Podia ter saído pela porta grande, no final de um Governo em que foi protagonista, com a gestão de uma pandemia no currículo e a popularidade no PS e no país em altas. Mas acaba por sair pela porta pequena, com notícias diárias sobre problemas graves no SNS e nas urgências a acumularem-se, críticas vindas de todo o setor e as sondagens a mostrarem que o verão quente abalou a sua taxa de aprovação junto dos portugueses.
Foram muitas as ocasiões em que, durante quatro anos difíceis, a hipotética saída de Marta Temido do Governo foi assunto no setor e nos bastidores — mas, mesmo durante todos os obstáculos da pandemia, os rumores provaram-se uma e outra vez errados. A ministra da Saúde que era descrita por quem a conhece pela “resiliência”, por ser “rija” e “muito ambiciosa”, que prometia numa entrevista de 2019 “jamais” se sentir “fragilizada por aquilo que outros interesses, sejam eles quais forem, dizem, escrevem ou pensam” — “não me faz mossa” — marcou pontos durante a pandemia, mas acabou por não resistir a um verão de caos nas urgências e a notícia final da morte de uma grávida, cujos contornos definitivos ainda serão investigados.
O dia em que se soube desta morte acabaria, já de madrugada, com a notícia da demissão de Marta Temido e, minutos depois, com a confirmação de que António Costa a aceitou. O mesmo primeiro-ministro que em junho, no início dos sinais de caos nas urgências de obstetrícia e ginecologia, assumia a responsabilidade por tudo o que acontece no Governo, e que durante a pandemia várias vezes se guiou pelas opiniões de Temido.
Já de manhã, Marcelo Rebelo de Sousa, que durante o verão começara por ajudar enfaticamente a segurar a ministra — recusando que os problemas do SNS fossem causados por um ministro ou governo em particular — confirmava que tinha sido informado da demissão. Era o fim da era Temido — mesmo que ainda precise de ficar no Governo, para concluir assuntos pendentes enquanto se prepara a transição para o sucessor.
Marcelo aponta problema “antigo” e “estrutural” na saúde, que “não é sequer de um governo”
Carapaça dura, polémicas constantes
Quem trabalhou com Marta Temido, seja nos seus gabinetes ou enquanto colega de Governo, descreve a ministra demissionária como alguém que, por trás de uma imagem pública por vezes frágil (chegou a chorar enquanto discursava num evento público, lembrando as dificuldades vividas por causa da pandemia), escondia uma carapaça dura e resistência às críticas, mesmo com a propensão para gafes que provou, por várias vezes, ter. O que pode ajudar a explicar como se manteve durante quatro anos numa pasta que há muito queimava.
As polémicas que marcaram o seu mandato foram-se acumulando. Primeiro, quando logo em dezembro de 2018, estando há apenas dois meses no cargo, anunciou no Parlamento que a parceria público-privada do Hospital de Braga ia terminar por indisponibilidade do grupo José de Mello em prosseguir na concessão — ideia que o próprio grupo se apressou a desmentir. Depois foram as críticas e tensões com antecessores na pasta, por um lado, e parceiros à esquerda, por outro, por causa da atribulada negociação da Lei de Bases da Saúde.
Os altos e baixos (e as polémicas) que marcaram os 1.414 dias de governo de Marta Temido
Ainda em 2018, provocava um choque frontal com os enfermeiros em greve dizendo que negociar com os grevistas seria beneficiar “o criminoso”, o infrator — pediria desculpa depois. À esquerda, registava-se alguma desilusão com a nova titular da pasta, a ministra que se dizia “esquerdista” e que os próprios parceiros tinham visto como uma escolha do executivo para dar um sinal positivo à geringonça: “Houve uma intenção tática em mudar de ministro numa pasta frágil no Governo, quando se sentiu que estavam a perder a esquerda. Mas, no que toca a conteúdo, não mudou grande coisa. O esquerdismo notou-se mais em entrevistas do que noutra coisa”, comentava com o Observador um dos dirigentes à esquerda do PS que teve de negociar com Temido.
Outra fonte partidária da esquerda, que sempre reivindicou mudanças estruturais no SNS e particularmente nas carreiras dos profissionais de Saúde, notava o mesmo: “Notava-se que tinha conhecimento dos assuntos e era bem preparada, ideologicamente muito diferente do antecessor. Mas, do ponto de vista prático… o primeiro-ministro continua a mandar e a bitola que ambos estabeleceram foi não aumentar a estrutura do SNS. A estratégia de Costa foi concretizada de forma tão eficaz por Adalberto Campos Fernandes como por Marta Temido”.
O alinhamento com António Costa nas ideias para a Saúde, ou pelo menos a eficácia a executar a sua estratégia, era evidente; a dificuldade em sintonizar-se com os parceiros, em pastas que tiveram um papel central no fim da geringonça, também. Mas estas eram apenas as primeiras dificuldades, quando a pandemia ainda nem tinha começado.
A popularidade da pandemia. “Ganhou as lutas todas”
Curiosamente, foi também na fase difícil da pandemia, em que a pressão era acrescida e os holofotes estavam colocados na ministra da Saúde, que Marta Temido somou pontos — dentro e fora do Governo. Durante essa fase, e nos Conselhos de Ministro mais tensos em que se decidiam as medidas restritivas, vários ministros mostravam dúvidas sobre decisões como o encerramento das escolas; e somavam-se a essas as dúvidas do próprio primeiro-ministro, com reticências em relação ao que o país tinha a perder em ficar fechado.
No entanto, depois dos Conselhos de Ministros, António Costa acabava mesmo por sair da sala e anunciar diante das câmaras de televisão novos pacotes de medidas. “Com o tempo, a Marta ganhou as lutas todas, todas. Foi mesmo ela quem nos conduziu nessas decisões”, notava um antigo ministro. E, entre os confinamentos, as conferências de imprensa diárias, as reuniões do Infarmed e a pressão que ia reaparecendo, depois dos tempos iniciais de tréguas, da oposição, Temido resistia.
Mais do que isso: tornava-se, segundo as sondagens, a ministra mais popular do Governo. Com o trabalho que muitos colaboradores descrevem como “incansável” feito durante a fase mais aguda da pandemia, acumulando noites sem dormir e dias quase sem comer no ministério do Trabalho, Temido somava pontos e argumentos para se tornar um ativo político valorizado pelo PS.
Marta Temido: o trunfo eleitoral que os autarcas do PS não dispensam
Foi assim que acabou por ser usada como trunfo na campanha eleitoral, em que andou junto de dirigentes socialistas a mostrar a fidelidade e “lealdade” que lhe são reconhecidas por quem a conhece melhor, a Costa e ao partido. Tinha sido, de resto, o próprio Costa a entregar-lhe em mãos o cartão de militante do PS, com pompa e circunstância, há um ano, no congresso do PS — o congresso em que o próprio primeiro-ministro sugeriu que Temido poderia ser um nome a ter em conta para a futura sucessão no PS, apenas para depois fechar a mesma porta com estrondo, dizendo estar apenas a ser “irónico”.
Um dirigente do partido dizia então ao Observador que as ambições da ministra poderiam ter de ser travadas: muita simpatia por Temido, sim, mas quando às hipóteses, não rejeitadas pela própria, de vir a suceder a Costa… “também não exageremos”.
“O problema da Marta é que não é médica”
Com mais ou menos ironia, no país, Temido seguia popular, e assim continuou para mais um mandato como ministra da Saúde. Já levava, ainda assim, mais umas polémicas às costas — incluindo o episódio em que, durante a pandemia, sugeriu que os médicos deveriam ser mais “resilientes” e que esse seria um critério importante a ter em conta nas suas contratações. Mais uma polémica pela qual teria de pedir desculpa a seguir, e que o setor não lhe perdoaria.
“O problema da Marta é que não é médica. Ninguém teria sido melhor do que ela no combate à pandemia. Porquê? Porque disse aos médicos o que eles nunca tinham ouvido e que nenhum colega lhes diria”, dizia então ao Observador um antigo colega de Governo, fazendo eco de uma tese que muito do PS apoia: o problema que justificaria os falhanços de Marta Temido seria a falta de apoio no setor e o poder das ordens, assim como o corporativismo dos médicos.
Isto porque Temido, associada, há anos, ao antigo ministro da Saúde António Correia de Campos, mas também a um grupo de “sampaístas” que o rodeia, é gestora, e não médica. Antes de chegar ao Executivo para substituir Adalberto Campos Fernandes, o currículo da ministra – licenciada em Direito, mestre em Gestão e Economia da Saúde, Doutorada em Saúde Internacional com uma tese sobre gestão de recursos humanos na Saúde – mostrava uma jurista que, com o passar dos anos, se aproximou da área da Saúde, como administradora hospitalar ou membro do conselho de Administração de oito hospitais.
Para algumas fontes, se estas várias passagens profissionais são prova do seu “conhecimento e experiência” na área, para outras, as rápidas transferências e o pouco tempo que passou em cada cargo apontam mais para um “currículo insuflado”, com mais “linhas” do que conteúdo.
Certo é que, em 2016, depois de uma passagem pelo Instituto de Higiene e Medicina Tropical, como subdiretora, foi nomeada pelo Governo para presidir ao conselho diretivo da Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS). Apesar disso, não manteve uma boa relação com o então titular da pasta da Saúde, Adalberto Campos Fernandes, e chegou a enfurecer o Executivo quando admitiu a necessidade de o Governo avançar com um “orçamento retificativo” para a Saúde.
Adalberto não seria o único médico com quem acabaria por se dar mal, acusada de não perceber o setor e não ter capacidade para resolver os problemas estruturais do SNS — e, passada a fase aguda da pandemia, com as falhas diárias do SNS, esse fator foi-se tornando cada vez mais relevante.
Os meses horribilis de Temido
Nos últimos meses, já com casos que iam muito além da pandemia em mãos, a pressão do setor, mas não só, foi-se sentindo com cada vez mais força. Assim que começaram os casos de caos nas urgências de obstetrícia e morreu um bebé nas Caldas da Rainha, em junho, a ministra teve de voltar de férias e apresentar um plano de contingência para resolver a situação.
De pouco serviu: os problemas continuaram e as críticas foram redobradas, com médicos, mas também antigos antecessores no cargo como Maria de Belém e Adalberto Campos Fernandes, a garantir que as medidas extra não chegariam.
E os ataques pareceram, no decorrer deste verão, fundamentados: semana após semana, sucederam-se as notícias de mais urgências encerradas, serviços com falta de médicos e enfermeiros, grávidas a serem obrigadas a dar à luz a muitos quilómetros de casa.
Ministra da Saúde atribui constrangimentos atuais a escolha feita “nos anos 80”
Perante a enchente de críticas e de pressão, Temido ainda viria tentar defender-se, na semana passada, garantindo que o número insuficiente de médicos nalgumas especialidades “não é o resultado de uma escolha de hoje, ontem ou do ano passado. É o resultado de uma escolha que foi feita há várias décadas, nos anos 80″.
Nessa altura, para boa parte do setor e até do partido, a resposta já soava a pouco. A saída agora anunciada confirma-o: a “resiliente” Temido, que ainda há meses aceitava continuar no governo aproveitando o pico de popularidade que tinha conquistado, deixou de ter condições para liderar a Saúde.
Os altos e baixos (e as polémicas) que marcaram os 1.414 dias de governo de Marta Temido
Este texto contém excertos do perfil de Marta Temido publicado a 23 de junho.