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FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

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Mesmo em dia de folga, estes enfermeiros quiseram vacinar os colegas. "Fico aqui até à hora que for preciso"

Elisabete, Tiago, João ou Nélia estavam de folga, mas não faltaram à chamada. São profissionais de saúde do Hospital de São José e não estão na primeira fase de vacinação, mas, sem eles, nada feito.

Elisabete, 48 anos, foi uma das enfermeiras que aceitaram voluntariar-se para administrar a vacina contra o novo coronavírus no hospital São José, onde, este domingo, estavam agendadas 800 pessoas para vacinação. Trabalha na unidade de queimados, com pacientes que não veem a família há meses por causa do risco de infeções. Estava de folga este domingo, mas optou por empurrá-la mais para a frente.

O enfermeiro João Luís, que trabalha na neurocirurgia, mostra felicidade e orgulho por fazer parte deste dia histórico, mesmo por detrás da máscara. Na ala onde trabalha, há doentes que, por terem lesões cerebrais, nem sequer sabem que o mundo está numa luta contra uma das maiores pandemias de sempre. É preciso explicar, repetir as medidas, ter compaixão e facilitar um pouco as visitas para ajudar no processo de recuperação — ainda que, para isso, tenha de infringir algumas regras. Mas, esta tarde, a missão é mais simples do que costuma ser: vacinar, vacinar e vacinar até que não seja mais preciso.

Já o enfermeiro Tiago Braga, 42 anos, trabalha na reabilitação de doentes com acidentes vasculares cerebrais, que chegam da rua sem teste de diagnóstico. Ou seja, é uma roleta russa: há sempre a possibilidade de estarem infetados. Na garagem de casa chegou a instalar um termoacumulador para poder tomar banho antes de chegar ao pé da família. Este domingo optou por deixar os filhos em casa para ir vacinar os colegas. Por eles e por quem vem a seguir.

Nélia Feijão, assistente técnica de consulta externa do Centro Hospitalar Lisboa Central, não vacinou colegas, mas foi uma das responsáveis por notificar os profissionais de saúde e fornecer os inquéritos para a triagem. Porque, antes de qualquer seringa se aproximar de um braço, há burocracias essenciais para que tudo corra bem.

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Estes são quatro de centenas de rostos que estão por detrás do primeiro dia do plano de vacinação de Portugal. Não fazem parte da primeira fase de vacinação porque não estão na chamada linha da frente. Mas todos os dias saem de casa cientes de que estão nas mãos da sorte. O Observador foi conhecê-los e tentar perceber porque é que não quiseram faltar à chamada.

“Muitos dos meus pacientes não têm visitas durante meses”

Elisabete trocou o dia de folga pelo trabalho de vacinar os colegas a quem foi dada prioridade na vacinação

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Elisabete, 48 anos, enfermeira da unidade de queimados

Na unidade de queimados do Hospital de São José, os doentes estão há meses sem visitas. Os procedimentos mantêm-se, com pandemia ou sem pandemia, já que o elevado nível de infeção exige cuidados redobrados. O que muda é mesmo o total isolamento a que passaram a estar sujeitos. É aí que entra Elisabete. “O que me tem custado mais é o distanciamento familiar dos doentes. Não puderem ter visitas da família ou de pessoas próximas durante meses, num momento tão difícil como o internamento”, conta a enfermeira do Porto, que está há 18 anos naquela unidade e decidiu passar a folga a trabalhar. Ou, neste caso, a vacinar muitos dos seus colegas.

Para combater essa falta de proximidade, que afetou milhões de pessoas em todo o mundo, mas mais ainda quem teve de passar longos períodos de tempo dentro de um hospital, o Centro Hospitalar Lisboa Central criou o projeto “mais próximo de ti” em novembro passado: médicos e enfermeiros ajudaram a montar uma videoconferência para aproximar as famílias dos doentes. Mas, antes, Elisabete já o tinha feito por conta própria. “Cheguei a fazer essas videoconferências com alguns doentes porque é muito importante. Acaba por se criar uma relação com eles. E agora ainda sinto mais esse dever”, diz a enfermeira de 45 anos, que está na profissão desde 1996.

O domingo seria para estar com o núcleo familiar, de quem nunca esteve longe durante estes meses, mas a causa falou mais alto. Elisabete recebeu um pedido da supervisora para estar presente neste dia 27 de dezembro, o primeiro dia da vacinação contra a Covid-19, e não hesitou — mesmo sabendo que não vai ser uma das primeiras a ser vacinada, algo que não a preocupa de todo. “Não faço parte do primeiro grupo, só do segundo. Mas, quando for vacinada, nada vai mudar. É preciso manter os mesmos cuidados”, lembra, até porque a imunização só chega sete dias depois da segunda dose ser administrada. Enquanto terminava a curta conversa com o Observador, já mais colegas se posicionavam para serem vacinados. A sua vez há de chegar, por agora dedica-se à missão de dar esperança aos outros. Seja através da vacina, seja através de videochamadas. Depois, volta à unidade de queimados, onde ainda não houve nenhum caso de Covid-19, mas onde o isolamento é exatamente o mesmo, ou pior.

“Vou ficar aqui até à hora que for preciso”

João Luís quis contribuir para a mega operação montada no São José

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

João Luís, 55 anos, enfermeiro de neurocirurgia

Vive sozinho, é divorciado, e, este domingo, tal como a enfermeira Elisabete, também estava de folga. Costuma fazer voluntariado e, talvez por isso, aceitou de imediato o pedido para ajudar. “Sempre que posso, vou. Não tenho família, não sou diferente dos outros nem tenho obrigações que me impedissem de estar aqui. Vou ficar aqui até à hora que for preciso. Isto aconteceu, mas dei o meu contributo”, diz logo nos primeiros dedos de conversa com o Observador.

Também não está dentro do primeiro grupo de vacinação nem vai alterar nada na sua vida assim que for vacinado. Acredita que a pandemia ainda está longe de desaparecer, mas este primeiro dia de vacinação dá forças para o que vem a seguir. “Não nos podemos entusiasmar muito, mas temos de alimentar a esperança, o que não significa descuidar as medidas sanitárias. Não vai acabar já, mas vai acabar um dia”, diz o enfermeiro que está há cerca de 20 anos na área da neurocirurgia, trabalhando na enfermaria, numa das alas mais próximas do local onde decorreu o plano de vacinação daquele hospital.

Onde trabalha, o SARS-CoV-2 trouxe um problema diferente do que ocorreu na unidade de queimados: muitos dos pacientes com lesões neurológicas não conseguem cumprir as medidas sanitárias, como o distanciamento social, o uso de máscara, ou o impedimento de dar/receber um carinho a um familiar. Outros chegam mesmo a não perceber a situação que estamos a viver, por terem um determinado grau de confusão, trauma, e não conseguirem, por isso, organizar o pensamento. “Este ano tivemos um caso de um jovem que sofreu um acidente de viação e acabou num estado de coma. Quando começou a acordar, não fazia ideia de que havia pandemia, nem sequer sabia onde estava. Achámos que era importante que os pais o viessem ver, porque é uma relação insubstituível. Por mais que tentemos, não somos o pai e a mãe dos doentes”, afirma.

A opção foi tentar facilitar essas visitas dos pais duas a três vezes por semana, o que acabou por ser importante para o paciente. “Conseguimos que tivesse esse relacionamento, o que nos deu um certo orgulho, mesmo ‘violando’ as regras de forma controlada”, finaliza. Com o passar dos meses, a unidade onde trabalha conseguiu organizar-se e entrar no ritmo deste mundo novo. Já o enfermeiro João Luís, parece estar igualmente bem treinado e bem disposto: vai ficar até que o mandem embora, e nem parece acusar cansaço.

“Cheguei a instalar um termoacumulador na garagem para tomar banho”

Tiago Braga sabe que, apesar da vacina, os próximos meses vão continuar a exigir "cautela"

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Tiago Braga, 42 anos, enfermeiro especialista na área da reabilitação na unidade cerebro-vascular

Tiago trabalha nesta unidade desde 2006 e é um dos que também decidiram ocupar este domingo a vacinar colegas, mesmo ciente dos riscos que continua a correr todos os dias. “Há sempre receio de sermos contaminados ou de contaminar. Tenho quatro filhos pequenos, tive de lhes explicar o que vinha fazer. Ficaram contentes porque perceberam que era um dia importante. Até porque vivem muito a pandemia também, com medo de que o pai e a mãe, que também é enfermeira, sejam infetados”, conta.

Por causa desse receio, Tiago Braga tomou algumas medidas extraordinárias para mudar as rotinas e garantir a segurança da família. Chegou mesmo a fazer algumas alterações à garagem para poder tomar banho antes de entrar em casa. “Deixei de usar transportes públicos, descalçava-me antes de entrar em casa, trocava de roupa e cheguei a instalar um termoacumulador na garagem para poder tomar banho antes de entrar. Uma série de coisas para chegar em segurança”, descreve.

Os doentes que trata costumam chegar pela via verde AVC: diretamente da rua, sem se saber a sua situação de infeção. Portanto, o teste de diagnóstico à Covid-19 só costuma vir depois, porque é necessário executar uma série de medidas essenciais, já que “morrem muitos neurónios por minuto porque o cérebro não está a receber sangue”. Por isso, já aconteceu ter de reencaminhar o paciente para a ala do novo coronavírus, higienizar a sala de tratamento e proteger os outros doentes com AVC. “Há doentes que se soube depois que estavam infetados. Foi preciso montar um circuito logo desde início. Mas nunca estive infetado, tive essa sorte”, diz, sublinhando que muitos colegas seus já não tiveram a mesma sorte.

Outra das situações “dramáticas” que aponta é o facto de, entre fevereiro e março, muitos dos doentes AVC não terem recorrido aos serviços de urgência. “Não vinham ao hospital com medo, mas agora os números e a atividade estão iguais aos que estavam antes da pandemia”, diz. Este domingo, também não será um dos vacinados. Está cá para ajudar. Aliás, para vacinar. Os dias seguintes, esses, vão ser sempre “com cautela”. A esperança da vacina permite relaxar.

“Haverá mais Natais”

Nélia Feijão não passou o Natal como é habitual, para proteger os familiares

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Nélia Feijão, 44 anos, assistente técnica

Antes de qualquer profissional de saúde tomar a vacina, é preciso fazer o registo de acompanhamento e preencher um inquérito de 12 perguntas na triagem. Quem trata dessa secção pode não estar na linha da frente nem vestir uma bata branca, mas, no primeiro dia desta mega operação de saúde, nada seria sem eles. Nélia é assistente técnica de consulta externa no Centro Hospitalar de Lisboa Central desde 2009 e “aceitou imediatamente” o pedido para ajudar na burocracia necessária. “Quando soube deste dia histórico aceitei vir imediatamente. Não sei quando vou ser vacinada, porque não faço parte do grupo de risco. Mas não me sinto inferiorizada. Todos nós temos a nossa função. O fundamental é que os mais expostos ao vírus estejam protegidos”, afirma.

O que foi fazendo ao longo do dia desde as 10 da manhã não difere muito do seu trabalho habitual: sentada ao computador, trata das consultas de acompanhamento, do registo clínico, o agendamento da segunda dose e dos horários em que será tomada. Tudo feito “sem stress”, ainda que, da parte da manhã, se tenha registado alguma ansiedade. “Não se sabia como ia correr, havia dúvidas, claro, mas os profissionais de saúde estavam preparados para o que ia acontecer”, diz. Quanto à parte da tarde, além do enorme entusiasmo que se sentia na sala de espera, um pouco distante da zona onde Nélia Feijão estava a trabalhar, a paz foi reinando. Vai estar a trabalhar até dia 30 de dezembro e, este domingo, podia ter tido o merecido descanso. Mas não, ficará até ao fim.

Ainda que faça parte de uma área bem protegida contra o novo coronavírus, a assistente técnica adaptou-se “naturalmente” a todas as medidas sanitárias necessárias logo desde o início. E mesmo confessando que este ano não foi passar o Natal com os pais — que estão fora de Lisboa — também não revela qualquer tipo de tristeza ou mágoa. O pragmatismo fala mais alto, porque a pandemia assim o exige. “A minha família teve de aceitar, até porque a minha mãe é transplantada, ou seja, fiz isto pela proteção deles. Haverá mais Natais.”

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