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Liberdade, Democracia, Europa
Momento triste para mim: uma certa orfandade política que, embora esperada, só agora de facto se consumou – e não é senão esta a irremediável marca da morte. Orfandade que é real e me pesa. Uma perda que nada absolutamente tem a ver com ser de esquerda ou de direita. Mário Soares, quando foi grande, foi-o por ter sido maior que fronteiras, grupos ou barricadas, intuindo melhor que ninguém onde era o seu lugar e qual a tarefa nacional que lhe competia cumprir. E não, não foi só no combate anticomunista de 1975, o que, não sendo pouco e sendo definitivo, não esgota nem resume aquilo de que era feito: a vocação da liberdade que vinha de longe, era antiga e tudo contaminou pela vida fora; a envergadura da sua coragem; o rasgo de alguns gestos políticos, o tamanho da sua intuição política.
Mas há mais neste homem, há duas ou três ideias, claras e simples, que foram sempre as mesmas mas tão essenciais ao seu propósito de democrata-lutador-pela-democracia que chegaram para lhe conferir um destino: a liberdade, a democracia, a Europa, a irrefutável certeza da nossa pertença ao mundo ocidental e do compromisso dessa pertença. Do que podíamos ser e representar.
Foi isto, mas “isto” foi o essencial. Sempre o percebi, sempre o escrevi. O resto, onde também entram erros e omissões, conta menos. (E há África que, para muitos, como eu, conta muito; para outros quase nada; e para ele julgo que nada.)
Mas houve ainda algo determinante e que não esqueço: depois do tumulto e das feridas do processo revolucionário em curso, após as Fontes Luminosas e outras empreitadas e dolorosos sobressaltos, era preciso, nos idos de 1976, cerzir um Portugal dividido, azedo e arruinado. Fechar as feridas. Mário Soares (eu vi-o fazer isso) reconciliou, juntou, reuniu. Cerziu. Voltou a fazê-lo após ganhar as eleições presidenciais em 1986, ao aperceber-se que tinha diante de si um país hostilmente dividido ao meio.
Das duas vezes tentou sentar Portugal à mesma mesa, deixando de fora apenas quem voluntária e intencionalmente se recusava a tomar nela assento, preferindo-lhe heróis duvidosos e líderes indecentes. Ele quis ser também, para além do seu construtor, o reconciliador da democracia: livre, pluripartidária, civilista, ocidental. Plena. E para isso, e ao serviço disso, fez política, avançando e recuando, deixando-se ver ao mundo, batendo à porta da Europa e pedindo para entrar; agradando, hostilizando ou dividindo; perdendo ou ganhando — mas nunca se menorizando por perder, nem se vangloriando excessivamente por ganhar: era a regra do jogo. Ia andando, parece que só levado pelo instinto, mas reflectindo porventura muito mais do que pensa – ou daquilo que ele dava a ver. Reflectindo sobre si, a vida, as coisas. A morte, o tempo. Por vezes tomando notas, rabiscando ideias, conjecturas, pensamentos.
Nunca desistiu, sempre resistiu
Fiz três livros com ele, o que sempre tomei como um privilégio e me deixou gratas recordações. (Soares teve, julgo eu, a intuição – sorte minha – de perceber que, num certo sentido, talvez ficasse, digamos, bem servido com uma jornalista “oficialmente” de direita, o que lhe alargaria automaticamente o espectro de leitores e curiosos, que alguém saído de entre os “seus”.) Mas hoje quero especialmente recordar que foi sobretudo ao preparar-me para o que viria a ser o segundo volume (“Democracia”) desta trilogia que me levou algum suor a fazer, que voltei a dar-me inteiramente conta da sua fibra de lutador. Singular característica esta, por nela ele juntar, numa só passada, numa só golfada, a coragem, a intuição, a persistência, a capacidade de luta, a capacidade de levar a água ao seu moinho. Afinal, o que fez toda a vida, até aos seus gozosos oitenta anos. (Daí em diante até agora, lembro-me menos bem do que se seguiu).
Voltando a esse segundo volume, recordávamos ambos a década de oitenta, ele deixando fluir uma memória por vezes preguiçosa, eu, de gravador em punho, debruçada sobre a sua cadeira (em Belém ou na sua casa do Campo Grande) e era sempre o lutador que eu ouvia. O que nunca desistia e sempre resistia. Sim, nessa época que agora recordo concretamente, o que eu encontrava sempre estampado sobre o tempo era o lutador, desta feita apanhado no cerco que a política e as suas circunstâncias então lhe moviam: as oposições, à esquerda e à direita, e nem Álvaro Cunhal nem Francisco Sá Carneiro eram pera doce. O primeiro era o proprietário único de um Partido Comunista então forte, dono dos sindicatos, da rua, da “legitimidade” do 25 de Abril e príncipe numa boa parte da media; o segundo, Sá Carneiro, governava mas sobretudo assinara um “antes” e um “depois” na História ainda breve da nossa democracia, ao tornar indisfarçável, através do voto, que o centro- direita e a direita valiam quase metade do país.
A Soares restava uma magra e dura fatia, mas falta sublinhar o resto do cerco para relembrar, à distância de décadas, quão magra e dura de mastigar era a fatia: através do Conselho da Revolução, os militares continuavam omnipresentes na cena e influentes nos bastidores e Ramalho Eanes, que detestava o líder do PS e que o líder do PS abominava, fora já reeleito para Belém, contra a vontade de Soares. No decurso desse para si tão malfadado ano de 1980, Mário Soares, sozinho e enfrentando o seu próprio partido, recusara-se a apoiar a (muito acarinhada) recandidatura presidencial do general. Um gesto de tão alto risco quanto de solitária coragem política. Dizer cerco, é dizer pouco.
O maior dos espectáculos políticos
Lembro-me de que me calhou seguir profissionalmente no Expresso o general Soares Carneiro, candidato da AD e, vindo a saber isso, o dr. Soares dizia-me por vezes que “passasse por lá”, para lhe contar as minhas impressões da campanha da “direita”. E eu passava. O “lá” era a sua casa onde estava a bom recato, intencionalmente afastado dos palcos de ambas as candidaturas. Subia então ao 2.º andar do prédio da Rua João Soares, a Olinda abria-me a porta, eu sentava-me e desfiava o que vira e ouvira nessa semana eleitoral. Ouvidor interessado et pour cause, não via élan nem encontrava fulgor político em Soares Carneiro para derrotar os poderosos apoios que ancoravam Eanes no país e na intenção de votos dos portugueses. Via bem. Depois Sá Carneiro morreu (e foi também a casa do dr. Soares que, após ter sabido, antes da televisão, essa noticia tão brutal, eu obviamente fui nessa noite), a AD esmorecia, o PS voltava devagarinho à tona, o cerco ia-se esbatendo.
Seguiram-se mais episódios felizes ou menos felizes com um governo pelo meio (Bloco Central) ate à densa e tensa campanha eleitoral presidencial de 1986, e é aqui que me interessa chegar, pois é de novo de um cerco à roda do lutador que se trata: falar de Freitas do Amaral, de um lado, com meios avultados e metade do país atrás de si e em festa; de Zenha, capturado pelo PC e por grande parte do PS na pele do “irmão-traidor”; ou de Pintassilgo, que confundia e dividia, o que é senão um cerco político?
Um dia, estava a corrida presidencial a dar os seus primeiros passos e estava eu com o dr. Soares em Braga em pré-campanha, quando, numa quieta manhã de sol que se diria impossível de subverter, o Expresso estampa uma bomba na sua primeira página: Soares partia para a empreitada eleitoral com… 8% das intenções de voto, (ou seria ainda menos?) A entourage gelou, ele não. Aparentando uma segurança que não sentia, continuou olimpicamente a comer castanhas descendo a avenida bracarense e fez simplesmente o que sempre fizera porque era o que sabia fazer: não desistiu.
Lutou, acreditou, enganou-os a todos. Proporcionando ao país e aos portugueses um dos melhores (o melhor?) espectáculos políticos da história desta democracia. Com felicidade e brilho e com Maria de Jesus Barroso sempre ao seu lado – junto de si desde há anos infindos, companheira e insubstituível presença feminina e política – abriu o Palácio de Belém a uma outra história, outra época, outros usos. É certo que, para atingir a meta presidencial, não hesitara em apelidar de “fascista” (para dizer o mínimo) o seu adversário, Diogo Freitas do Amaral, um ex-muito-conveniente-parceiro-de-coligação governamental nos idos de 1977, aquando do governo PS/CDS. No dia seguinte às eleições, Mário Soares mandou flores à esposa do seu rival e pronto: o que fora, lá ia.
A vida continuava.
Ficou dois mandatos, eleito no primeiro à tangente e cinco anos depois reeleito com folga e pouca graça: Basílio Horta não tinha estatuto de challenger, faltou tensão e interesse. Foram mandatos desiguais, restam boas e más memórias mas não será este correr da pena – a que me entrego com o coração – o melhor momento para mais fundamentados e sérios balanços.
Presidente-Rei
O certo é que o país gostava daquele Presidente-Rei e que Soares podia ser irresistível de bonomia e simpatia. Sucede que também sabia — por achar que devia – ser duro e cortante com uns e com outros, pares e adversários. Como ocorreu um dia quando, a pretexto de uma cerimónia oficial nos Açores, se meteu num avião e foi à região acabar com a “guerra das bandeiras”, explicando a Mota Amaral, à época presidente do Governo Regional, que a fantasia pouco patriótica da bandeira local estar hasteada mais alto que a nacional era algo que a ele (Presidente da República) caía mal. A veleidade apagou-se ali mesmo.
Ou quando, em 1987, contra o desejo dos “seus”, convocou eleições em vez de acreditar na bondade política da solução governativa que lhe vendia Vítor Constâncio, então secretário-geral do PS, que, de braço dado com o PRD, se propunha substituir o governo do PSD, de Aníbal Cavaco Silva, derrubado nesse ano no hemiciclo de São Bento. O gesto presidencial viria a provocar a entrada em cena, meses depois, de um Cavaco Silva ampliado em força e votos, um Cavaco em ponto grande, mas o que quero significar aqui hoje são duas coisas, não despiciendas. Primeiro, Soares não tinha, nunca teve medo. De cortar, de inverter, de escolher, de decidir, de gostar, de preferir. Segundo, nunca lhe bastaram simpatias e bonomias, facilidades e abraços populares. Nem ele se consentiria que os seus cargos, fossem quais fossem, se esgotassem nisso, nem a política que entendia fazer se compadecia com receita tão magra. Ser “popular” ou “amado” não era o seu objectivo exclusivo.
Quem não se lembra de escolhas, riscos, prioridades, decisões? Algumas fortes, duras, difíceis – contra o ar do tempo, contra o seu partido, contra o “socialismo”, contra o que estava. E bem mais pesadas de consequências do que a futilidade oca do “ir” ou do “ser visto”. Por isso, qualquer comparação com o actual locatário de Belém, como costumo ouvir, a propósito da sua “informalidade” e “proximidade” que seriam “parecidas” com as de Soares, me parecem pura simplesmente um quase insulto à memória de Mário Soares.
Mas ainda a propósito de “prioridades” – e do sentido agudo e arguto com que, conforme as circunstâncias, ele as ia organizando politicamente – recordo-me de uma manhã estar a entrevistá-lo na sua casa lisboeta a pretexto de recentes medidas do seu governo (Bloco Central) que desagradavam aos patrões e ao mundo da finança. Reagiu agastado, discordando. Insisti na pergunta com base em informações recolhidas on the record na própria Confederação da Indústria Portuguesa. Um segundo depois, Soares, que me dissera meia hora antes “ter pressa”, esqueceu-se dela, despachou-me porta fora e ligou (directamente) a Pedro Ferraz da Costa, então líder da CIP. Demorei tempo a agarrar o casaco, vesti-lo, sair dali, mas sempre fui ouvindo o que entretanto adivinhara: apercebendo-se do inconveniente político que seria governar com a hostilidade manifesta das confederações patronais, Soares apressara-se a tranquilizar Ferraz da Costa sobre as suas verdadeiras intenções. Não ouvi mais (só se me escondesse atrás das cortinas, mas a Olinda certamente chocar-se-ia), apanhei porém o essencial. Mas até hoje nunca troquei uma só palavra com o então presidente da CIP sobre tal telefonema.
Sempre igual a si mesmo
O dr. Soares não era pretensioso. Era teimoso, podia ser caprichoso, mas só se levava assim-assim a sério. Não tinha grandes pretensões, nem se reivindicava de grandes intelectualidades. Gostava da nossa História e de alguns dos nossos reis, apreciava algumas artes, coleccionava pintura, tinha imensos devotos no universo cultural. E gostava de livros, e sobretudo de ter livros, mesmo que os não lesse a todos. Pude observá-lo, em dezenas e dezenas de livrarias, em Portugal e no estrangeiro, a aspirar o cheiro dos volumes acabados de chegar a escaparates e estantes, devorando-os com os olhos, folheando-os com gula. E comprando-os: às grosas, às centenas.
Era também um bocadinho (ou um bocado?) vaidoso, claro, como todos os grandes chefes, mas por aí ficava. E graças a Deus não era nem pomposo, nem grave, nem solene, às vezes até o era de menos, impacientava-se com a necessidade de alguns rituais inerentes às suas funções, desprezava excessivamente o protocolo e eu, institucional até à medula, afligia-me: ”Dr. Soares não quis seguir o ritual do protocolo ao lado da Rainha esta tarde na cerimónia?” perguntei-lhe uma vez, no Castelo de Windsor, na Grã-Bretanha, no final da evocação comemorativa dos 600 anos do Tratado de Windsor, que eu acompanhava profissionalmente. “Eu? Mas porque havia de me ajoelhar, se nunca o fiz? Por ela ser a Rainha de Inglaterra?” Engoli em seco.
Era Soares no seu melhor, isto é, igual a si mesmo. Nunca será de mais sublinhá-lo, e hoje ainda menos: Mário Soares, no poder ou fora dele, de fato de banho ou dentro de um coche enfeitado, num palácio, numa tasca ou em cima de um elefante, ao lado de Mitterrand ou engraxando os sapatos, era o mesmo. Foi sempre o mesmo. Chapeau.
Por falar em Mitterrand, son ami, uma vez em Paris, encontrando-me a ler um jornal na esplanada envidraçada de um café da Rive Gauche, vejo subitamente Mário Soares, passada lenta e ar feliz, a passear na rua, com dois infelizes atrás dele, a tomarem conta da ocorrência. Sabia que ele estava em França (eu ia entrevistar Françoise Giroud) mas nunca me passaria pela cabeça que andasse à solta e sozinho a flanar pelo “seu” Paris. Dei um salto até ao passeio mas já o criado vinha alvoraçado atrás de mim: “Vous êtes le President Soares, n’est ce pas?” Soares entrou, não quis café, quis conversa. “Mas o que é que eu estava ali a fazer?” (subentendido: sim, que fazia eu ali se não estava a acompanhar a viagem dele a França?) Sentou-se, deu dois dedos de conversa e logo saiu com os infelizes atrás, mas quem não tinha pressa de “aviar” o seu espanto eram os empregados do Deux Magots: “Un President qui se ballade comme ça, tout seul…”. Era isso: não faziam ideia de quem era um homem chamado Mário Soares, só conheciam o Presidente e não sabiam que era o mesmo.
A vida era para ser bem vivida
Se acabo de perder algumas referências do que para mim conta politicamente e que Mário Soares praticava – o gosto pelo oficio, a fibra na luta, a energia do combate, o fôlego — o que eu perdi definitivamente foi a presença de alguém que em Portugal fazia política com gosto e gozo. Sem sombra de queixume (coisa pouco nacional), dispensando evocações grandiloquentes de “serviço”, não lhe ocorrendo alusões a “sacrifícios”, nem à “pátria”. Estava bem com a vida, tinha-a na pele mas sobretudo ( e este “sobretudo “ muito aclara a sua personalidade) amava-a com paixão e coleccionava os seus prazeres. Numa quase vertigem onde a política tinha obviamente lugar cativo no centro do palco onde se desenrolaram as várias estações da sua vária e vasta vida. E se nunca Mário Soares desligou a política do imenso, inesgotável gosto de a praticar, também nunca separou a vida do quase telúrico prazer de a viver, numa espécie de vasos comunicantes, de incessante circulação entre vida e política, política e vida.
Minutos antes de um comício crucial (quando os comícios podiam ser cruciais) ou em vésperas de legislativas igualmente cruciais, era capaz de subverter o ritmo do dia “eleitoral” quando de repente lhe acontecia disparar para um restaurante que “ele lá sabia”, onde se comia um bacalhau ou umas favas, já não sei, porque a vida era para ser bem vivida. E a política, nesse dia, podia ser tão importante quanto um também imperdível bacalhau com todos.
Lembro-me como se fosse hoje da nossa volta a Portugal aquando da infausta campanha da não menos infausta FRS (Frente Republicana e Socialista), aliança política inventada semi à pressa pelo PS de Soares, nos finais da década de setenta e concretizada com o severo António Lopes Cardoso (UEDS) e o circunspecto António Sousa Franco (ASDI), com o intuito, aliás gorado, de “dar cabo” (eleitoralmente, bem entendido) da nefasta Aliança Democrática. Era a AD de Sá Carneiro, que então governava e que corria o risco de voltar a ganhar as legislativas desse ano de 1980, (como ganharia). Soares sentava-se no seu carro, ao lado da sua filha Isabel, exímia condutora, conversadora inteligente (quem sai aos seus…) e até hoje amiga do peito. No banco de trás, Sousa Franco e eu. Foram quilómetros e quilómetros disto.
Portugal não é grande mas dantes ia-se ainda mais a todos os sítios e lugarejos e, não raro, Soares entrava de roldão por uma pastelaria na busca gulosa das “especialidades” do Portugal profundo que ele se lembrava existirem aqui ou ali. No carro, refastelava-se com elas perante o fastio hesitante de Sousa Franco, pouco propenso a tais exuberâncias de apetite e mal à l’aise face ao repetido espectáculo daquela vitalidade em estado quimicamente puro: “Oh Sousa Franco, você não come, homem…? Olhe eu já comi dois bolos destes e vou comer outro…” E depois, sem transição, dormitava, indiferente às curvas dos caminhos (não havia autoestradas e muito menos se vislumbrava ainda o cavaquismo), e quando acordava verberava ferozmente a oposição (de que eu era, invariavelmente, sem emenda nem remédio, a “representante”, quando não mesmo a “reacionária” representante).
Ou então o carro enchia-se das suas histórias, ninguém as contava como ele, recordações de outras campanhas, pedaços de vida, anedotas, “retratos” de pessoas, adversários, amigos, inimigos. No acanhado perímetro daquela viatura cabia tudo e sobretudo cabia inteiro o contraste entre o entendimento de um – Soares – do que se poderia fazer da vida e com a vida; e do outro – Sousa Franco – que dela tinha uma noção, digamos, mais serenamente compartimentada e menos deslizante. Quando chegávamos às localidades – praças, recintos, ginásios, mercados, jardins, hotéis – Soares aspirava de imediato o ar do tempo. Apercebia-se de sentimentos, aspirações e aflições, intuía o que devia dizer e o que deveria fazer e agia em conformidade. Sem réstia de esforço. Caso fosse o contrário ou quase o contrário do que dissera dez minutos antes, ou que de algum modo contradissesse o que decidira publicamente na véspera, paciência: as coisas eram o que eram, ele estava a fazer política e tratava-se de ganhar as eleições. Sem sombra de pecado. E se naquele dia, já noite entrada, ainda fosse preciso conspirar um bocadinho, conspirava. (Sempre o fizera, aliás, e onde lhe desse jeito: em escritórios da Rua do Ouro, no tempo da outra senhora; à mesa do Avis, ou em zimbórios e embaixadas com os Carluccis deste mundo — e dou só estes exemplos, haveria obviamente mil outros).
“Você não percebeu nada!”
Nos anos noventa fui à América Latina fazer umas reportagens para um livro encomendado pela Fundação Gulbenkian. Uma das paragens foi no Uruguai, onde em Montevideu (coincidência das coincidências para uma jornalista política) se encontravam nessa mesma altura o então primeiro-ministro Cavaco Silva e o então Chefe de Estado Mário Soares, a pretexto de mais uma cimeira ibero-americana. Por amável convite da embaixada de Portugal, pude almoçar com Soares (Cavaco ainda não aterrara na capital do Uruguai), o qual, vendo-me ali, ainda mais simpaticamente me convidou nessa noite para jantar. O restaurante logo “inventou” uma mesa que não havia, os comensais entreolharam-se, os músicos tocaram mais alto, o empregado de mesa desenrolou elogios rasgados.
Quase fiquei contagiada: “Ah, dr. Soares, toda a gente neste mundo o conhece… até este empregado a elogiar assim o Presidente da República de um país tão distante…”. Soares irritou-se e não foi pouco: “Você não percebeu nada! O que o homem me estava a louvar era o meu combate contra a ditadura, o meu apego à liberdade. A Presidência não interessa nada, o homem falou foi da minha luta pela liberdade, foi o que ele reteve de mim e reteve bem”.
Chapeau. Outra vez.
Sim, vi Mário Soares viver. E vi-o combater. Vi-o viver dezenas, centenas de vezes, festejando a vida no Campo Grande, em Nafarros, no Alvor; na minha casa e em casa de amigos comuns; festejando-a ao mesmo tempo que lutava na rua, no exílio, em “manifs”, nas sedes do PS; no Parlamento, no seu gabinete de S. Bento; nos gabinetes e salões de Belém e nos seus banquetes e jardins; e, depois, na Fundação Mário Soares. Vi-o celebrar o facto de estar vivo. Aqui, lá fora, na Europa e fora dela. Num museu de Washington que estava fechado e “se” mandou abrir para ele e onde de caminho me levou consigo. Em Moscovo, no Azerbaijão e na Arménia, na mais inesquecível, mais impressiva, mais alucinante, mais (porque não confessá-lo? ) divertida das viagens de Estado em que o acompanhei. (Semanas depois, na sede do PCP em Lisboa, Cunhal, no decurso de um dos encontros que de vez em quando mantínhamos, haveria de não se esquecer de me franzir o seu espesso sobrolho pelos ecos que tivera de diversos comportamentos menos ortodoxos, entre eles o meu.)
África nunca lhe interessou
Voltando a Soares, foi uma vida com maiúscula e alta intensidade. A política era o centro, a família foi a rectaguarda, a melhor rectaguarda (e não se pode pura e simplesmente evocar Soares sem logo a seguir atribuir a maior das importâncias e o maior relevo ao papel de Maria de Jesus na sua vida, toda a sua vida, familiar, doméstica, social, cultural e obviamente política).
Sim, Mário Soares fartou-se de lutar e suar, não adorava contas nem sabia grande coisa de números (embora haja quem me afiance o contrário) nem foi o melhor governante. Foi um óptimo Presidente para o país, pese embora a desfaçatez com que não hesitou várias vezes e de vários modos, exorbitando das suas funções, em assassinar politicamente o seu primeiro-ministro, Cavaco Silva, que lhe preferia o Pulo do Lobo. A razão era só uma: Soares não conferia direito de cidade a um provinciano que em Lisboa ninguém sabia quem era, sem galões nem currículo (mesmo que doutorado por uma universidade britânica) que bisava maiorias absolutas e valia muito mais que o seu partido. Que burguês esclarecido olharia para aquilo?
Sim, Soares nunca percebeu quase nada da África que falava português e não percebeu porque o seu desinteresse era maior, digamos, que o seu zelo. África nunca lhe interessou, tudo dela ignorava. Era longe e um empecilho. Um dia, quando diante do gravador ele me recordava a ordem de despejo que Salazar lhe dera ao exilá-lo para S. Tomé e Príncipe, no final dos anos sessenta, perguntei-lhe de chofre: “E o dr. Soares não soube encontrar S. Tomé no mapa, pois não?” O meu interlocutor não hesitou: “Não fazia a menor ideia, tive de ir ver onde era”.
Anos mais tarde, enquanto as ex-colónias ardiam em guerras fratricidas e centenas de milhares de desamparados portugueses as largavam em debandada, a prioridade de Soares era o PREC, a luta pela liberdade sindical de Salgado Zenha, a democratização, os seus governos, ele próprio, a sua carreira política. A propósito disso, perguntei-lhe (no livro) se entre Portugal e o drama lancinante de Angola que ocorria em simultâneo, ele escolhera unicamente Portugal. A pergunta espantou-o: “Claro!”
Apesar disto, julgo que as grandes “culpas” pela descolonização lhe cabem apenas em pequena parte. Os seus pecados foram de omissão muito mais que intervenção e eu tenho isto muito claro na minha cabeça. O que obviamente não exclui penas nem apaga responsabilidades, mas isso é outra história, para outro dia.
Amizade. Palavra pesada
Mas nem África – que é tudo menos irrelevante – nem o facto de ter votado pouquíssimas vezes em Mário Soares, interferiu nunca na minha relação com ele. Nem – ainda menos – impediu aquilo que estruturadamente se ia cimentando ao longo de décadas e que julgo poder apelidar de amizade. Palavra pesada. Será, mas não me ocorre outra que descreva melhor este novelo de sentimentos onde desde há muitos anos sempre se misturaram a gratidão pelo protagonista da liberdade, a muito clara consciência das duas ou três coisas políticas que lhe fiquei a dever; a consideração pelo “general em chefe” dessas mesmas coisas; o gosto pelo Presidente que ele foi, cá dentro e lá fora. E, claro, essa espécie de terna cumplicidade sentimental, civilizacional, cultural e até política que a vida me foi mostrando que existia. Não sei – não sei mesmo — se a cumplicidade era recíproca nem isso tem de resto grande importância. Não mudaria uma só linha do que acabo de escrever. Ou das que possa vir ainda a escrever.
Mário Soares teve sorte. Quis muito, alcançou muito. A vida, bem vistas as coisas, tratou-o bem. E ele a ela. Tinha amigos, tinha companheiros, tinha fieis, tinha devotos. Era genuinamente popular, no mais nobre sentido do termo. E tinha felizmente adversários e inimigos (quem não os tem, também não tem amigos).
Jamais ninguém nos contará histórias e aventuras como ele contava. Sagas extraordinárias a seu propósito ou de outros, sendo porém sempre o primeiro a troçar de si mesmo; podia ser mordazmente exímio a fazer digressões pelo mundo da política nacional e dos seus bastidores; imitava com verve e graça pares nacionais e internacionais, tinha ódios de estimação; descrevia com gozo visitas insólitas a Chefes de Estado estrangeiros e pelava-se por anedotas picantes. Ria bem e conspirava bem. Gostava de mexer nos seus livros, de banhos de mar, beber vinho tinto, comer, ver pintura, discutir pintura. E de viajar. Incansável, a sua curiosidade era ainda mais incansável. Sim, quis muito, alcançou muito. Vivendo e fruindo a vida mas politicamente combatendo sempre. Liderando, governando, actuando, intervindo, escolhendo, decidindo. Presidindo. Vida que era política, política que não se distinguia da vida. A celebração de uma, implicava a celebração da outra. Nunca foram desligáveis. Eis o que talvez possa explicá-lo.
Aquela noite em que (não) se despediu
No dia 7 de Dezembro de 2004 fez oitenta anos. O que me levou a ser parte – com enérgico gosto e forte empenho – de um dos mais extraordinariamente concorridos jantares a que assisti na minha vida. O ambiente era alegre, o tom festivo, a plateia multipartidária, multicultural, multigeracional. Havia brilho e glamour no ar, coisa pouquíssimo portuguesa. No final, Soares despediu-se. “Vou-me embora. Não voltarei à política”. Não duvidei (se Vítor Cunha Rego estivesse vivo ter-me-ia proibido de acreditar naquilo). Fizemos aliás os dois mal: eu, por ter acreditado; o dr. Soares, por não ter cumprido. Mais uma vez, não teve importância. Os seus combates – os que mudaram irreversivelmente o rumo das coisas – já estavam inscritos na História.