”, que vive nas nuvens. O que é que quer dizer com isso?
Fiquei um bocadinho meloso na escrita. Tenho uma tendência para deixar derramar todos os açúcares, um bocadinho de mel. E isso tem de facto a ver com a forma como me comecei a interessar pela narrativa. Curiosamente, era oral. A minha mãe lia-me a mim e à minha irmã um livro quando éramos pequenos.

Que tipo de leitora era a sua mãe?
Era bastante devota, sem ser beata, não passava o tempo na igreja. Tinha um sentido de espiritualidade. Apesar de ser uma pessoa muito simples — veio de um meio camponês, tinha apenas a quarta classe –, tinha uma grande sensibilidade. E a sensibilidade levava-a a ler, a fazer leituras de devoção religiosa. Todos os dias, ao fim da tarde, quase como os americanos leem a Bíblia. Só que não era a Bíblia. [Eram textos que] contavam histórias de princesas devotas que eram aprisionadas por reis infiéis e que queriam obrigá-las a negar a sua fé; ou sobre pescadores no alto mar que de repente se confrontavam com uma grande tormenta e que naquele sufoco tentavam elevar o espírito para se salvarem. Todas essas leituras eram leituras que enchiam de castelos de nuvens a minha cabeça, quando tinha seis, sete anos. Talvez por isso, ainda hoje um dos meus doces favoritos seja as farófias, porque têm as claras em castelo. Para mim, a melhor escrita — que nunca alcançarei, mas que já vi noutros — é a que se faz quase de nuvens, sem peso.

"Todas essas leituras eram leituras que enchiam de castelos de nuvens a minha cabeça, quando tinha seis, sete anos. Talvez por isso, ainda hoje um dos meus doces favoritos seja as farófias, porque têm as claras em castelo. Para mim, a melhor escrita — que nunca alcançarei, mas que já vi noutros — é a que se faz quase de nuvens, sem peso."
Manuel S. Fonseca, escritor e editor

E o prazer da escrita? Quando é que surgiu?
A primeira vez que tive noção da escrita foi quando fiz o quinto ano de liceu. Tinha de fazer os exames nacionais e, quando foi a prova de Português, não escrevi uma redação normal para aquele tempo. Escrevi uma coisa ficcionada a partir de experiências reais de dois dos meus grandes amigos dessa altura, tinha então 15 anos. Era bastante prematuro. Comecei a sair bastante à noite e a ir beber copos. Aos 15 anos, a minha mãe deixava-me andar com dois gandulos, como diríamos hoje em dia, que eram duas pessoas maravilhosas. Tive uma nota fantástica. Fiquei a perceber que valia a pena esse investimento. Foi um ato de rebeldia, nunca tinha lido uma redação daquele género. As redações tinham convenções, havia um tema. E eu libertei-me completamente. O facto de alguém — não sei quem foi o professor que examinou essa redação — não ter seguido as regras estritas e ter-se deixado levar por aquela história convenceu-me que talvez valesse a pena. Não só me tinha dado prazer a mim como desse prazer tinha sentido uma gratificação imediata da autoridade, que disse “está bem”. Talvez tenha nascido aí uma noção de escrita. Foi lento. Nesses anos de Angola, e sobretudo nos anos em que comecei a chegar à idade de homem, as leituras eram muito dirigidas. A literatura portuguesa tinha uma grande importância, a literatura americana tinha uma enorme força, também, para nós daquela geração. E aí, sim, comecei a escrever coisas terríveis que, felizmente, foram todas destruídas.

Eram textos de ficção?
Escrevi poemas que eram joycianos. Lia nessa altura, com uma convicção tremenda, o Finnigans Wake [último romance de James Joyce, de 1939], que ninguém consegue ler. Li umas traduções portuguesas e, depois, uma versão inglesa. Em português, não havia tradução, que eu saiba. Não sei se há hoje. Havia umas traduções de uns excertos, e realmente eram o apocalipse da linguagem. Marcou-me muito e fui atrás, pela primeira vez, da forma, e não do conteúdo, que voltei mais tarde a privilegiar e que é para mim o essencial da escrita.

Refere numa crónica que o herói que queria ser ficou na adolescência. Porquê?
Sempre gostei das figuras de ação: os militares, os bombeiros que salvam pessoas. Sempre achei que há um lado de dádiva e de solidariedade em certas áreas da atividade humana que são superiores a coisas que têm hoje uma grande dignidade para mim, como é desenvolver a cultura, desenvolver a economia. São tudo atividades altamente meritórias, mas não têm o encanto e o elemento de aventura, de risco, que tem o detetive, o espião, o soldado. E esse herói eu falhei. Houve um momento em que podia ter sido um herói dessa natureza, mas acabei por não conseguir. Uma das razões pelas quais fiquei em Angola e não saí no momento da independência tem a ver com muitas escolhas políticas e ideológicas, a noção absoluta de que queria que aquele país fosse independente, mas também com essa ideia de poder participar numa ação única na História. Não foi uma experiência muito feliz. A única coisa feliz foi que a independência existiu. E essa dignidade ninguém a pode retirar a um povo e a um território. Infelizmente, tudo o resto correu num sentido que não era o que idealizávamos e que esperávamos, e que provavelmente nunca poderia ser dado o tipo de ideias que tínhamos. Foi o mais próximo que estive de ser esse tipo de figura.

Manuel S. Fonseca na infância e adolescência: em cima, à direita, quando tinha 7 anos; e em baixo, à direita, quando tinha 15 anos

Cortesia de Manuel S. Fonseca

Mudaria alguma coisa na sua participação na independência de Angola?
Não mudaria uma vírgula. Já tinha inclusivamente saído de Angola, em 1975, e voltei. Estava em Grenoble, a estudar Sociologia. Ainda tinha de tratar dos papéis, estava lá clandestino. Naquele tempo, não tinha um cartão para estar em França, entrei como turista. Não tinha sequer sítio para ficar. Mas não foi isso que me fez regressar a Angola. O que me fez mesmo regressar a Angola foi essa dimensão de aventura que me foi na altura contada e a ideia de que há momentos da História que são únicos e ou os vivemos ou passamos ao lado deles. Nessa altura quis mesmo apanhar esse comboio.

Como foi essa experiência?
Apanhei esse comboio com todas as dificuldades. Consegui que me pagassem uma passagem para Lisboa e, em Lisboa, consegui uma coisa única — e que está contada numa das crónicas — que é verdadeira: na ponte aérea portuguesa de Angola para Portugal, em que milhares e milhares de pessoas vinham de regresso dadas as condições terríveis que a guerra estava a originar, consegui ir à boleia num dos boeings de regresso. O avião era civil, mas fazia parte da ponte aérea militar. Apanhei-o em Figo Maduro, onde iam dois soldados e a tripulação. Como se estivesse a fazer auto-stop na estrada para ir à boleia para a Costa da Caparica.

Que perigos encontrou quando lá chegou?
Ainda estávamos no governo de transição português e parámos na parte militar do aeroporto de Luanda, que era o aeroporto Craveiro Lopes e que é agora o aeroporto 4 de Fevereiro. Não havia alfândegas. Saí sozinho com um saco às costas, com três pares de calças, duas camisas e umas t-shirts, e uma máquina de escrever, que ainda conservo, uma Hermes Baby, maravilhosa. E fui a pé para a casa de uns amigos que moravam perto do aeroporto. Abriram-me a porta eram seis da manhã. Veio uma onda simpática de canábis — de liamba, como se dizia em Luanda. Recomecei aí a minha vida lá. Logo a seguir, apanhei um avião para o Lobito. Como angolano, tinha vivido sempre em Luanda, mas esses anos de revolução e de conflito vivi-os no Lobito. E no Lobito, sim, as coisas estavam muito complicadas. O conflito entre o MPLA e a UNITA era já muito intenso. Comecei a incluir-me nas milícias armadas que estavam ligadas ao MPLA. Fiz vigilância na costa com um barco oceanográfico para, juntamente com outras pessoas, prevenirmos uma eventual entrada por mar da África do Sul. O pobre do barco oceanográfico não tinha quaisquer condições para confronto militar. E descobri que também tinha sido isso que o Hemingway tinha feito durante a Segunda Guerra Mundial, quando o governo americano deu ordem aos pescadores para verificarem se havia submarinos no Golfo. Ele também ia, com os dois filhos, no barco dele, à procura de submarinos alemães. E a estratégia dele era: se os encontrasse, esperar que se aproximassem e, quando abrissem a escotilha, meter lá para dentro granadas. Nós éramos de uma grande inocência, de uma total irresponsabilidade. Não tínhamos nem noção do que nos poderia ter acontecido se as coisas tivessem caminhado noutro sentido. Essa ideia de independência era aquilo que nos movia e que alimentava o nosso sonho.

"Uma das razões pelas quais fiquei em Angola e não saí no momento da independência tem a ver com muitas escolhas políticas e ideológicas, a noção absoluta de que queria que aquele país fosse independente, mas também com essa ideia de poder participar numa ação única na História. Não foi uma experiência muito feliz. A única coisa feliz foi que a independência existiu."
Manuel S. Fonseca, escritor e editor

No livro, nota-se o cuidado de não julgar o que aconteceu.
O meu livro é um livro que aparentemente não é político, é um livro de memórias, de vivências. Mas, sim, ele tem claramente um fundo político. O de uma rejeição óbvia do colonialismo, no mesmo sentido em que se, por exemplo, Espanha viesse ocupar Portugal, nós reagiríamos e quereríamos preservar a nossa autonomia. Tirando isso, é muito importante dizer que uma grande parte das análises feitas ao colonialismo são análises puramente abstratas. Não têm lá dentro pessoas autênticas e vivas. São análises feitas a partir de princípios maniqueístas, de aplicação de modelos que são prévios e que depois têm de bater certo. Não pode haver amor entre brancos e negros, por exemplo, e há. Há e houve. Eu amei, sei que se pode amar. E sei que havia felicidade. São esses momentos reais que quero passar, deixando depois às pessoas que tirem as suas próprias conclusões. Mas o que quero deixar vincado e claro é que o que se viveu em Angola, em Luanda, em certos meios crioulos, em certos meios de miscigenação, durante os anos 60 e até em 74, foram, muitas vezes, momentos de total empatia e de criação de qualquer coisa de diferente. Um bocadinho como o samba brasileiro, se quiser. Em que ali se misturam culturas e pontos diferentes. Estava a construir-se qualquer coisa de novo e original. Esse qualquer coisa de novo e original, essa colonização — e não estou a falar do colonialismo –, tal como a romana ou a árabe sobre nós, e que nós deixaram uma série de marcas importantíssimas, fundamentais e até de identidade, teve muita importância para Angola. E Angola será melhor quando, no futuro, ao contrário do que sustentam algumas dessas teses muito rígidas, puritanas e fundamentalistas, conseguir voltar a receber e a tirar partido daquilo que foi a melhor herança da colonização. Havia a má herança, mas também havia a boa herança da colonização.

O que foi a herança boa da colonização?
Quando Angola tiver o desenvolvimento histórico suficiente para resgatar, se ainda conseguir, essa herança… Foi pena que se tivesse perdido esse cordão umbilical, era o que poderia eventualmente ter feito de Angola um país melhor do que aquilo que ele é hoje. Aquilo que ficou em Angola nas gerações que a comandaram a seguir foi a herança marxista, juntamente com a boa ideia que foi a independência. Infelizmente, essa herança marxista, também por circunstâncias geoestratégicas, por guerras que vinham de fora, entre os Estados Unidos e a União Soviética, foi fatal. Fez ruturas com aquilo que poderia vir da herança colonial e que era benéfico. Ficou a língua portuguesa, mas perderam-se muitas outras ligações: de indústria, de desenvolvimento escolar… A rutura foi tão grande que se andou bastante para trás. Uma grande pena para as novas gerações angolanas, que têm partido de uma base muito mais fraca do que aquela que a herança continuada podia ter garantido.

Manuel S. Fonseca na sede da editora Guerra & Paz, em Lisboa

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

O que pensa da cancel culture?
A cancel culture não é uma coisa nova, é muito velha. A cancel culture era o mesmo que, por exemplo, Salazar fazia. Não vejo grandes méritos em retomar princípios como os de Salazar ou de Estaline. Cancel culture é essa capacidade de, em relação a pessoas vivas — grandes professores de História ou um grande filósofo –, conseguirmos que percam o emprego, desapareçam, sejam esquecidas, não possam ser mencionadas, sejam ostracizadas pela História. Obviamente que não posso situar-me ao lado deste tipo de relações. Acho que precisamos é de diversidade, da possibilidade de expressão de todas as formas de pensamento, mantendo sempre grandes princípios de racionalidade — que, no fundo, a razão, a ciência, a tecnologia, triunfem. Com elas, triunfará também, certamente, a grande cultura humanística e universal. É essa que me interessa, é essa que está implícita em todos os textos das crónicas que publico em Crónica de África.

Ao escrever o livro, sentiu uma clivagem entre o Manuel-criança e adolescente e o Manuel-adulto?
Há uma coisa que o Pedro Norton, que teve a grande gentileza de escrever o prefácio, por amizade, desinteressada, fala, que é a de uma certa eternidade da infância. Obviamente, sou adulto, tenho 69 anos, não posso persistir nesta ideia de que tenho dez, onze ou 14 anos. Mas nunca consegui pensar em mim seriamente como um adulto. Nunca senti, mesmo agora, quando falo com pessoas que têm posições sociais importantes, que são presidentes disto ou presidentes daquilo, acho sempre que olham para mim e estão a ver o miúdo de 11, 13 ou 14 anos. Sei que sou adulto, que tenho obrigações (até tenho uma empresa), mas continuo a pensar e a viver assim — e na escrita tento que o seja também. Quando vou na rua, já não consigo correr, já não jogo futebol, mas quero que a minha escrita ainda jogue futebol. Há um lado de mim que não quero largar. E sei que quando o largar será possivelmente o fim. Preciso de estar iludido com essa ideia de que ainda vou a jogo.

Fala em referências de adolescência como Sartre, Kerouack, Somerset Maugham.
O Fio da Navalha foi o que mais me marcou, por causa da busca da espiritualidade. E da busca da verdade, também. Larry, o protagonista do livro, é, por um lado, quase um nómada — larga tudo. Essa ideia de largar tudo era muito sedutora quando tinha 14 anos. E nunca tive um problema em minha casa, com os meus pais, daqueles choques terríveis, de pressão ou de repressão. Mas a ideia de fugir de casa animava-me. O grande problema foi mesmo esse: é que nunca tive nenhuma razão para fugir de casa, mudar tudo, ir para uma cidade onde não se sabe onde se está. Por outro lado, necessitava procurar o verdadeiro sentido das coisas, da vida, a espiritualidade; quem é Deus, há Deus, não há Deus. Há bocado, perguntou-me porque achava que não era um aventureiro. Porque não consigo, ao contrário de Larry, atingir o nirvana. E de, como ele, ser capaz de curar, com uma moeda na mão, terríveis dores de cabeça. Já o Sartre foi um choque. A Náusea tem uns episódios em que o protagonista agarra numa pedra e sente que aquilo ganha vida. Nessa altura, não conseguia tocar em nada.

Manuel S. Fonseca com amigos, em Angola, em 1969 (à esquerda). Num casamento de um amigo, em 1972 (à direita)

Cortesia de Manuel S. Fonseca

Escreveu sobre o lado ritualístico e comunitário de ir à igreja.
Sou de uma cultura humanística cristã, não tenho nenhuma dúvida sobre isso. Tenho um apreço enorme pelo cristianismo e pela mensagem que passou: a ideia de personalidade humana, o reconhecimento do outro como igual a mim mesmo, amar o próximo como a nós mesmos… Todos os preceitos que estão no Sermão da Montanha de Jesus são princípios gloriosos, se tivermos a força de os seguir. A fé, essa, desapareceu. Fiz depois um curso de vida apostólica por volta dos 17 anos e foram anos em que, aí sim, era mais o sentido social do que o espiritual que nos marcava. Tínhamos dois padres importantes: o padre Janeiro, que tinha uma vivência mais mundana, e o padre Raúl, um basco, que tinha uma vivência mais social. O padre Raúl dizia-nos que no país dele as pessoas iam à procura de metralhadoras. Era esse o modelo. E era um modelo de uma grande liberdade tropical. Fazíamos grandes convívios e queríamos criar comunidades de base entre rapazes e raparigas. O nosso estilo de vida talvez não fosse bem aquilo que os preceitos católicos indicam que deve ser. Tínhamos muita liberdade de praias, de vivência noturna, de grandes fogueiras e grandes acampamentos que nos marcou bastante.

Que cheiros e sabores guarda dessa altura?
O cheiro do musseque, que é um cheiro forte, bom, a mandioca queimada. O cheiro dos mangais do quilómetro 36 é inesquecível. E os sabores. Sou um consumidor de mariscos, tem tudo a ver com o que vivi: pescava caranguejos com o meu pai, comíamos camarões. Mesmo para famílias brancas, pobres, como nós, era bastante acessível. Continuo a comer de vez em quando a minha moamba, eu próprio a faço. E não me esquecerei das manhãs. Seis da manhã e grandes festas com sobrecarga homérica de álcool, o muzongué, bem picante. É um caldo de peixe. Bebíamos aquele caldo com farinha de pau, para ver se conseguíamos regressar à vida.

De que forma é que a passagem do tempo mudou a forma como recorda aquele período?
Não sou imune às alterações pelas quais todos passamos. A minha memória tende a adoçar cada um dos elementos que está neste livro. Mais: a minha escrita caminhou ao lado dessa memória adoçante.

"Comecei a incluir-me nas milícias armadas que estavam ligadas ao MPLA. Fiz vigilância na costa com um barco oceanográfico para, juntamente com outras pessoas, prevenirmos uma eventual entrada por mar da África do Sul. O pobre do barco oceanográfico não tinha quaisquer condições para confronto militar. E descobri que também tinha sido isso que o Hemingway tinha feito durante a Segunda Guerra Mundial."
Manuel S. Fonseca, escritor e editor

Mesmo nos maus momentos?
Mesmo os momentos maus. Caminharam lado a lado. O essencial — as coisas que lá estão — aconteceram mesmo. A minha mãe julgou-me morto. Julgou-me morto porque tinha um 2 Cavalos e fugi do FNLA, com dois rapazes brancos. O FNLA incendiou um 2 Cavalos junto ao Dondo [na província de Cuanza Norte]. Isto aconteceu. Mas não era o nosso carro, senão não estaria cá para contar a história. O meu 2 Cavalos passou naquele sítio, só que continuou. A pistola-metralhadora Vigneron é mesmo a pistola-metralhadora Vigneron. O chimpanzé existiu. A minha narrativa tem a ver com o espírito da crónica. A forma de construir uma crónica interessa-me, na forma como trabalho a frase, na forma como trabalho o léxico, que tento que seja variado e surpreendente. A minha pobreza é que acabo por reduzir-me sempre aos factos. Tenho por modelo o melhor cronista da língua portuguesa que conheço, o [brasileiro] Nelson Rodrigues. Depois tive um trabalho durante anos na Cinemateca a escrever sobre filmes com o João Bénard da Costa. Sem dúvida que lhe devo alguma coisa: no tipo de adjetivação, na forma como contava. Esse trabalho é um trabalho de carácter literário que tem a intenção de encantar, agradar, seduzir, que é aquilo que penso que a escrita deve fazer.

Nelson Rodrigues não agradava.
Mas era sedutor. Ele seduz de outra forma, mas o objetivo dele é o mesmo. Se fosse apenas para atacar, atacava mais depressa, mais diretamente, o seu alvo. Mas não. Ele dá grandes voltas e as grandes voltas são elementos de sedução. É verdade que o que o anima é um espírito de denúncia e de crítica, mas é um espírito de denúncia que sente um grande gozo a fazer a crítica. Coincidimos nessa parte. O princípio – da sedução – é o mesmo: eu com a doçura, ele quase sempre com sal e jindungo [pimenta-malagueta].

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