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Ainda bem — e suspiramos de alívio — que MEC fala dos portugueses e não deste ou daquele português concreto que, coitado, cairia fulminado ao ver-se retratado com tanta exatidão
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Ainda bem — e suspiramos de alívio — que MEC fala dos portugueses e não deste ou daquele português concreto que, coitado, cairia fulminado ao ver-se retratado com tanta exatidão

Ainda bem — e suspiramos de alívio — que MEC fala dos portugueses e não deste ou daquele português concreto que, coitado, cairia fulminado ao ver-se retratado com tanta exatidão

Miguel Esteves Cardoso: demasiado perigoso para ser vaca sagrada

Homenageado e entrevistado na Escritaria, mostrou que o duende que escreveu crónicas como as de "A Causa das Coisas" ainda vive dentro dele, enquanto nos distrai com elogios à beleza e ao medronho.

A dado momento da entrevista conduzida pelo crítico João Pedro George no Museu Municipal de Penafiel, no que foi o ponto alto do festival Escritaria que o homenageou, Miguel Esteves Cardoso (MEC) confessou perante uma plateia antecipadamente rendida que, daqui a muitos anos, gostaria de ir para o Panteão Nacional. Mas primeiro queria saber quem é que está lá. Afinal, as companhias são importantes. Pelo andar da carruagem – Grande Prémio da Crónica da APE este ano, homenageado no Escritaria – MEC corre o risco de ir parar ao Panteão ainda em vida. O primeiro português digno de tal honra.

O que seria também uma tremenda injustiça porque, ontem, na hora e meia que durou a entrevista, o cronista que nos últimos anos exibiu, nas crónicas, uma espécie de misticismo bucólico e semi-contemplativo, dedicado ao louvor das maçãs de Colares, dos pêssegos da Praia das Maçãs e dos luares de Seteais (esta era de Tomás de Alencar, perdão), deu uma prova de vida e ofereceu ao público penafidelense um vislumbre do MEC de antigamente: pensamento ágil, humor explosivo, palavras certeiras. Talvez o duende traquinas que escreveu as crónicas reunidas em livros como A Causa das Coisas ainda viva dentro dele e continue a observar-nos, cruel e pacientemente, enquanto nos distrai com o elogio à beleza e às propriedades do medronho.

Mas se ainda é cedo para planos de realojamento de MEC no Panteão – o diabo seja cego, surdo e mudo – é inegável que está em curso um processo secular de canonização do cronista ou, o que seria dramático e, presume-se, traumático, um processo de bovino-sacralização, aquele processo através do qual uma alta figura da cultura nacional se transforma numa vaca sagrada, intocável e consensualmente elogiada. Seria um destino inglório e irónico para um homem que passou uma parte significativa da carreira a esvaziar, com doses iguais de perícia e perfídia, os balões que os portugueses têm a tendência megalómana de encher muito para além da sua capacidade pulmonar e intelectual.

No seu mais cáustico, corrosivo e implacável, MEC mete medo. Ainda mete medo. Tem superpoderes como a visão raio-x que lhe permite ver através da alma lusitana, vasculhar o nosso interior e revelar-nos numa total transparência e nudez.

E se alguém conhece, por experiência própria, os perigos do consenso é Esteves Cardoso. Porque, ali por volta do final da década de 80, início dos anos 90, ele era, a par de Herman José, uma dessas raras unanimidades nacionais, alguém cujo génio e ousadia lhe concedia imunidade diplomática para retratar com humor, acutilância e moderada ternura o pior do país e dos seus compatriotas. Depois acabou-se o estado de graça, o que em Portugal quase sempre significa uma passagem direta para o estado de desgraça e o nascer daquela ideia, que a certa altura também assombrou Herman, de que o MEC já não era o MEC, que o melhor já passara, num misto distorcido de saudosismo e idealização em que a desmesura do elogio ao que já não existe serve apenas para enaltecer o (pouco meritório) mérito de termos sido testemunhas desse período áureo e irrepetível.

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Não é de estranhar que, questionado pelo entrevistador sobre as razões do sucesso de A Causa das Coisas, um livro que, tantos anos depois, continua a ser reimpresso, Esteves Cardoso tenha preferido falar dos seus fracassos, dizendo, com algum exagero, que a sua vida “tem sido uma série de grandes fracassos”, referindo os jornais que acabaram, as revistas que foram ao ar, as candidaturas ao Parlamento Europeu que não culminaram em Estrasburgo e terminando com a proclamação de que os fracassos são a melhor desculpa para se mudar de vida. E talvez sejam. Mas o que está implícito neste elogio do fracasso é o alerta para os perigos do sucesso, da facilidade com que nos acomodamos às águas tépidas dos elogios e de quão traiçoeiras estas podem ser.

João Pedro George — elogiado pelo próprio MEC como um “tomba-gigantes” — conduziu a entrevista com a gratidão devota de uma irmã das Carmelitas Descalças, feliz por estar a salvo da pena tão letal

Na mesma pergunta, João Pedro George pôs a hipótese de o enorme sucesso de A Causa das Coisas se dever ao facto de os portugueses que o leram se sentirem lisonjeados e especiais pela forma como tinham sido retratados. MEC riu-se. Elogios aos portugueses não são muitos. Eis alguns exemplos:

“Agora que Portugal faz parte da Comunidade Europeia, abrem-se novas e excitantes perspetivas para uma indústria nacional de peso: a nossa parolice.”

“Os anacronismos despertam a ternura dos portugueses, povo de quem tenho dito tão mal, mas que prezo e respeito também.”

“O português é uma criatura maravilhosa – assim como fala, mas não ouve; escreve, mas não lê.”

“A maledicência é, em Portugal, um dos pilares da nossa cultura. Dum modo geral diz-se muito pior do que se pensa. Só um português pode realmente amar alguém e, ao mesmo tempo, dizer dele as coisas mais terríveis, quando ele não está presente.”

“Nenhum outro povo diz tão mal de si mesmo como os portugueses e se sente ao mesmo tempo tão absolutamente ilibado do crime de ser português enquanto o diz.”

Estes exemplos talvez expliquem o sucesso perene de A Causa das Coisas e do estilo de Miguel Esteves Cardoso. Se falar mal do país e dos portugueses é um desporto nacional, poucos foram aqueles que o conseguiram elevar ao estatuto de arte. E menos foram aqueles que, ao fazê-lo, confirmaram a sua absoluta pertença à comunidade. MEC é um de nós porque nos critica e toleramos – melhor, reverenciamos – as críticas porque, no fundo, reconhecemos que ele é muito melhor do que nós: parafraseando o próprio MEC, a merda é essa. No seu mais cáustico, corrosivo e implacável, MEC mete medo. Ainda mete medo. Tem superpoderes como a visão raio-x que lhe permite ver através da alma lusitana, vasculhar o nosso interior e revelar-nos numa total transparência e nudez.

Podemos aproximar-nos dele protegidos por uma armadura de cinismo, mas, no nosso íntimo, temos certeza de que ele vê as cuecas sujas da nossa alma, as meias rotas (e ainda por cima brancas) do nosso espírito, a caspa mental que polvilha os nossos ombros. Portanto, ainda bem – e suspiramos de alívio – que ele fala dos portugueses e não deste ou daquele português concreto que, coitado, cairia fulminado ao ver-se retratado com tanta exatidão. E aqui talvez resida outra explicação da popularidade e do consenso que o envolveu e, em certa medida, ainda envolve. É que, com aquelas armas, ele podia ser mesquinho e mau e esventrar vizinhos e espezinhar as criaturinhas que lhe apetecesse, como um Deus omnipotente – e não o faz.

Nas crónicas já não dá aquelas punhaladas ternurentas, tão duras que quase nos matavam, tão verdadeiras que quase nos salvaram. Agora convida-nos para um chá de tília, deixa o frasco de veneno à vista, enquanto observa, divertido, a nossa boquinha afetada a sorver cada golo como quem saboreia frases inanes de auto-ajuda em posts do Instagram.

Fala desse português vago que somos todos, incluindo ele, e não é ninguém. E essa magnanimidade de uma inteligência superior não só nos comove como nos torna mais agradecidos, quase servis, gratos por ele ser um dos nossos. Até João Pedro George – elogiado pelo próprio MEC como um “tomba-gigantes”, o general sem medo das letras lusas – conduziu a entrevista com a gratidão devota de uma irmã das Carmelitas Descalças, também ele feliz por estar a salvo da pena tão letal e tão misericordiosa de Esteves Cardoso (a noite era de homenagem, bem sei, mas MEC mete medo, essa é que é essa). Foi como uma entrevista feita ao Diabo por alguém cujo maior sonho é trabalhar nos círculos do Inferno.

Por muitas, e merecidas, homenagens que lhe façam, a verdade é que Miguel Esteves Cardoso continua a ser perigoso. As crónicas dos últimos anos – a serena transformação de antropólogo amador em meteorologista amável, advogado das coisas boas e belas da vida, um Alberto Caeiro guardador de nuvens e recolector de medronhos – quase nos fizeram esquecer isso. Não é perigoso como um psicopata. É perigoso como uma arma carregada numa mesa de cabeceira, como um copo de veneno lá em cima do piano. Nas crónicas já não dá aquelas punhaladas ternurentas, tão duras que quase nos matavam, tão verdadeiras que quase nos salvaram. Agora convida-nos para um chá de tília, deixa o frasco de veneno à vista, enquanto observa, divertido, a nossa boquinha afetada a sorver cada golo como quem saboreia frases inanes de auto-ajuda em posts do Instagram ao mesmo tempo que imagina se ele terá sido capaz de pôr umas gotinhas de arsénico na bebida.

Felizmente ainda não chegou a hora de fazer de MEC uma vaca sagrada. É demasiado perigoso para isso.

 
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