Fátima Madureira, ex-chefe de gabinete de Fernando Medina na Câmara de Lisboa, foi nomeada pelo agora ministro das Finanças para a vice-presidência da Estamo, a imobiliária do Estado, depois de a Cresap (a comissão independente que avalia os candidatos a altos dirigentes do Estado) não a ter escolhido no concurso para presidente da Agência para a Modernização Administrativa (AMA). Já depois de conhecer os resultados, o Executivo anulou o concurso, alegando que é preciso “atualizar” os critérios de seleção, perante o que diz ser a “nova orientação” da AMA. Já o Ministério de Medina desvaloriza que Madureira não tenha sido escolhida para a AMA e sublinha que a gestora teve parecer positivo da Cresap para a Estamo.
Medina nomeia ex-chefe de gabinete para a vice-presidência da Estamo, a imobiliária do Estado
A história começa em outubro de 2020, quando a então secretária de Estado da Inovação e da Modernização Administrativa, Fátima Fonseca (que antes de ir para o governo também trabalhou na Câmara de Lisboa), nomeou em regime de substituição Fátima Madureira para presidente da Agência para a Modernização Administrativa (AMA). Madureira esteve nesse cargo durante quase dois anos, até 31 de agosto deste ano, ao abrigo de um regime que deveria ser provisório e que serve para assegurar o exercício de um cargo em situações excecionais — um deles é enquanto o Governo não pede a abertura do concurso ou a Cresap não o abre ou conclui.
O regime tem sido criticado por permitir que dirigentes escolhidos pelos governos fiquem meses, ou mesmo anos, num cargo, a ganhar experiência e conhecimentos que lhes dão depois vantagem sobre outros candidatos quando o concurso é aberto. Mas isso não aconteceu com Fátima Madureira. Segundo confirmaram três fontes ao Observador, quando o concurso para a presidência da AMA foi aberto, em janeiro de 2021, Madureira candidatou-se, mas não foi uma das escolhidas pela Cresap para a shortlist, isto é, a lista de três candidatos que a comissão considera serem os mais adequados para o cargo e de entre os quais o Governo deve escolher um. Fátima Madureira não respondeu aos vários pedidos de contacto do Observador.
Nessa lista de três candidatos apresentados ao Governo estariam, segundo uma fonte, os dois vogais da AMA que exerciam funções em regime de substituição desde 2018, Paulo Mauritti (que já tinha sido designado antes, em 2015, mas para substituir temporariamente uma vogal) e Sara Carrasqueiro, assim como Henrique Martins, que foi afastado da liderança dos Serviços Partilhados do Ministério da Saúde (SPMS) logo no início da pandemia e substituído pelo antigo secretário de Estado, Luís Goes Pinheiro. Na altura, ao Observador, Henrique Martins disse que tinha sido “apanhado de surpresa“ por esse afastamento, uma vez que, embora a sua comissão de serviço tivesse chegado ao fim, poderia ter sido reconduzido. Agora, contactado pelo Observador, indicou não ter tido conhecimento nem de que o seu nome constava na shortlist para a presidência da AMA, nem de que o concurso fora anulado.
Quanto aos outros dois nomes, Paulo Mauritti e Sara Carrasqueiro, exerciam os cargos de vogais em regime de substituição há mais tempo do que o legalmente previsto (90 dias). Apesar de constarem na shortlist, foram afastados da AMA no final de agosto, através de despachos assinado pelo secretário de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa, nos quais Mário Campolargo alega que os dois saíram “a requerimento dos próprios”. Porém, segundo apurou o Observador, nenhum dos dois pediu para sair. Até ao momento, o Observador não obteve respostas de Mauritti nem de Carrasqueiro.
A Cresap não confirmou oficialmente ao Observador os três nomes selecionados, nem esclareceu por que razão Fátima Madureira não foi escolhida, escudando-se no “dever de sigilo”. “Não tendo havido designação, está este organismo impedido legalmente de revelar a identidade dos candidatos que constavam na proposta”, respondeu fonte oficial. Ou seja, o entendimento da Cresap é que os três nomes não podem ser divulgados oficialmente porque o Governo não designou ninguém — o que não aconteceu porque anulou o concurso, depois de conhecer a shortlist.
O Observador questionou o gabinete do secretário de Estado da Digitalização sobre se considera esse procedimento transparente, mas não obteve resposta a essa questão. Fonte oficial apenas justificou o despacho de anulação do concurso.
A tutela mudou e a justificação para a falta de nomeação também
Alexandra Leitão era ministra da Administração Pública quando o concurso para presidente da AMA foi aberto, em janeiro de 2021 (a pedido da própria, garante, dentro do prazo definido na lei, 90 dias). E ainda estava no cargo quando a shortlist da Cresap chegou ao Governo, antes do chumbo do Orçamento do Estado para 2022 (que aconteceu no final de outubro do ano passado).
Porque é que a sua tutela não selecionou um dos três nomes? Ao Observador, Alexandra Leitão responde que foi entendimento do Executivo que não deveriam ser feitas nomeações numa altura em que o Orçamento do Estado estava na iminência de ser chumbado. Essa “orientação”, indica, veio da presidente do Conselho de Ministros, Mariana Vieira da Silva.
“Pouco depois de recebermos a shortlist foi chumbado o Orçamento e o entendimento, na altura, da presidente do Conselho de Ministros, que nos dava orientações nessas matérias, foi de que não deviam ser feitas nomeações, apesar de o Governo não estar formalmente demissionário“, explica ao Observador. Alexandra Leitão dá mesmo o exemplo da recondução do secretário-geral da Presidência do Conselho de Ministros — uma recondução com a qual concordou mas que, salienta, “fez parangona no Correio da Manhã porque tinham reconduzido alguém nesse período de Orçamento já chumbado”.
Governo faz nomeações na Administração Pública a menos de um mês das eleições
Depois de receber a proposta da Cresap, o membro do Governo responsável pela tutela do cargo tem 45 dias para nomear alguém. A lei dita ainda que não pode haver designação de cargos de direção superior “entre a convocação de eleições para a Assembleia da República ou a demissão do Governo e a investidura parlamentar do novo Governo”. Mas quando o Governo recebeu a shortlist, o Orçamento ainda não tinha sido chumbado e, na prática, poderia nomear.
O Governo escolheu não o fazer aí e também não o fez após o chumbo do Orçamento e consequente dissolução da Assembleia da República. “Foi entendimento, à data da PCM [Presidência do Conselho de Ministros], não sei se há alguma coisa escrita, que em todo o período em que estávamos impossibilitados de escolher alguém da shortlist, o período [de 45 dias] para a nomeação se suspendia”, acrescenta.
Com o novo Governo, a AMA deixou de estar sob a tutela do mesmo ministério e passou para a secretaria de Estado da Digitalização e da Modernização Administrativa, “por delegação de competências” de António Costa. É Mário Campolargo quem assina o despacho que anula o concurso para presidente e vogais da AMA. Ao Observador, o gabinete do secretário de Estado justifica essa anulação com a “nova orgânica” e o programa do Governo, assim como o Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
“Dando resposta às necessidades da nova orgânica, ao Programa do Governo e ao PRR considerou-se que a AMA vê alargada a sua esfera de ação, sendo essencial integrar novas valências e competências, designadamente na área do digital”, começa por indicar fonte oficial. É por isso que, argumenta, o perfil elaborado pela Cresap sob proposta do Governo deve ser alterado.
“Assim, tornou-se claro que o perfil das pessoas dirigentes do novo Conselho Diretivo (CD) da AMA teria de responder a novas e adicionais necessidades e desafios. Desta forma, considerou-se pertinente imprimir uma nova orientação à gestão do serviço; criar uma nova carta de missão; atualizar as competências, responsabilidades e funções do CD da AMA, bem como e consequentemente elaborar um novo perfil de competências das pessoas candidatas pela Cresap”, indica.
Substitutos também foram nomeados em regime de substituição
É também essa a justificação que consta no despacho de anulação do concurso, que tem data de 11 de agosto. No documento, Mário Campolargo refere que o seu gabinete tomou conhecimento da shortlist da Cresap, assim como dos “elementos instrutores do procedimento concursal aberto em janeiro de 2021, cujo prazo de decisão terminava 14 dias depois”, na sequência da tomada de posse do atual governo, a 30 de março de 2022. E justifica a anulação com as “alterações” nas “missões a cargo da AMA”, que são posteriores ao concurso aberto em janeiro de 2021.
Entre essas “alterações” estão responsabilidades relacionadas com o PRR e que a tutela assegura não se tratarem de um “acréscimo meramente quantitativo de tarefas, mas um conjunto de novas áreas de ação que exigem conhecimentos especializados e experiência dirigente reforçada”. As tarefas referidas não podem “ser planeadas nos aspetos estritamente executivos, antes exigindo um novo comportamento organizacional que se quer propositivo e habilitado a oferecer planos de ação transversais e setoriais, interligados e interoperáveis”, lê-se.
Assim “afigurou-se necessário reformular os perfis associados aos procedimentos concursais”, de vogais e presidente, e as cartas de missão, no que toca às características dos cargos, que “devem ser substancialmente reformuladas, considerando as exigências de serviço suprarreferidas, bem como a necessidade de imprimir uma nova orientação à gestão dos serviços que assegure a concretização dos objetivos estratégicos da área governativa da Digitalização e da Modernização Administrativa”.
O novo concurso foi pedido pelo secretário de Estado à Cresap “no decurso do mês de agosto”, segundo a resposta enviada ao Observador, com a tutela a garantir que “o Governo assegurará o adequado funcionamento da AMA, nos termos legalmente previstos”. Seis dias depois de ter enviado esta resposta, foi publicado em Diário da República o despacho de nomeação em substituição do presidente e dos vogais para a AMA, em regime de substituição.
Para presidente, foi nomeado João Dias, que entre março de 2014 e abril de 2017, foi vogal do conselho de administração da EMEL, um período que coincide com o final de mandato de António Costa na Câmara de Lisboa e com o primeiro mandato de Fernando Medina. Desde 2017 era vogal executivo do conselho de administração da Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal (AICEP).
Já para vogais foram selecionados Tito Vieira, que era desde março de 2017 diretor-geral do Centro de Gestão da Rede Informática do Governo (CEGER), e Elsa Castro, que foi adjunta da ex-secretária de Estado da Segurança Social, Cláudia Joaquim, que é agora secretária de Estado do Orçamento. Aliás, entre maio de 2020 e junho de 2021, Elsa Castro passou a chefe do gabinete de Cláudia Joaquim, e atualmente trabalhava na consultora Deloitte.
Prática “não está estribada na lei”, mas é de “legalidade altamente duvidosa”
A Cresap foi criada para selecionar os altos dirigentes do Estado com base no mérito e não na confiança política. Cabe ao Governo pedir a abertura dos concursos para os dirigentes superiores do Estado e à Cresap abri-los. Quando os dirigentes são nomeados em regime de substituição, o que pode acontecer quando o dirigente está impossibilitado de exercer funções ou enquanto se aguarda a conclusão do concurso, o pedido formal para abertura do concurso deve acontecer no prazo de 90 dias após essa designação.
O membro do Governo responsável pela tutela envia à Cresap uma proposta de perfil com as competências e funções que o dirigente deve ter e que, em regra, valoriza a experiência, qualificações e conhecimento da área. Aí é possível adaptar o perfil para encaixar melhor num determinado candidato. Alguém com experiência no cargo, por lá ter estado meses, ou mesmo anos, em regime de substituição, tenderá a ter vantagem.
É depois a Cresap que designa o júri e, olhando para a proposta do Governo, elabora ela própria uma proposta de perfil, enviada ao governante que tutela a área do cargo, que tem 20 dias para a homologar. Se não concordar, pode alterar “mediante fundamentação expressa”, segundo a lei.
Mas a lei apenas prevê que isso aconteça antes de ser conhecida uma shortlist. E se for depois, como no concurso da AMA? A lei não dá resposta. João Bilhim, que foi presidente da Cresap entre 2012 e 2016, acredita que o concurso para presidente da AMA já estava numa fase em que não poderia ser anulado. Mas admite que a lei não é clara. “Não é bem um vazio legal. É uma prática que não está estribada na lei, mas de legalidade altamente duvidosa, sobretudo quando já se conhece a shortlist“, refere ao Observador.
Ainda assim, admite que aconteceu no seu mandato, embora, assegure, tenha sido uma “prática excecionalíssima”. Anular os concursos com o argumento de que o perfil mudou é uma prática que se tem “usado e abusado quando os nomes não convêm” ao governo, aponta.
Voltando aos passos do concursos: depois de aberto o procedimento concursal, e recebidas as candidaturas, a Cresap faz uma avaliação curricular, questionários e uma entrevista individual, conduzida pelo júri. Pode demorar mais tempo se houver mais candidatos. Depois, elabora uma shortlist com os três nomes que considera mais adequados para o cargo, sem os ordenar. É comum dessa lista constar o dirigente que exerceu as funções em regime de substituição — uma vez que tem experiência e conhecimentos do cargo.
Para a ex-ministra Alexandra Leitão não é negativo o facto de o nome de Fátima Madureira não constar na lista da Cresap, embora estivesse a exercer o cargo há um ano quando a comissão a elaborou. “Sempre defendi que a substituição não devia ter esse efeito [de dar vantagem a quem está em regime de substituição] porque tem de haver igualdade de armas no concurso“, começa por dizer, recusando “adjetivar” a escolha da comissão de recrutamento. “É um concurso e, portanto, foi considerado pela Cresap que outros tinham currículos melhores“, afirma.
Os outros dois vogais exonerados da AMA estavam em regime de substituição há praticamente quatro anos, desde 2018, nomeados por Graça Fonseca, quando era secretária de Estado adjunta e da Modernização Administrativa. Alexandra Leitão assegura que quando chegou ao ministério, no final de 2019, pediu a abertura dos concursos.
Finanças sublinham que Madureira teve parecer positivo para a Estamo
Fátima Madureira foi nomeada por Fernando Medina, de quem foi chefe de gabinete na Câmara de Lisboa entre 2017 e 2020, para vice-presidente da Estamo, a empresa que gere o património imobiliário do Estado. Assumiu funções a 1 de setembro.
Questionado sobre o motivo desta escolha, o Ministério das Finanças respondeu que a gestora “foi avaliada pela Cresap para o cargo de vice-presidente da Estamo, tendo o seu perfil sido considerado adequado para o desempenho destas funções na Estamo”. No caso da Estamo, por ser uma empresa pública, a Cresap não tem de fazer um concurso nem escolher a shortlist, mas apenas emitir um parecer, não vinculativo, sobre a escolha do Governo, após uma avaliação dos currículos e da adequação das competências.
“Tendo obtido parecer favorável da Cresap, uma entidade independente e transparente, o Ministério das Finanças considera que não subsistem dúvidas sobre a adequação do perfil da pessoa para a função em causa”, refere a resposta enviada ao Observador.
De facto, tanto Fátima Madureira como o presidente da Estamo, António Furtado, também nomeado recentemente (para presidente) — e que também esteve com Medina na Câmara de Lisboa –, tiveram a classificação de “adequado” pela comissão de recrutamento, segundo os pareceres publicados no site da Cresap. No caso de Fátima Madureira, a Cresap destaca a formação académica com licenciatura em História, complementada pelo PROGAL – Programa de Gestão Avançada na Administração Local, pelo GEPAL – Curso de Gestão Pública na Administração Local e pela Formação pedagógica de Formadores (2012).
Ao nível profissional, salienta como relevante para o cargo na Estamo, as funções de diretora do departamento de turismo da Direção Municipal de Cultura, Desporto e Turismo, de diretora do departamento de marca e comunicação da Câmara Municipal de Lisboa, de diretora municipal de Mobilidade e Transportes da mesma Câmara e de chefe do gabinete do então Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, Fernando Medina. Além disso, realça que, desde 2020, desempenhou funções de presidente do conselho diretivo da AMA. Ou seja, a Cresap valoriza a experiência num cargo para o qual foi nomeada pelo Governo em regime de substituição, a aguardar por um concurso no qual não foi depois selecionada.
“As informações contidas no curriculum vitae e no questionário de autoavaliação, bem como os resultados do questionário de competências pessoais e os dados obtidos através da entrevista individual, evidenciam competências técnicas e comportamentais que sustentam uma apreciação positiva para o desempenho do cargo em causa”, considerou a Cresap.