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Pendurados num sonho - parte II

No dia 22 deste mês, um grupo de imigrantes ficou pendurado na vedação que separa Melilha de Marrocos, durante 13 horas. Algo comum, até uma fotografia se tornar viral.

Esta reportagem faz parte de uma série sobre Melilha. Clique nas imagens abaixo para ler os outros capítulos.

Ouviam-se passos de corrida no hotel Anfora, desde as cinco da manhã. Apesar de ser um local para estadias passageiras, aloja muitos dos guardas fronteiriços que não têm casa em Melilha. Um pequeno quartel militar em regime de prevenção, durante a semana. Às seis da manhã, uma mensagem: “Salto en campo de golfe cerca de CETI!!! Ahora!!!” Aquilo sobre o qual Aboubacar não tinha certezas no dia anterior, no monte Gurugu, estava mesmo a acontecer. Uma segunda “avalanche humana”, em 48 horas, que iria marcar a atualidade mundial com uma imagem.

 “Liberdade”

As primeiras horas da manhã foram as mais tensas. Ao lado do campo de golfe, construído em paralelo com as vedações que separam Melilha de Marrocos, estão espalhados jipes da polícia. O Centro de Acolhimento Temporário de Imigrantes (CETI) fica a menos de 150 metros de distância onde se vê o primeiro grupo de “pendurados”.

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Cinco imigrantes saem do CETI a correr e vão em direção aos polícias que impedem que os “pendurados” desçam. Atiram-lhes pedras. Insultam-nos. Os imigrantes pendurados gritam “liberdade” e batem palmas. Os pescoços dos polícias giram 180 graus, não se conseguem focar em qual o problema com que têm de lidar primeiro. Dois polícias dispersam os cinco imigrantes e levam-nos ao CETI.

Naquela manhã, a avalanche humana ocorreu em três locais diferentes das vedações. Os imigrantes dividiram-se para conquistar. Mas um dos grupos, com cerca de 20 pessoas, foi captado numa fotografia que se tornou viral. Um casal joga golfe, enquanto um grupo de imigrantes que tenta entrar em Melilha está pendurado na vedação. Uma plateia muito especial olhava atónita para aquele jogo.

Interpelados pelo Observador, o casal de golfistas britânico disse: “Desculpa, mas não queremos falar. Estamos aqui para jogar só.” Viraram costas e escolheram outro taco para o buraco seguinte. E swing.

Do lado de Marrocos vê-se uma ambulância. Alguém está a ser levado de maca para o veículo. Passados alguns minutos uma rádio local anuncia que dois imigrantes caíram do cimo da primeira vedação e que estavam a ser levados para o Centro Médico de Nador. Também daquele lado estão estacionados três autocarros prontos a conduzir os imigrantes a vários pontos do país, abandonando-os, como já é prática comum desde 2012. Até então, levavam-nos para a cidade de Oujda, na fronteira com a Argélia, incentivando-os a regressar aos seus países.

O curto intervalo entre os saltos – este é o segundo em 48 horas – pode ser explicado pelo facto de o Governo marroquino estar a construir a sua própria vedação, coberta inteiramente de arame farpado. Aquele local é uma das últimas “janelas abertas”. A construção das três vedações que separam Marrocos de Melilha, e a sua manutenção, foi financiada por fundos da União Europeia. O Centro de Acolhimento Temporário de Imigrantes também. E o campo de golfe, a mesma coisa.

“É mais fácil de compreender a guerra do que as fronteiras."

Todos aqueles imigrantes querem entrar na União Europeia, mas só a podem ver.

A perversão do salto

Depois de almoço, começaram a chegar mais pessoas para assistir ao que se estava a passar. Rashid Ibram, cidadão marroquino de Nador, olha para o que está a acontecer como se fosse uma peça de teatro de comédia. “Olha, olha!”, diz para o jornalista, a apontar para um dos polícias que está em cima do gradeamento. “Está a por uma manta entre as pernas para não lhe doer o rabo”, diz, a rir-se. Os polícias pendurados nas pontas dos grupos de imigrantes trocam a cada 20 minutos. E estão presos por mosquetões às vedações. Há algumas semanas, um foi empurrado, caiu e esteve em risco de vida.

Imagem captada ao início da tarde.

Fábio Monteiro

Os imigrantes estão pendurados na vedação, como pássaros num cabo da rede elétrica. Estão encurralados. Gritam muitas vezes “ébola”, uma técnica ensinada pelos traficantes nas montanhas, de forma a criar medo nos polícias que os impedem de descer e entrar em Espanha. Passados alguns minutos, todos os polícias têm uma máscara na face.

Todo este impasse decorre como fosse uma cena normal. Aviões da companhia Iberia passam sobre os imigrantes na rota de aterragem para Melilha. Alguns olham para cima, seguindo-os com os olhos.

Algumas equipas de televisão chegam. Os imigrantes começam a gritar, cada um na sua língua materna, como um coro treinado.

“O terceiro a contar da esquerda, parece ser uma criança de 10 ou 12 anos. Já viste como é pequeno”, repara Rashid. Tira os óculos de sol para ver melhor. “Sim, é mesmo uma criança”, diz, mudando subitamente o tom de voz, como se algo tivesse perdido a piada. Outro parece ter o corpo sugado pelo peito: tem a cintura de uma criança de 10 anos.

Juan Escobar é um dos elementos da Cruz Vermelha que está de prontidão no local. Ao contrário do que se poderia pensar, defende a atuação dos polícias, sem hesitar. “São muito humanos, mesmo muito. Acreditem”, diz, de dentro da ambulância. Juan também está a assistir a tudo o que se está a passar desde o início do dia. “Normalmente, não demoram tanto tempo a descer”, diz. E confirma uma suspeita que já se estava a formar: “Estiveram ali todo o dia empoleirados sem comida ou água.” Uma técnica comum da polícia, para os “fazer dobrar”, explica.

Às 17 horas, dois imigrantes sentem-se mal e aceitam descer.

Alguém grita para os imigrantes pendurados: “O CETI está perto, não desistam!” Ramadi, 18 anos, saltou para Melilha há dois meses. “Eles [pendurados] têm de descer quando alguém [pessoas na estrada] está a ver, se não a polícia vai mandá-los de volta a Marrocos”, diz. Todos os imigrantes “pendurados”, quando são descidos pela polícia têm de ser encaminhados para o CETI. Contudo, nos jornais espanhóis, é comum lerem-se denúncias de devoluções ilegais, apesar de nenhum caso ter sido comprovado até hoje.

Passar para Melilha é muito mais difícil do que parece, explica, lembrando que teve de treinar para tal. “Tive de domesticar o meu corpo”, diz o jovem nascido da Gâmbia, mostrando os bíceps.

Ao lado, Erick Zbong, 21 anos, nigeriano, tem uma posição totalmente diferente. “São fracos, pequeninos, crianças”, diz, encolhendo os ombros e olhando para o chão, mostrando algum receio por expressar a sua opinião. “Se tivessem sido rápidos, já estavam a preencher os papéis de residência no CETI”, acrescenta. O que aconteceu a Erick Zbong é comum em Melilha. Por vezes, ocorre uma espécie de perversão dos sonhos, um esquecimento. Os que ficaram na montanha ou não conseguem saltar são os “falhados” – deixam de se ver como parte do mesmo grupo de pessoas. É uma forma de criar distância quanto ao passado, diz Ramadi, quando decide intervir na conversa com Erick. “Somos doentes. Todos. Os que estão ali pendurados a olhar para nós querem avançar e saltar para esquecer”, continua.

E  acrescenta, num tom de voz elevado, para todos à volta ouvirem: “Quando estiverem deste lado, vão esquecer-se do que viveram das montanhas rapidamente. Por isso é que estão aqui tão poucos subsarianos a olhar para o que se passa. Os sírios estão mais preocupados.”

Erik dá um encontrão a Ramadi, numa tentativa de começar uma luta. Por pouco não tropeça e cai no chão. Um polícia que está de vigia intervém rapidamente. Manda cada um para lados diferentes da estrada e acaba a conversa.

Pelo menos num ponto, Ramadi tinha razão. A grande maioria das pessoas que assistiam ao que se estava a passar eram sírios fugidos de Aleppo e Kobane.

Compreender as fronteiras?

Quando um míssil scud caiu no teto da sua casa, em Aleppo, Ahmed, 29 anos, decidiu que era o momento de partir. Tinha conseguido suportar a ditadura de Bashar al-Assad até então. Gostava demasiado da sua cidade para partir. A primeira coisa que este professor de francês mostra ao Observador são fotografias da cidadela de Aleppo, o centro histórico, que foi fulminado por bombas. Fotografias do antes e depois do conflito que assola o país, “a pior guerra do mundo”, nas suas palavras. “Destruída [a cidadela] em pó”, diz, desenhando com as mãos a forma de um cogumelo de uma explosão.

Lutar nunca foi uma possibilidade. “Vamos viver como homens, como a humanidade. Não combatemos com uns ou com os outros”, explica. Ahmed está há 42 dias em Melilha.

Ele e um grupo de refugiados sírios estão sentados no passeio da estrada, ao lado do campo de golfe, a olhar para o desenrolar da situação dos imigrantes “pendurados”. Durante o dia, a grande maioria da população síria que mora no CETI monta tendas e cozinha nos terrenos exteriores ao centro, uma caravana no deserto ao lado de uma estrada de alcatrão e um campo de golfe. “Lá dentro, é um ambiente muito triste, deprimente”, diz.

Imigrantes sírios sentados na beira da estrada, a assistir ao que se estava a passar.

Fábio Monteiro

Imad Ahdin, 55 anos, partiu com Ahmed da mesma cidade. Viajaram até à Turquia, voaram para a Argélia, passaram de carro para Marrocos e entraram pela fronteira de Melilha a pé. Tal como o amigo, Imad mostra fotos no telemóvel do que sente falta: neste caso, o seu ofício. Imad é um escultor. Mostra colunas de granito que costumava esculpir. As mãos dele tornaram-se inúteis em Melilha. E, entre risos, pergunta, se em Portugal precisam de escultores. No meio do feed de notícias do Facebook aparece a imagem de soldados de Assad decapitados pelo Estado Islâmico. “É a vingança”, diz.

Mal se começa a falar do Estado Islâmico aparecem mais dois sírios: Abdul e Yazan Aziz, primos, que moravam em Kobane – em árabe, o nome da cidade significa o olho da arábia -, cidade localizada na fronteira com a Turquia que esteve, nos últimos meses, sob forte ataque do Estado Islâmico. Ambos dizem que são curdos, do Curdistão. Para eles, Bashar al-Assad era o mal previsível. Com isso conseguiam conviver. O silêncio forçado dava-lhes “segurança”, diz Abdul. O Estado Islâmico é o acaso. “São terroristas loucos”, diz Yazan, passando com a mão pelo pescoço, como se estivesse a ser decapitado. Pedir para escolher entre dois males dá lugar a risos.

Compreender os conflitos é fácil: existe um inimigo concreto. Mas aquela cena a que assistem há mais de três horas não. As fronteiras são estranhas, diz Yazan. Ramadi pensa um pouco no que disse o amigo. E acrescenta: “É mais fácil de compreender a guerra do que as fronteiras.”

Cair do pano

Quando anoitece totalmente deixa de ser possível distinguir quem são as pessoas penduradas. Ficaram só os fotógrafos e jornalistas. Por momentos, durante o pôr-do-sol, o céu ficou pintado de azul e laranja, criando um quadro majestoso. Os polícias denunciam-se pelas silhuetas dos capacetes.

“Somos doentes. Todos. Os que estão ali pendurados a olhar para nós querem avançar e saltar para esquecer.” 

Ouve-se o muezzin (o responsável pelo chamamento para as orações) da mesquita do cemitério muçulmano, às 19h40. Um dos imigrantes levanta-se em cima da vedação, agarrado ao poste iluminação, como o capitão de um navio no mastro. Leva uma mão à testa, numa tentativa de bloquear o excesso de luz e ver ao longe o que se passa. De certeza, que, nem que por momentos, olhou para o Centro de Acolhimento Temporário de Imigrantes.

Um dos imigrantes deita-se na vedação. O corpo cedeu. Tudo o que o mantém agarrado é o espírito. Tem uma mão no ar, que, ao longe, parece estar a fazer um jogo de sombras.

O desenlace deste dia foi muito mais rápido do que o esperado. De repente, a polícia desligou a eletricidade dos postes de iluminação. Ficou tudo escuro, o pano da peça de teatro tinha caído à força. Às 20h25, mais de treze horas depois do início do salto, acabou a luta. O espírito dos últimos imigrantes resistentes cedeu na escuridão. Desceram do “sonho”, num escadote, acompanhados pela polícia.

O que aconteceu aos imigrantes que desceram não é claro. No dia seguinte, no CETI, alguns imigrantes diziam que só tinham dado entrada duas pessoas, das duzentas que estiveram penduradas.

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Pendurados num sonho – parte I

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