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Ano 2027. Os franceses vão às urnas para elegerem o seu próximo Presidente. Emmanuel Macron, “um animal político magnífico”, está de saída, impedido de se recandidatar à presidência pela limitação de mandatos imposta pela Constituição francesa. À esquerda, os partidos políticos dizimados. À direita, a União Nacional continua forte, mas, desta vez, Marine Le Pen decidiu passar a vez de se candidatar a um jovem. Éric Zemmour continua minoritário — idolatrado por alguns e odiado por outros.
Não é uma previsão, na verdade. É parte da história descrita no novo livro de ficção de Michel Houllebecq — que, em 2015, abalou França ao escrever sobre um Presidente muçulmano em Submissão (ed. Alfaguara) —, Anéantir (sem edição em português). Mas pode bem ser um retrato fiel do que virá a acontecer daqui a cinco anos, quando os franceses voltarem a ir às urnas para eleger um novo Presidente em 2027.
Este domingo, terão primeiro de responder à pergunta sobre quem querem que dirija os destinos de França agora. Mas uma segunda questão paira sobre a noite eleitoral: o derrotado, seja ele quem for, tomará o sentido de voto dos franceses como um sinal para abandonar de vez a política ou vai ficar para lutar? Para Marine Le Pen, uma derrota no domingo significaria a terceira vez consecutiva que falha a eleição presidencial — mas com uma tendência de crescimento sem precedentes no seu partido. Para Emmanuel Macron, representaria uma derrota tremenda, ao falhar a eleição contra uma candidata anti-sistema; mas seria também um sinal da cristalização de uma tendência em França, que não reelege presidentes desde Jacques Chirac, em 2002. E depois de Le Pen e Macron?
À direita de Le Pen, Marion Maréchal está à espreita. Mas “todos têm medo de Marine”
O professor catedrático da Sciences Po Pierre Bréchon tem muitas dificuldades em imaginar um cenário que não o da derrota de Marine Le Pen este domingo. “É claro que as sondagens podem estar erradas, mas, em geral, elas não costumam errar nas previsões da segunda volta em França”, diz ao Observador a partir de Grenoble, onde dá aulas no Institut d’Etudes Politiques. “Não podemos descartar uma surpresa, mas seria uma grande surpresa se não fosse Emmanuel Macron a ganhar no domingo à noite.”
Perante este cenário, olhemos para o que pode acontecer em caso de derrota de Le Pen: uma demissão da liderança da União Nacional (UN, antiga Frente Nacional) no discurso desta noite de domingo? “Só ela tem a resposta para essa pergunta”, aponta o professor. “Marine Le Pen já vai na sua terceira candidatura, mas obviamente pode decidir concorrer novamente daqui a cinco anos. A sua força política provavelmente aceitaria.”
É que uma nova derrota para Le Pen não decreta obrigatoriamente a sua morte política. Senão, vejamos: consigo à frente do partido, a ex-FN tem conseguido os seus melhores resultados eleitorais consecutivamente. Em 2012, Marine conquistou 18% logo na primeira volta das presidenciais de 2012 (igualando o resultado do pai na primeira volta contra Jacques Chirac), mas falhou a passagem à segunda ronda. Não falharia a seguir: em 2017, teve 21% e chegou aos 34% no confronto contra Macron na segunda volta; agora, em 2022, teve 23% na primeira volta e as sondagens dizem que pode chegar aos 46% este domingo.
E a UN já não é um partido apenas de figuras que agitam as águas nas presidenciais. Controla agora várias câmaras municipais, como Hénin-Beaumont, a norte, e Fréjus, a sul, bem como uma das autarquias de Marselha. Controla também 37 dos 41 cantões no norte do país. Se na Assembleia Nacional tem pouca representação (apenas 8 deputados — o que explica que Le Pen queira uma mudança do sistema eleitoral), certo é que elegeu 23 eurodeputados nas últimas europeias em França, tendo sido o partido mais votado em 2019. Não por acaso, na única vez em que Le Pen abordou uma possível candidatura em 2027, não se comprometeu. “”Vou apresentar-me a uma reeleição”, disse, sublinhando que ainda mantém a esperança em 2022.
Pierre Bréchon lembra, porém, que também podem surgir espinhos no caminho. “Haverá debates internos para descobrir quem está em melhor posição para liderar o partido — ou até mesmo todo o campo [da extrema-direita]”, diz o professor. Isto porque desde esta eleição que há uma nova figura nesta área, Éric Zemmour, que obteve 7% dos votos na primeira volta das presidenciais. “Ainda não sabemos o que lhe acontecerá. Pode gradualmente ir-se tornando menor e ter resultados ainda mais fracos do que nas eleições presidenciais ou, pelo contrário, ser reforçado.” Se tivesse de apostar, porém, o académico considera que o partido Reconquista, de Zemmour, “pode não ir muito longe” por ser difícil o seu candidato recuperar da queda, face ao que as sondagens lhe chegaram a dar (cerca de 15%). Isto num homem “que se considerou como o único que iria unificar a direita nacional, englobando não só a UN como Os Republicanos [centro-direita]”.
Mas, à direita, o panorama político é de rápida recomposição. Talvez Zemmour tenha queimado a sua oportunidade, mas não é o único com ambições de “unificar a direita”. Veja-se o caso de Marion Maréchal Le Pen: a sobrinha de Marine Le Pen abandonou a UN para apoiar Zemmour e continua a acalentar ambições políticas — ainda em janeiro dizia ao Figaro isso mesmo.
Caso a jovem Maréchal, de 32 anos, tente desafiar a tia Le Pen, trará consigo um projeto diferente daquele que a líder da UN tem apresentado. Sempre mais próxima da linha do avô Jean-Marie Le Pen, não lhe agrada a tentativa de dédiabolisation que Marine tem tentado fazer do partido, nem a sua aproximação económica à esquerda. Defensora de uma linha liberal na economia e conservadora nos costumes, é, como descreveu a investigadora Cécile Alduy, “uma personagem paradoxal”: “Ela usa as palavras e a forma de vestir da sua geração, o tom dos jovens, é muito descontraída na forma como se dirige aos outros e tem uma aparência muito moderna, mas aquilo que promove é uma agenda muito conservadora e tradicional”.
Porém, independentemente dos desafios que pode enfrentar à sua direita e em caso de derrota, Marine Le Pen terá de lidar com a reação de dentro do seu próprio partido. Uma opção pode ser a de decidir abandonar o barco já este domingo; o professor Bréchon, contudo, considera que isso não se encaixaria com a sua personalidade. “Creio que ela vai tentar continuar a defender a sua posição dentro da direita radical como pessoa que lidera as tropas”, afirma. “Ela pode tentar continuar a desenvolver ainda mais o seu peso na opinião pública francesa, tentar continuar nesta linha de dinâmica e progresso. Mas não é certo que consiga.”
Se houver sinais de que pode estar a falhar, dentro da UN haverá certamente quem esteja a afiar as facas. “Ao longo da História, a Frente Nacional sempre teve muitos debates internos”, relembra Bréchon. “Por agora, a sua posição ainda é muito forte e ela não enfrenta contestação interna. Mas, em caso de derrota, ela pode surgir.” A figura mais destacada dentro da UN para lhe suceder é, porém, um aliado: o jovem Jordan Bardella, eurodeputado de 25 anos, é apelidado de “delfim” de Marine Le Pen. A sua proximidade é tão evidente que, quando Le Pen se demitiu da liderança do partido para se candidatar às presidenciais, Bardella foi o homem eleito para a substituir temporariamente.
Com Bardella ao leme, a UN manteria o rumo que tem neste momento. “Somos vítimas das nossas próprias caricaturas. Percebo que as pessoas tenham medo de nós”, já disse o jovem em público, a propósito do legado radical de Jean-Marie Le Pen. Consigo, o partido de extrema-direita manteria a tentativa de parecer mais moderado, com Bardella a defender bandeiras como o casamento gay ou a legalização da canábis para efeitos medicinais. Os elogios a Bardella dentro do partido são frequentes — e até fora, como quando Valérie Pécresse disse ao Le Monde que “ele é inteligente, é brilhante”, embora tenha mencionado “áreas de sombra” no seu perfil.
Tal cenário, porém, pode ainda ser distante. Em abril do ano passado, a edição europeia do Politico dava conta de que membros da UN descontentes com a liderança de Le Pen se reuniam semanalmente para equacionar alternativas. Mas muitos abandonaram entretanto o partido, juntando-se a Zemmour naquilo que alguns apelidaram de “mercado de transferências” da direita francesa. E, já na altura, um antigo conselheiro da Frente Nacional avisava que o ascendente Le Pen ainda é grande: “Têm todos medo dela. Há sempre conspirações para a derrubar, mas há sempre alguém que acaba por denunciar os colegas.”
Aconteça o que acontecer, a “recomposição política do centro” pós-Macron começa já na segunda-feira
Pierre Bréchon acha pouco plausível que Emmanuel Macron perca a eleição neste domingo, mas a possibilidade existe. Se as previsões das sondagens não se confirmarem e Macron tiver de assumir uma derrota, o que podemos esperar para o dia seguinte? O próprio não se quis comprometer com nada, quando a jornalista Audrey Crespo-Mara lhe fez essa pergunta há alguns dias: “Nunca faço esses cenários”, respondeu o Presidente. “O dia seguinte será o dia seguinte. Serei um homem livre, com as suas convicções, e seguirei em frente.”
La dernière candidature d’@EmmanuelMacron ?
“Je ne me projette jamais en faisant ces scénarios. Pour être engagé, il ne faut pas penser à ce qui se passe « si ». Et, le jour d'après sera le jour d’après. Je serai à nouveau un homme libre avec ses convictions.” #SeptAhuit pic.twitter.com/3blJ2uzpYf
— Sept à Huit (@7a8) April 17, 2022
O professor da Sciences Po, porém, arrisca traçar alguns cenários por ele. “Pode ter a tentação de se apresentar como candidato a deputado”, diz, tendo em conta que as eleições legislativas serão já em junho. “Em cinco anos, poderia tornar-se o líder de uma oposição a Le Pen” — e, quem sabe, voltar a candidatar-se à presidência em 2027. Contudo, também pode deitar a toalha ao chão e abandonar a política nacional. Aí, Bréchon prevê duas hipóteses: o regresso ao setor privado, “a um cargo de executivo, de diretor de empresa ou de um banco” ou o mergulho na política internacional. “Como ex-Presidente, pode reivindicar uma posição importante numa organização como o Banco Central Europeu, o FMI ou a Comissão Europeia.”
Arrumado o destino de Macron, colocam-se novas questões: “Quem vai pegar na tocha? Quem vai representar o campo centrista na eleição presidencial de 2027?”. Um nome perfila-se de imediato: Édouard Philippe, antigo primeiro-ministro de Emmanuel Macron. Em 2021, lançou um partido, o Horizons, mas manteve-se debaixo da asa do Presidente, decretando-lhe apoio nesta eleição de 2022. Philippe não se compromete com candidaturas futuras, mas já deixou claro ao que vem, dizendo-se pronto para “servir o país”. E não falta quem especule que se terá inspirado na experiência de Chirac, que em 1976 abandonou a UMP (antiga formulação dos Republicanos) e fundou o seu próprio partido, o RPR, antes de se candidatar à presidência.
“Esta é uma força de centro-direita e podemos ver claramente que este partido quer recuperar alguns dos eleitores dos Republicanos — eu diria que os Republicanos mais de esquerda”, ilustra Bréchon. “Os Republicanos mais de direita podem migrar para a direita identitária.” Uma clara “recomposição política” que se começa a desenhar em França para o pós-Macron, o homem que redesenhou o centro com o seu movimento, o En Marche!.
Mas Philippe não tem a sucessão servida de bandeja. Dentro do En Marche! Há figuras mais à esquerda que se sentem desconfortáveis com a ideia de apoiar o antigo primeiro-ministro. Uma já se destacou: François Bayrou, presidente do partido MoDem que também apoia o En Marche!, tem dado a entender que não exclui uma candidatura à presidência. Quando questionado sobre se a sua idade não é um problema, Bayrou respondeu taxativamente: “Sabe que idade tem Joe Biden? 78 anos. Exatamente a idade que eu terei em 2027.” E, para além de Philippe e Bayrou, nos corredores do Eliseu fala-se ainda do nome de Richard Ferrand, macronista de gema e presidente da Assembleia Nacional.
A questão da sucessão de Macron pode colocar-se já neste domingo, mas, se não for o caso, os termos da discussão mantêm-se. “Mesmo que Macron ganhe, vai sempre existir o problema de quem representará o centro em 2027”, sentencia o professor Bréchon. Com o Presidente impedido de se candidatar em 2027 e eleições legislativas à porta, os potenciais sucessores começarão já a definir estratégias na segunda-feira. O clima de guerra civil ao centro pode ser prejudicial até para o próprio Macron, como alertou o cientista político Benjamin Morel em entrevista ao Figaro: “Entre um Presidente enfraquecido e uma maioria em cacos, há o risco de serem os líderes dos diferentes grupos políticos a definir os termos e a vender caro o seu apoio.”
Macron sabe-o. Não por acaso, em setembro do ano passado organizou um jantar no Eliseu onde reuniu membros do En Marche!, alguns ministros e seus aliados destacados na política. O objetivo era o de discutir a eleição presidencial de 2022. “Ultrapassagem, união, alargamento”, terá sido o mote dado pelo Presidente ao encontro, segundo a BFMTV. Adivinhe quem também foi jantar? Édouard Philippe e François Bayrou. Para discutir 2022, mas já com 2027 na cabeça.