Não se sabe quando os satélites da Maxar Technologies começaram a captar imagens da Ucrânia, mas é certo que em outubro de 2021 já o faziam. Na altura, as imagens que chegavam não mostravam tanques ou armamento bélico, nem cadáveres no chão, como sugere uma publicação da conta do Twitter desta empresa. Mas, em meados de fevereiro deste ano, tudo mudou com as imagens de satélite que mostravam as tropas russas a posicionarem-se em locais estratégicos para entrarem na Ucrânia. A invasão começou no dia 24 e, à medida que tem avançado, as imagens da Maxar têm desvendando a escalada do conflito no terreno: desde a longa coluna militar russa que se aproximava de Kiev, à destruição de Mariupol, ao teatro que tinha a palavra “crianças” escrita no chão para demover os ataques e, agora, Bucha, onde terão sido mortos cerca de 300 civis.
This satellite image, collected on October 11, 2021, of crop art near the village of Bezuhlivka, #Ukraine, depicts the coat of arms of Ukraine. Officially referred to as the Emblem of the Royal State of Volodymyr the Great, or colloquially, the tryzub, and reads “I ♥️ UA”. pic.twitter.com/KETR6MsV9i
— Maxar Technologies (@Maxar) March 29, 2022
As imagens de Bucha foram recolhidas, segundo a empresa, por um satélite comercial de alta resolução nos dias 18, 19 e 31 de março e cedidas gratuitamente a vários meios de comunicação social. A Maxar fá-lo desde 2017, tendo mesmo criado uma organização chamada Maxar News Bureau que fez centenas de protocolos com meios de comunicação precisamente para lhes fornecer imagens. Segundo informações da própria empresa, as imagens do caos no aeroporto de Cabul durante a retirada dos EUA no Afeganistão foram partilhadas em mais de 700 publicações. Agora as imagens captadas na Ucrânia terão sido divulgadas por muitos mais. Jornalistas também usaram imagens da Maxar para ilustrar investigações sobre, por exemplo, a expulsão e o assassinato de muçulmanos rohingya em Mianmar, um ataque químico do governo Assad na Síria e homicídios perpetrados por soldados camaroneses, como constatou a revista norte americana The New Republic. A empresa também fornece gratuitamente imagens para grupos ambientais.
Daniel Jablonsky, presidente e CEO da Maxar, citado pela Space News, diz que empresa está empenhada em “trabalhar para aumentar a transparência global”. E que esta parceria com os media mais “respeitados e confiáveis” visa também combater a “disseminação de desinformação”. “Estamos orgulhosos das nossas contribuições para o discurso público nesta situação e esperançosos numa resolução pacífica”, afirmou, explicando que agora a prioridade na captação de imagens é mesmo a Ucrânia.
A empresa está longe, porém, de ter uma posição neutra, como constata a The New Republic. Por um lado interessa-lhe divulgar o produto que é o seu negócio e que pode ser usado para os mais diversos fins, seja em conflitos, em questões urbanísticas ou mesmo na agricultura, por outro um dos seus principais clientes mais não é do que o próprio governo norte-americano. A Maxar assume que 90% da Inteligência Geoespacial usada pelo governo norte-americano para a segurança nacional e a garantir a segurança das tropas em campo é por si fornecida. E que tem entre os seus clientes serviços de pelo menos 50 países.
Empresa multimilionária com sede no Colorado tem 90 satélites à volta do globo
A Maxar Technologies é uma empresa privada multimilionária e cotada em bolsa (valorizada com a publicação das imagens da Ucrânia) com sede em Westminster, no Colorado, EUA. Fundada em 2017, é na verdade o chapéu agregador de quatro empresas diferentes e mais antigas e que são as suas filiais. A SSL, especializada em construção de satélites, a Vricon, dedicada à análise geoespacial em 3D, a Radiant Solutions, para a modelagem de dados captados por satélite, e a Digital Globes, que produz em alta resolução as imagens de satélite. Esta última, a Digital Globes, foi, aliás, das primeiras empresas a desenvolver satélites comerciais de alta resolução com o Ikonos ou Quickbird, que alimentaram as primeiras imagens do Google Earth ou do do Google Maps.
Segundo dados da própria empresa, que emprega 4400 funcionários, serão cerca de 90 os satélites comerciais que a Maxar tem à volta globo, sem especificar exatamente onde, podendo captar 3,8 milhões de quilómetros quadrados de imagens do território por dia, como constatou uma analista ao jornal francês Liberation, quando antes não se conseguia imagens de uma parte do território antes de 15 ou 20 dias.
Esta revolução tecnológica permite, segundo o general Garcia Leandro em declarações ao Observador, “uma visão a partir do espaço do que se está a passar na terra”. Imagens destas permitem às tropas delinear estratégias, como o fizeram assim que perceberam que uma coluna militar russa se aproximava de Kiev, tal como permitem operar material bélico, como os mísseis, à distância. “É possível usar armas mais modernas e fazer o que aconteceu no Médio Oriente e na Jugoslávia: fazer ataques não estando sequer no local”.
Empresas privadas a tratar de segurança interna e externa pode ser “escorregadio”
A relevância destes privados, porém, é um pormenor que para os analistas pode ser ambíguo. O general Garcia Leandro considera mesmo “perigoso”.
“As empresas privadas são muito perigosas. A maior revolução talvez tenha acontecido na segunda metade do século XX, em que aquilo que era propriedade do Estado, a segurança interna e externa, passa a estar nas mãos de empresas privadas, que podem estar a fazer um serviço para um qualquer Estado”, lembra, sublinhando que governos como o russo podem até contratar estas empresas para fazerem serviços que um Estado não poderia fazer. “Uma empresa privada envolvida numa guerra entre estados é algo perigoso”, diz. “Tudo isto é muito escorregadio”.
As primeiras imagens de satélite, captadas entre 12 e 23 de fevereiro, que mostravam tropas russas estacionadas na Bielorússia, no leste da Ucrânia e no Donbass, nos pontos que acabaram por ser aqueles onde começou a operação, foram à data analisadas na CNN por um general já na reserva. Mark Hertling dizia que de facto as imagens mostravam uma possível posição de ataque, mas que essa conclusão não podia ser retirada apenas pela análise da imagem, tendo esta de ser cruzada com outras informações militares.
Governo dos EUA sempre apoiou empresas da indústria dos satélites
Jack O’Connor, diretor do programa de Mestrado em Inteligência Geoespacial da Universidade Johns Hopkins, sublinhou ao The New Republic que o governo norte americano sempre apoiou esta indústria, comparticipando mesmo nos custos do desenvolvimento de novos satélites de imagens comerciais. “Cortaram no orçamento de defesa, mas queriam manter as capacidades do setor. Eles não queriam que a indústria morresse”, disse O’Connor. Nas décadas seguintes, o governo dos EUA contratou consistentemente empresas comerciais para complementar as suas próprias imagens de satélite. A principal é a Maxar.
Os recursos da Maxar, que incluem satélites, terminais de acesso móvel, tecnologia de registo 3D de precisão e recursos de inteligência artificial, foram desenvolvidos de acordo com as necessidades do governo dos EUA, que lhe pagava 300 milhões de dólares por ano pelo acesso aos satélites e ao arquivo de imagens. Laura Kurgan, diretora do Centro de Pesquisa Espacial da Universidade de Columbia, lembra mesmo que “estes satélites não andam pelo mundo a tirar fotos e a colocá-las num arquivo”. Os satélites da Maxar tiram fotos quando e onde são incumbidos pelos clientes. “Uma vez determinado, essas imagens são arquivadas e qualquer pessoa pode comprá-las”, disse Kurgan. Entre esta imagens estão as fornecidas gratuitamente aos meios de comunicação social, embora estes nunca cheguem a saber se aquelas imagens foram encomendadas por algum cliente (incluindo Estados).
O governo dos EUA conta também com outras empresas concorrentes da Maxar no que toca à Ucrânia, como a Capella Space, que fornece dados para os Estados Unidos e a Ucrânia e consegue anunciar com antecedência certas operações militares russas, ou a Planet, que dispõem de mais de 200 satélites em órbita e que produz notavelmente comparações antes/depois dos ataques, constata o Libération.
Kremlin insiste na tese. Bucha foi “uma situação bem encenada”
Esta tarde de quinta-feira, numa entrevista à Sky News, o porta voz do Kremlin disse que conhecia muito bem a empresa que está por detrás destas imagens, rejeitando mais uma vez a sua veracidade e insistindo na tese de que os ucranianos é que estão a usar os civis para contar outra verdade ao mundo. Dmitry Peskov criticou o facto de as imagens nem terem data, para dizer que são “falsas”, e argumentou que não provam que os civis encontrados mortos pelas ruas de Bucha foram abatidos pelos russos. As imagens têm data e já foram cruzadas com o trabalho jornalístico e de autoridades locais que atestam que as vítimas de Bucha não “são atores contratados”, como acusa a Rússia, mas civis que ali se encontravam quando foram atacados pelos russos.