O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa

numa comunicação ao país na décima segunda renovação do estado de emergência.

Reduzimos nesta quinzena significativamente o número de infetados e o número de mortos e o indicador de propagação do vírus atingiu os valores baixos num ano. Tudo comprovando a vossa lucidez, determinação e coragem. Nesta situação, é muito tentador defender que há que abrir e desconfinar o mais rápido possível e as escolas seriam o setor mais proposto para o início dessa abertura.”

Em contraponto com o ministro da Administração Interna — que no relatório de análise ao estado de emergência conhecido esta quinta-feira responsabilizou a população (“não interiorizou a gravidade da situação”, disse Eduardo Cabrita) — Marcelo recorre ao elogio para dizer que os grandes obreiros da redução dos casos são os portugueses com “lucidez, determinação e coragem”. O Presidente não perde também tempo para começar, logo no início do discurso, a explicar como a tentação de começar a desconfinar já seria um bombom envenenado. Embora admita que possa parecer muito apetecível e lógico.

As razões invocadas todos as conhecemos. A evolução positiva já não teria recuo e, se tivesse, não seria para os valores de há um mês. A economia e a sociedade sofrem uma crise profunda. Cultura, movimento associativo, desporto jovem, restauração, hotelaria e comércio sofrem ainda mais. A saúde mental está crescentemente abalada. As escolas e as crianças e os jovens em particular veem o segundo ano letivo atropelado. Só importaria garantir a existência de vacinação mais rápida e ampla que cobrisse o que se fosse abrindo, começando pelas escolas, vacinando mais cedo as escolas. Só importaria ainda assegurar testagem e rastreio mais amplos e virados para o mais urgente. No caso das escolas, com testes simples, rápidos,  com a dupla segurança de vacinas e testes, por fases sem os riscos corridos no passado.  São razões de quem quer ou quem espera o anúncio de passos imediatos para acabar com o regime do último mês. Tudo o que fica dito tem lógica, corresponde ao que dizem os portugueses e é sedutor.”

Marcelo Rebelo de Sousa faz de advogado do diabo e desconstrói os argumentos dos que querem — ao contrário dele próprio — uma abertura no imediato. Responde à opinião pública (de comentadores), à opinião publicada (em cartas abertas) e também opinião política (dos partidos que exigem um desconfinamento mais rápido). Diz que uma vacinação mais rápida, em particular nas escolas, bem como o aumento de testagem e rastreio são argumentos válidos e até lógicos, mas não são suficientes porque o que conta são os números. Além disso, para demonstrar que não está alheio à realidade económica e social, faz questão de enumerar os setores ou áreas que o confinamento está a destruir com mais força, desde a economia à saúde mental.

É mesmo o mais sedutor perante o desgaste destas exigentes semanas. Há, porém, um outro prato na balança: o número de internados ainda é quase o dobro do indicado por intensivistas que estão no terreno a tratar do mais grave; o número de cuidados intensivos é mais do dobro do aconselhado para evitar riscos de novo sufoco.

Mais importante do que os argumentos aparentemente válidos e do que seguir o caminho mais sedutor são os números. E, aí, o país ainda não atingiu as metas que o Presidente tem referido. Marcelo Rebelo de Sousa diz que o número de internados (esta quinta-feira era de 2767) é ainda o dobro da meta referida pelo próprio Presidente (1250), tal como o número de internados em cuidados intensivos que estava esta quinta-feira nos 567, o que representa ainda mais do dobro da meta referida pelo chefe de Estado como ideal para o desconfinamento: 200 internamentos em UCI.

Nunca se pode dizer que não há recaída ou recuo e os números que nos colocaram no lugar de piores da Europa e do mundo não são de há um ano ou de há meses, são de há um mês. Tal como de há três semanas são as filas de ambulâncias à porta dos hospitais. Pior do que vivem agora a economia, a sociedade, a saúde mental e as escolas só mesmo se tivermos de regressar ao que acabámos de viver daqui a semanas ou meses. 

Para os que acreditam que a situação de há algumas semanas é irrepetível e que, por isso, se deve avançar para o desconfinamento, Marcelo Rebelo de Sousa lembra que ainda há menos de um mês havia filas ambulâncias à porta dos hospitais e que ninguém pode garantir que esse cenário não volta. Neste campo, o Presidente da República tem a clara intenção de dramatizar para que não haja facilitismos de avançar para o desconfinamento.

Sabemos que por atraso na entrega de vacinação, não haverá no próximo mês, mês e meio de vacinação que garante tudo o que se quer garantir, desde logo nas escolas. Sabemos que testar e rastrear a escassíssimas semanas nos termos que permitam a segurança necessária poderá ser complicado mesmo só para as escolas. São estas razões opostas que fazem pensar duas vezes em criar-se expectativas de aberturas apressadas por muito sedutoras que sejam. Qual é então o desafio que se coloca a quem tem de decidir? A resposta é simples: decidir deve basear-se na consciência de quem decide e não na preocupação de seguir a opinião de cada instante. Ora quer fechar por medo, ora quer abrir por cansaço.”

Marcelo deixa aqui um aviso ao Governo de que não pode ceder à opinião pública caso comece a existir uma pressão pública para o desconfinamento. É um claro recado a Costa para não seguir “a opinião de cada instante”, quer seja ela pressionada pelo “medo”, quer pelo “cansaço”. Lembra que não há ainda sequer vacinas suficientes para vacinar os agentes escolares e que a testagem e o rastreio daqui até a uma eventaul abertura mais precoce das escolas não seria um garante de que as escolas abririam com toda a segurança.

Decidir pressupõe a solidariedade institucional e estratégica entre o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo, com um único fim: enfrentarem juntos a causa comum. Assim tem sido, assim continuará a ser. Sendo certo que o Presidente República, pela natureza das coisas, o principal responsável.

Depois de uma semana de alguma tensão entre Belém e S.Bento — em que o Presidente pressionou para que houvesse um plano para o desconfinamento e o Governo teimou em não discutir em público esse plano — Marcelo Rebelo de Sousa deixa aqui um aviso a Costa de que está condenado a entender-se com Belém na gestão da pandemia. Refere, por isso, que para qualquer decisão é necessária não apenas uma “solidariedade institucional”, mas também também uma “solidariedade estratégica”. Ou seja: de nada vale o Presidente insistir numa estratégia e o Governo ir em sentido contrário, pois estão condenados a um consenso. Nesta correlação de forças, Marcelo puxa ainda da hierarquia para lembrar a Costa que é ele o chefe de Estado, para as coisas boas e más: “O Presidente República, pela natureza das coisas, o principal responsável”. Mais do que servir de escudo do Governo, Marcelo quer aqui mostrar que é ele, por força do cargo que ocupa, o mais forte nesta dupla chefia da situação pandémica.

Portugueses disse e repito hoje temos de ganhar até à Páscoa o verão e o outono deste ano. Por outras palavras, a Páscoa é um tempo arriscado para mensagens confusas ou contraditórias, como por exemplo a de abrir sem critério antes da Páscoa, para nela fechar logo a seguir, para voltar a abrir depois dela. Quem levaria a sério o rigor pascal? É pois uma questão de prudência e de segurança manter a Páscoa como um marco essencial para a estratégia em curso. Pode isto significar mais mobilidade por saturação? Pode. Mas um sinal errado de facilidade mal entendida, também pode. Implica isto mais umas semanas de sacrifícios pesados e por isso que o Estado vá mais longe em medidas de emergência e de apoio ao futuro arranque? Implica. Mas a alternativa poderia ser ter de tomar mais tarde as mesmas medidas multiplicadas por dois ou por três.”

Marcelo Rebelo de Sousa não quer nada aberto antes da Páscoa e não podia ser mais cristalino. O Presidente teme uma repetição do Natal na Páscoa e, por isso, quer evitar mensagens equívocas. Marcelo considera que se o Governo abrir escolas em março, fechar uns dias nas proximidades período pascal e voltar a abrir depois da Páscoa vai dar um sinal errado aos portugueses. Esta avança-recua, acredita, pode provocar mais relaxamento na Páscoa e mais casos no pós-Páscoa.

Em resumo, que se estude e se prepare, com tempo e bem, o dia seguinte. Mas que se escolha melhor ainda esse dia, sem precipitações, para não se repetir o que já se conheceu. E nunca se confunda estudar e planear com desconfinar. Sendo mais claro: planear o futuro é essencial, mas desconfinar a correr por causa dos números destes dias será tão tentador quanto leviano, até porque sabemos: os números sobem sempre mais depressa do que descem.”

Para Marcelo mais importante do que um plano, é ponderar bem a data do regresso. E diz que apressar o desconfinamento por os números terem melhorado não só seria pouco prudente, como também “leviano”. Pelo meio parece enviar outra indireta ao Governo, que tem dito que só o facto de apresentar um plano fará os portugueses saírem mais de casa. Marcelo até tinha admitido antes, no discurso, que perante a saturação de um confinamento mais prolongado a “mobilidade” pode aumentar, mas não compra o argumento de que a mobilidade, como diz o Governo, aumente só porque é conhecido o plano desconfinamento. Esta é, assim, mais uma pequena pressão para que o Executivo apresente um plano, mesmo que seja bem mais subtil do que tinha feito há 15 dias.

Citando um quase clássico: um povo que não conhece a sua história está condenado a repeti-la. Nós conhecemos bem a história desta ano de pandemia. Não cometeremos o mesmos erros. E temos a esperança. A esperança, não, a certeza de que, se formos sensatos, o pior já passou.”

O Presidente diz que se o país se esquecer do que passou há umas semanas pode cair nos mesmos erros.  Mas a terminar, como é típico das comunicações de Marcelo aos portugueses, deixa também uma mensagem motivacional. Garante Marcelo Rebelo de Sousa que, se os portugueses cumprirem, o pior já passou e que já ficou para trás a última grande vaga desta pandemia em Portugal.