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De Quarteira a Osuna são 300 quilómetros. É esse o trajeto que Nohelia Breto percorre todas as semanas. A médica venezuelana vive no Algarve há sete anos com o marido e os três filhos mas não consegue exercer medicina em Portugal, diz, ao Observador. Por isso, trabalha em Espanha, na região de Sevilha. Nohelia é um caso que retrata a dificuldade por que passam muitos médicos estrangeiros que querem trabalhar em Portugal. O processo, dividido entre as Faculdades de Medicina e a Ordem dos Médicos (OM), é lento, burocrático e de difícil compreensão, garantem. Muitos desistem, outros esperam muito tempo, por vezes anos, para poderem exercer.
Nohelia saiu da Venezuela em 2016, empurrada pela crise social e económica em que o país mergulhou. Instalou-se com a família no Algarve (o marido é português) e, devido aos poucos recursos financeiros que tinha, recusou despender os 500 euros pedidos para o processo de reconhecimento do grau académico numa faculdade de Medicina de Lisboa.
Em Portugal, os médicos estrangeiros têm de passar por várias etapas para poderem exercer. E o processo é diferente consoante a região de origem, ou seja, o país onde se formaram. Neste momento, todos os médicos estrangeiros provenientes de países de fora da União Europeia, que queiram exercer em Portugal, têm de ver o seu grau académico reconhecido por uma faculdade de Medicina portuguesa: para isso, têm de ter avaliação positiva numa prova de conhecimentos que abarca várias áreas médicas, numa prova clínica (que inclui uma avaliação a um doente) e numa outra linguística. Têm ainda de apresentar uma dissertação de mestrado ou trabalho equivalente. Para os clínicos de países da UE (onde se incluem também a Turquia, Moldávia, Noruega, Reino Unido, Rússia, Suíça e Ucrânia), o reconhecimento é automático, pelo que só precisam de realizar a prova linguística.
Apenas um terço dos médicos passa no crivo das faculdades
Todo este processo demora um ano civil inteiro, ou seja, doze meses, e muitos candidatos ficam pelo caminho. Desde 2019/2020 e até 2022/2023, deram entrada nas oito faculdades de Medicina do país 1977 pedidos de reconhecimento de grau académico, segundo dados enviados ao Observador pelo Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP), entidade que representa as faculdades de Medicina. No entanto, destes apenas 618 (31%) viram o reconhecimento atribuído, sendo que 990 (50%) aguardam decisão ou dizem respeito a médicos que ainda se vão submeter aos exames. Os restantes 19% foram indeferidos ou tratam-se de desistências. Ou seja, em quatro anos letivos, apenas um terço dos pedidos de reconhecimento foram aprovados pelas faculdades.
A prova escrita é um dos maiores obstáculos. Muitos médicos já têm muita experiência acumulada numa determinada área, e acabam por chumbar numa prova abrangente, com 120 perguntas, que testa os conhecimentos em várias áreas da medicina. “A taxa de reprovação é grande, cerca de metade ficam pelo caminho”, admite, ao Observador, a presidente do CEMP, Helena Canhão.
“A prova tem questões de Medicina interna, Medicina Geral e Familiar, Cirurgia, Ginecologia, Pediatria, Psiquiatria. As pessoas pensam que, como são especialistas, vão passar facilmente”, detalha, o que acaba por não acontecer, porque os médicos “não estudam”. Já na prova prática, que contempla a avaliação de um doente, a taxa de reprovação é muito menor. “As pessoas têm de ver o doente, comunicar, pedir exames, fazer o diagnóstico e fazer um plano terapêutico”, explica a responsável.
Uma vez reconhecido o grau académico, o processo transita para a Ordem dos Médicos, onde o médico é imediatamente inscrito. Depois, tem de fazer uma prova de comunicação médica no Instituto Camões. Se o médico tiver menos de dois anos de experiência de prática médica, é exigido que frequente um internato, de um ano, o chamado ano comum, em contexto hospitalar. Segue-se depois o processo de equivalência da especialidade, se for o caso. Aí entra em cena cada um dos colégios da OM, sendo que o candidato se submete a um exame.
Todo este processo pode ser muito demorado. Há relatos de médicos que esperam há mais de três anos. Normalmente, a parte mais morosa é a da atribuição de equivalência da especialidade na OM. Alguns médicos desistem. Foi o caso da anestesista Nohelia Breto, que nem sequer iniciou o processo. Assustada com casos de colegas venezuelanos à espera há anos, preferiu pedir o reconhecimento do grau académico em Espanha, onde, garante, o processo é muito mais célere e económico. “É tudo muito demorado em Portugal. Em Espanha paguei 180 euros e demorou um ano até poder trabalhar, sem passar por nenhuma faculdade”, conta, adiantando que muitos médicos venezuelanos que vieram, numa primeira fase para Portugal, já se instalaram em Espanha.
Nohelia vive em Quarteira mas exerce no Hospital de La Merced, em Osuna, uma cidade a 90 quilómetros de Sevilha. Antes de começar a trabalhar em Espanha (onde passa metade da semana), trabalhou numa loja de roupa e esteve no Hospital de Faro a fazer limpezas. Ali percebeu quão grave é a falta de anestesistas em Portugal, e particularmente no Algarve — a região recorre a médicos tarefeiros com muita frequência para preencher as escalas e tem menos de metade dos anestesistas que seriam necessários.
“Nós estamos cá, precisam de nós e nós precisamos de trabalhar”, realça Nohelia Breto. “Conheço cirurgiões, anestesistas que estão em Portugal e a trabalhar nas obras”, diz a médica, que, confessa, gostaria um dia de trabalhar num país “que adora” e que “adotou” como seu, Portugal. A especialista critica a complexidade do processo em Portugal e faz uma crítica que é comum aos médicos com quem o Observador falou, e que consideram que a Ordem dos Médicos tem um poder excessivo no processo de equivalência das especialidades, numa atitude que classificam como “corporativista”. “Em nenhum país do mundo, a Ordem dos Médicos tem tanto poder como aqui”, acusa a médica.
Ao Observador, o bastonário da Ordem dos Médicos, Carlos Cortes, admite que “há uma demora excessiva no reconhecimento dos diplomas, de médicos de fora da UE” nas faculdades mas também nos colégios de especialidade da OM. “É verdade que há colégios que demoram mais tempo. Tem de haver formação de júri e exame presencial teórico. É feita uma avaliação do percurso, da formação e da experiência profissional. Essa parte pode ser demorada porque muitas vezes os candidatos não têm as habilitações necessárias para exercer em Portugal e garantir a segurança na prática clínica”, sublinha. Metade dos candidatos que chegam a esta fase não são autorizados a ir a exame de especialidade — em 2022, 45% não foram admitidos.
Michel Issa, ortopedista experiente, nunca conseguiu a equivalência da especialidade
O ortopedista brasileiro Michel Issa foi um desses casos. Tem 63 anos, trabalhou em Portugal mas, sentindo que “não era valorizado”, regressou ao seu país. Esteve a exercer em serviços de Ortopedia de vários hospitais mas a equivalência da especialidade, por parte da OM, nunca chegou. Estava a trabalhar como especialista mas a ser pago como médico indiferenciado, apesar de todos os anos experiência acumulados no Brasil. “Sou ortopedista desde 1991 e fui chefe de serviço de um hospital no Brasil”, conta o médico, ao Observador. Começou a trabalhar no Hospital Beatriz Ângelo, em Loures, depois foi para o Hospital de Santarém. “Eu fazia diagnósticos e cirurgia. Atendia como ortopedista mas com o salário de generalista. Trabalhava 12 horas por dia”, garante.
Mas, durante os sete anos em que esteve em Portugal (voltou ao Brasil em 2020), não conseguiu ver os seus 25 anos de experiência reconhecidos pelo colégio de Ortopedia da OM. Algo que diz ser “incompreensível”, e que o leva a acusar este colégio de ser “corporativista”. “Fiz o currículo, expliquei que tinha experiência em cirurgias ortopédicas, e que já tinha feito mais de 2500 cirurgias. Em março de 2015, enviei o currículo. Disseram que precisavam dos números de internamento dos doentes que tratei no Brasil. Os números não estavam informatizados, eu não tinha como os fornecer”, justifica Michel Issa. Cerca de sete meses depois, o Colégio de Ortopedia comunicou-lhe que o pedido de equivalência não tinha sido aprovado.
“Ainda fiz uma segunda tentativa, com uma carta de recomendação do diretor de serviço do Beatriz Ângelo. Foi recusado com os mesmos termos, ignoraram a carta, os cursos que tinha feito”, lamenta o ortopedista, que, depois da nova recusa, decidiu regressar ao Brasil. “A OM não quer concorrência de médicos estrangeiros, isso é claro“, diz.
“Há colégios em que, apesar de os médicos terem bons currículos, não querem que ninguém entre. Por exemplo, em Cardiologia, Oftalmologia. Nas especialidades médicas onde os rendimentos são altos, ninguém consegue entrar”, diz, ao Observador, o psiquiatra brasileiro Marcelo Sampaio, que esperou dois anos até poder exercer como especialista em Portugal. “Tive sorte”, confessa.
O médico, que trabalha num hospital privado de Lisboa, presta também serviços de consultoria a colegas brasileiros que querem vir trabalhar para Portugal, mas, diz, não aconselha “ninguém a exercer em Portugal”. “Em Espanha discrimina-se positivamente, aqui não”, critica, adiantando que muitos acabam por nem sequer vir quando se apercebem da complexidade do processo que os espera. “Não faz sentido que um país que tem a falta de médicos que Portugal tem ponha médicos ultraespecializados a fazer urgências“, diz o psiquiatra, referindo-se aos médicos especialistas, que, enquanto esperam pelo reconhecimento da especialidade, trabalham como prestadores de serviços em urgências ou centros de saúde. Foi o que aconteceu no seu caso, enquanto esperava pelo reconhecimento do colégio de Psiquiatria da OM.
As dificuldades que muitos médicos especialistas estrangeiros enfrentam para exercerem em Portugal contrastam com a necessidade de clínicos em muitos serviços hospitalares portugueses, cada vez mais depauperados e dependentes da contratação de médicos tarefeiros. Os gastos do SNS com médicos prestadores de serviços, contratados à hora, não param, aliás, de aumentar: nos últimos sete anos (de 2015 a 2022) disparam mais de 84%, para os 170 milhões de euros. Muitos destes profissionais são chamados para completar as escalas de especialidades como como Ginecologia/Obstetrícia, Pediatria, Anestesiologia ou Ortopedia, onde a falta de médicos é cada vez mais visível.
Também nos centros de saúde a resposta aos utentes está a deteriorar-se. Mais de 1,6 milhões de portugueses não têm médico de família e a situação não deve melhorar de forma significativa nos próximos anos (devido, entre outros fatores, ao elevado número de aposentações de médicos de família neste período e à falta de capacidade do SNS para reter os recém-especialistas nas regiões a sul do Tejo). Por isso, o governo prepara a contratação de centenas de médicos estrangeiros, de países da América Latina (entre os quais 200 a 300 cubanos), para trabalharem em centros de saúde das regiões mais carenciadas (Lisboa e Vale do Tejo, Alentejo e Algarve), de modo aumentar o número de utentes cobertos por médicos de família.
No entanto, enquanto o Ministério da Saúde se desdobra em contactos e em anúncios de emprego do outro lado do Atlântico, muitos médicos estrangeiros tentam exercer em Portugal (país onde já se encontram, nalguns casos há anos), completando todas as etapas exigidas. Muitos não conseguem, (des)esperam. É impossível saber quantos. Segundo os últimos dados conhecidos, fornecidos pela OM ao Observador, existiam, no final de 2022, 4.503 médicos estrangeiros a exercer em Portugal, de 69 nacionalidades diferentes. É o maior número de sempre, mas poderiam ser mais, não fosse a complexidade do processo.
“Reconhecimento é lento e exclui muitos médicos”, admitem faculdades
À semelhança do bastonário dos médicos, também a presidente do Conselho de Escolas Médicas admite que o processo é demasiado demorado. “O reconhecimento é um processo lento e exclui muitos médicos. Às vezes demora quase um ano [nas faculdades]”, diz Helena Canhão. A responsável adianta que uma das soluções para facilitar o reconhecimento das qualificações dos médicos que chegam a Portugal seria abrir mais uma época do exame nas faculdades. “Temos discutido a possibilidade de haver exame mais de uma vez por ano“, diz.
E deveria o processo ser mais rápido e mais simplificado? Tanto o Conselho de Escolas Médicas como a própria Ordem dos Médicos admitem que sim. “Estamos a discutir com o Ministério da Saúde se se justifica o exame escrito para especialistas. Quando um radiologista chega a Portugal, ele vai chumbar porque vai responder as perguntas de Pediatria”, salienta Helena Canhão.
“Podemos rever todos os mecanismos no sentido de tornar o processo mais rápido. A Ordem dos Médicos está disponível para isso. O que não aceitamos é que esses médicos tenham uma formação inadequada e que lhes seja dado o título de especialistas em Portugal“, alerta Carlos Cortes, admitindo, no entanto, que “pode haver um consenso entre as faculdades de Medicina e a OM para agilizar o processo”.
Em 2022, o número de inscrições de médicos estrangeiros na Ordem atingiu o valor mais alto dos últimos cinco anos: foram 222, a maioria (63%) brasileiros. Uma das novas inscrições foi a da médica turca Selay Duarte, que chegou a Portugal, em maio de 2022, acompanhada pelo marido (português) e pelo filho de ambos. Como a Turquia se equipara a um país da União Europeia, o processo na faculdade de Medicina da Universidade Nova de Lisboa foi facilitado e o reconhecimento do curso na Turquia dado de forma automática.
A médica, especialista em Microbiologia Médica (uma especialidade que não existe em Portugal), passou no exame de comunicação médica da Ordem e está agora no processo de atribuição de autonomia (está inscrita na Ordem mas ainda não pode exercer). Selay Duarte ainda não sabe se será ou não obrigada a frequentar o ano comum, um período de formação, em contexto hospitalar, obrigatório para todos os médicos estrangeiros com menos de dois anos de experiência em prática clínica. A médica diz ter quatro anos de experiência clínica, mas a Ordem dos Médicos ainda se encontra a avaliar o processo. “É muito mau se tiver de fazer o internato porque eu sou especialista. Publiquei artigos sobre Microbiologia em jornais científicos, fui a muitos congressos”, explica a médica. E não há um prazo limite para que seja tomada uma decisão. “Já passaram dois meses e não me dão nenhuma informação”, critica, queixando-se da complexidade do processo em Portugal e da falta de informação e de apoio da Ordem aos médicos estrangeiros.
Só depois de lhe ser atribuída a autonomia, ou depois de fazer o ano comum (se a Ordem assim o decidir), poderá iniciar o processo de equivalência da especialidade, que será conduzido por um júri do colégio de especialidade de Patologia Clínica. Enquanto espera pela conclusão do processo na Ordem, que a própria admite poder vir a demorar “muito tempo”, Selay Duarte não tem conseguido encontrar um emprego estável em Portugal. “Não consigo planear a minha vida, é muita incerteza”, diz, admitindo que, se não fosse pelo marido, já teria regressado à Turquia.