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Miguel Loureiro chegou à direção do São Luiz Teatro Municipal a 1 de junho
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Miguel Loureiro chegou à direção do São Luiz Teatro Municipal a 1 de junho

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Miguel Loureiro chegou à direção do São Luiz Teatro Municipal a 1 de junho

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Miguel Loureiro, novo diretor do São Luiz: "O teatro devia ser um sítio de festa, de vinho, de rosas e de poesia"

Ator e encenador é o primeiro artista no ativo à frente do São Luiz, teatro municipal lisboeta. Em entrevista, fala de uma "continuidade" na missão da sua antecessora, mas desvenda mudanças.

Está em funções desde 1 de junho, mas só quis dar entrevistas às portas da rentrée. Ator e encenador com um currículo extenso e premiado, Miguel Loureiro, 53 anos, é o atual diretor do São Luiz Teatro Municipal, em Lisboa, sucedendo a Aida Tavares, que esteve no cargo oito anos.

Em entrevista ao Observador, a poucos dias de inaugurar a temporada, o novo diretor do teatro municipal lisboeta comenta a sua chegada ao lugar — por nomeação direta da EGEAC, a empresa municipal responsável pelos equipamentos culturais de Lisboa — e anuncia detalhes da sua visão para a sala histórica do Chiado. Quer alargar as carreiras dos espetáculos, levar o São Luiz para a rua e para o foyer. “É importante, a dimensão recreativa social do foyer“, sublinha.

Quer também tirar a “hegemonia do teatro” e dar palco à dança, à música clássica, ao jazz, ao pensamento. “Interessa-me muito a noção deste teatro como palco municipal, e não tanto como teatro autoral de um certo tipo de repertório”, diz. Nos próximos três anos, Miguel Loureiro quer fazer do São Luiz uma “festa”.

Está no cargo há três meses. Já conhece os cantos à casa?
Já conheço, já conhecia porque tenho prática de artista aqui nesta casa que sempre me recebeu muito bem, primeiro com o José Luís Ferreira e depois com a Aida Tavares. Já conhecia a equipa toda pelo nome. Havia aspetos técnicos e bastidores que não conhecia e passei a conhecer, mas já estou à vontade. Posso-me perder aqui no escuro [risos].

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Foi nomeado pela EGEAC, empresa municipal de gestão de equipamentos e animação cultural. Porque acha que foi escolhido?
Não faço a mínima ideia. Talvez por causa do percurso. Devem ter pensado em várias pessoas. Foi-me pedido uma reunião, foi-me posta a situação e aceitei.

Como acha que a sua escolha foi recebida?
Penso que foi recebida com razoável apaziguamento. Embora, claro, nós vamos criando contrariedades em algumas pessoas. Temos anticorpos, de certeza, em alguns setores.

Como acha que foi recebida pelo setor artístico? 
Penso que fui recebido bem. Na comunidade artística, ao nível do teatro, conheço toda a gente. O que terá sido recebido com mais reserva não chegou a mim, mas também poderia chegar, não tenho nenhum problema com isso. Dou-me bem com a questão da adversidade, com a crítica, com opiniões segundas, terceiras e quartas. Quando se é encenador e se trabalha há muito tempo com grupos de pessoas, ouve-se de tudo. Depois de estreada uma peça, ouve-se de tudo: que devemos pertencer a este grupo secreto, que estamos ligados a isto e àquilo, que pertencemos a este lobby. Como encenador, já ouço isto. É saudável que haja opiniões adversas, mas não faço ideia do que as move.

Com uma carreira praticamente sem interrupções desde 1994 enquanto ator e encenador, Miguel Loureiro está na direção artística de um teatro pela primeira vez

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

A última nomeação da sua antecessora, Aida Tavares, aconteceu com alguma contestação, uma vez que não obedeceu a um concurso público. Porque acha que a sua nomeação não teve contestação semelhante?
Lembro-me que a questão foi que houve um concurso para a direção artística, mas, de certa forma, o concurso foi levado até ao fim, mas depois os resultados não foram tidos em conta e a nomeação da Aida surge a partir dessa situação. Penso que a contestação foi mais sobre a questão de um concurso que não foi levado até às consequências. Não sei porquê também. Não acho que tenha a ver com a personalidade.

Na sua ótica, o que faz sentido: a existência de concursos ou nomeações diretas? 
Não sei. Tenho visto alguns concursos… No Teatro Nacional está lá nomeado o Pedro Penim e penso que ele está a fazer um excelente trabalho. O Tiago Rodrigues fez, se calhar, o melhor trabalho possível à frente de um equipamento e foi convidado. Se pensarmos no Ricardo Pais, ou no Jorge Salaviza, são pessoas convidadas e nada foi por concurso. Por outro lado, tivemos pessoas que foram escolhidas, mesmo noutras Câmaras e teatros municipais, por concurso, e os alcances não foram assim tão espetaculares ou tão diferentes, na maior parte das vezes até ficaram aquém. Num sítio como o São Luiz, em sítios emblemáticos, como um Teatro Nacional, vejo com bons olhos as duas. Tem a ver com a vontade política de quem decide isso. Não vejo mal a questão do concurso. É preciso dar também uma participação plena, aberta a toda a comunidade. Mas depois… tem outros contratempos. Em alguns casos, a minha resposta seria por concurso, em outros casos seria por escolha, com base no currículo, naquilo que a pessoa tem feito na área para a qual é chamada, neste caso, a direção de um teatro.

Pela primeira vez, a direção artística do São Luiz é assumida por um artista no ativo. Que impacto tem esse fator para programar um teatro como este?
Estou a falar agora para uma comunidade, aqui em Lisboa, para a cidade primeiro, depois para o país. O São Luiz tem essa implantação, não só a nível de cidade, mas também a nível nacional e mesmo a nível internacional. Estou à frente de uma casa com cerca de 40 colaboradores, trabalhadores, estou inserido na EGEAC, que tem cerca de 400 colegas e, portanto, tenho que ter essa noção. Há uma responsabilização no discurso que é emitido, nas decisões que são tomadas, porque não podem obedecer a impulsos e a paixões. Numa altura em que tudo é submetido a uma espécie de sentimentalismo, desde o discurso político, em que toda a gente acha tudo, acho importante haver um certo racionalismo outra vez. Saber que estou numa casa que tem uma história, que interessa dar continuidade. Não venho para fazer nenhuma rutura, venho para dar continuidade ao que a Aida [Tavares] fez, potenciando outras coisas que acho que podem ir mais longe.

Que coisas são essas? Em que divergem?
A Aida esteve aqui à frente oito anos, portanto, o tecido cultural está varrido, não vale a pena dizer “agora eu vou trabalhar com outros artistas”. Quais? Os artistas são limitados e os discursos artísticos também. Vou trabalhar com esse magma, com esse meio com que a Aida também trabalhava. Tem a ver com a linha dos projetos que escolherei. Como sou ator e encenador, também converso com atores e encenadores. Podia só dizer que não, como muitas vezes penso que faria a Aida e os outros diretores, mas eu proponho: “Olha, conheço esse autor, já li isso, porque é que não fazes este texto que tem mais a ver com as preocupações com que estás neste momento?” ou “acho que [isto] vai fazer mais caixa de eco na realidade política ou social do que se está a passar lá fora”. É um diálogo e isso é o que me dá prazer enquanto diretor artístico. Não estou aqui para fazer uma agenda, nem um mapa, não me interessa isso. Nem por acaso do prestígio do cargo, isso muito menos me interessa. Para ser diretor artístico de São Luiz interrompi o meu próprio percurso, que quase não para desde que comecei, em 1994. São três anos em que assumi o compromisso de estar aqui à frente, a gerir estes diálogos, que acho que são o primeiro passo artístico de um projeto que artisticamente só se completa com a apresentação ao público.

A próxima temporada foi programada ainda por Aida Tavares. Quando é que se vai começar a perceber estes diálogos por si encetados?
Posso só avançar já três exemplos para 2024. Uma coisa que me interessa é diversificar, tirar um bocadinho a hegemonia do teatro e dar também à dança e à música clássica, ao jazz, ao pensamento, a outras áreas. Interessa-me muito a noção deste teatro como palco municipal, e não tanto como teatro autoral de um certo tipo de repertório, e muito menos como se fosse uma sucursal do Teatro Nacional. Apesar de vir do teatro, não é essa a minha ideia. [O São Luiz] é uma montra do que melhor se faz na cidade, no país, e eventualmente com projetos internacionais também, que isso vai continuar.

É simbólico a programação arrancar com música e não com teatro?
Tem a ver com uma estratégia de ter na instituição novamente pequenos acolhimentos no final das estreias, os chamados beberetes, para as pessoas ficarem. É importante criar local, não ser só um calendário, o São Luiz ser quase um festival. E alargar a carreira dos espetáculos, um pouco, para as três ou quatro semanas.

"Interessa-me muito a noção deste teatro como palco municipal e não tanto como teatro autoral de um certo tipo de repertório, e muito menos como se fosse uma sucursal do Teatro Nacional."

É um facto que há espetáculos com carreiras muito curtas. Que impacto e implicações tem na gestão do teatro querer alargá-las: mais custos?
Implica uma série de coisas, entre elas a capacidade apelativa do projeto, para termos as salas confortáveis. Não interessa alargar para três, quatro semanas numa sala de 600 lugares e depois ter uma semana às moscas. A verdade é que, muitas vezes, mesmo com duas semanas temos que fazer um esforço para ter público. Não vale a pena estar a abrir mais uma semana, se essas taxas de ocupação não estão garantidas, quer seja pela própria natureza do projeto, quer seja por uma má escolha minha, em termos de direção artística. É isso que tem que ser avaliado. Há projetos, como do Ricardo Neves-Neves ou do Victor Hugo Pontes, que aguentarão muito bem quatro semanas. Mas há outros projetos que não. Nas peças de teatro que serão programadas vamos tentar dilatar ao máximo a presença. Até porque um espetáculo de teatro precisa disso, ao contrário de dança. Um espetáculo de teatro, normalmente, até nas companhias independentes, é começado a falar a partir da terceira semana, “olha, o espetáculo é bom, vai lá”. É o passa-a-palavra. O teatro precisa desse tempo de maturação.

Essa é uma questão premente na cena teatral em Lisboa, enquanto se espera pelo passa-a-palavra, as seis sessões já estão esgotadas.
É uma coisa de grandes auditórios, é sempre assim na questão teatral, infelizmente. O [Teatro Nacional] São Carlos em 2024 vai fechar para obras, o [Teatro Nacional] D. Maria II está em digressão, há uma maior pressão para apresentação. Não tenho sala para todos os artistas que gostava de apresentar aqui. Negociei com eles a apresentação num ano posterior, mas depois não coincide com a agenda deles, os interesses vão mudando. Os artistas de teatro trabalham sobre o imediato, com preocupações de algo que se passa agora. Se as condições da realidade mudam, é natural que eles também não aceitem mais para a frente.

Este ano não tenho mesmo como programar equipas e logística de sala. Já estou nos limites, a equipa aqui do teatro não pode ficar extenuada. É preciso um acordo, porque é essencial ter uma boa equipa, cada vez mais profissional, de receber os artistas, da dimensão internacional à muito, muito local. É essencial ter um bom ambiente de equipa para as coisas funcionarem bem, não é só pela pertinência artística dos projetos. A casa tem que ser uma casa feliz. Por isso quero alargar os beberetes, quero fazer encontros, para as pessoas se habituarem a ver o São Luiz como um local e não apenas como um cartaz. Tem que ser um local novamente. O teatro sempre foi isso, as pessoas em tempos de insegurança, mesmo em pós-pandemia, vão [ao teatro] para voltarem a encontrar-se. Não têm de ser todas avisadas artisticamente sobre o que se passa no teatro, ou na dança, ou nas áreas artísticas. Às vezes vêm só saber do amigo que sabem que vão encontrar neste sítio, porque ambos partilham o mesmo gosto de espetáculo, por exemplo. Isso é importante, a dimensão recreativa social do foyer. Eu chamo-lhe “a política do foyer”, é muito importante.

Mencionou o encerramento temporário do TNDMII e do TNSC. Ter dois equipamentos tão próximos fechados cria uma expectativa na receita de bilheteira do São Luiz?
Na receita de bilheteira não sei, mas sei na diversidade de programação, de propostas. O Teatro São Carlos é um teatro lírico e tenho a ideia de fazer aqui ópera de câmara, não o repertório romântico neo-clássico do São Carlos, isso é impossível. Aqui temos condições para um outro tipo de ópera, ópera do século XX, de câmara, com outras situações. Vamos ter ensembles de música de câmara nas várias salas que temos.

Voltando à programação, o que pode antecipar do que são os seus gestos já em 2024?
Todos os anos vou ter um foco dedicado a um maestro, em 2024 será o Foco Martins Sousa Tavares, com quatro ou cinco momentos grandes ao longo do ano. Vou ter um ciclo grande de pensamento, conferências com pensadores nacionais e internacionais, uma por mês, a começar em janeiro e até dezembro. E nos meses de verão, coincidindo com as festas de Lisboa, vou abrir um palco para a rua, ali no Largo do Picadeiro, entre os dois teatros, e ter um palco para duos, trios e quartetos de jazz, aos fins de tarde. Vai chamar-se Jazz no Picadeiro, com curadoria do João Lopes Pereira.

Será a quarta sala do São Luiz?
A quarta sala do São Luiz (risos). Também tenho ideias para o foyer de instalações plásticas ligadas as outras disciplinas do teatro, a iluminação, a cenografia…

Miguel Loureiro na sala Luís Miguel Cintra, no São Luiz. É uma das maiores salas de teatro em Lisboa, com capacidade de sentar até 690 pessoas

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Entrou em funções a 1 de junho, pouco mais de dois meses depois de ter estreado neste teatro uma encenação da ópera de Philip Glass “In the Penal Colony”. Aqui dirigiu também este ano “Um Rufia nas Escadas”, de Joe Orton, uma produção da companhia dois. Durante estes três anos de mandato não poderá encenar no São Luiz, uma vez que isso não é permitido nos teatros municipais da cidade — medida distinta da aplicada nos teatros nacionais. Qual a sua opinião sobre esta política?
Com o volume de trabalho que tenho aqui, já me apercebi, não sei se teria esse [tempo]… Preciso de certas condições para poder encenar. Quando estou a encenar [isso] leva-me o dia todo. Agora o dia todo é para o São Luiz, para estes diálogos com os artistas, diálogos com a própria EGEAC, com a estrutura aqui do teatro. É o dia-a-dia da direção de um teatro. Posso encenar fora, não vou é encenar aqui no São Luiz, nem entrar como ator, nem nada. Sobre isso o que é que acho? Acho justo, acho uma medida justa. Não quer dizer que se aplique nos outros teatros, cada um tem a sua política. Aceitei fazer direção artística sabendo disso. A parte criativa também existe na estruturação destas novas rubricas, na conversa do dia-a-dia. Estou a aprender imenso com artistas que admiro. Depois penso vir a copiar tudo quando sair daqui (risos). Na verdade, até comecei a apresentar no São Luiz relativamente tarde, foi em 2009. Não apresento aqui todos os anos, como já ali. Não apresento, não.

Como é que vê o lugar deste teatro no panorama cultural de uma cidade onde existem vários projetos de apresentação teatral: Culturgest, CCB, Teatro Ibérico, TBA… Em que se distingue a missão do São Luiz?
O CCB e a Culturgest são fundações, obedecem a outro tipo [de lógica]. Mesmo aqui dentro da EGEAC, o Teatro do Bairro Alto tem uma programação politicamente mais ativa, mais comprometida, o nível, a visão, neste caso, do Francisco Frazão. Quanto ao LU.CA [Teatro Luís de Camões] falei já com a diretora, a Susana Menezes, e o São Luiz, que tinha serviço educativo, deixará absolutamente de ter, e isso pertence ao LU.CA. Aqui trabalharemos público e escolas do 10º, 11º e 12º ano. Do 9º ano para trás é no LU.CA.

Portanto o plano é não retomar o serviço educativo do São Luiz? Em 2020, houve um manifesto pela manutenção da Programação Mais Novos, o nome do serviço educativo do São Luiz e a então diretora artística, Aida Tavares, garantia que o projeto não ia acabar, apesar de o Mais Novos ter perdido presença na programação nos anos que se seguiram.
Já não existia esse serviço quando entrei. Esse serviço deixou de existir, não sei porquê, mas não vou retomá-lo. Há um acordo entre dois diretores, eu e a Susana, a Susana trabalha os públicos do 9º para baixo, eu trabalho 10º, 11º, e 12º, um público mais adulto.

Não seria proveitoso estabelecer laços mais estreitos com outros teatros, além da ponte que agora anuncia com o LU.CA?
Sou completamente a favor disso. Conheço os outros diretores, não conheço o novo diretor do Rivoli, do Porto. O resto conheço muito bem. Tenho estado em conversações com o Nuno Cardoso [TNSJ]. Com o Pedro Penim também não posso adiantar mais, mas essas conversações… Foi meu colega de conservatório. A história pessoal, quer queiramos ou não, aparece nas nossas vidas. Essa coisa assética não existe, é uma fantasia burocrática.

Haverá uma co-produção entre TNDMII e São Luiz?
Haverá, e haverá, inclusive, a conjugação de esforços para trazer espetáculos caros a nível internacional. Fazemos parte da rede PROSPERO até dezembro, pelo menos. Este ano vamos ter o “Calderón”, do Pasolini, que será lá para abril, maio.

"As pessoas têm de ver o São Luiz como um local e não apenas como um cartaz. Às vezes vêm só saber do amigo que sabem que vão encontrar neste sítio porque ambos partilham o mesmo gosto. Isso é importante: a dimensão recreativa social do foyer. Chamo-lhe a política do foyer."

Enquanto encenador sempre se disse avesso a um teatro de causas em prol de um teatro livre de ideologias. O teatro não deve espelhar as dinâmicas sociais de cada momento?
Isso é a mesma coisa que eu dizer que quero ensinar só projetos arqueológicos, que ainda não foram encontrados. Mesmo que eu os encontre e os encene, haverá sempre ecos da minha vida aqui. Vivo num país semi-mediterrânico, em Lisboa, um dos países mais pobres da Europa, essas coisas… Os jornalistas perguntam-me muito “Então qual é a atualidade desse projeto?”. Ele foi escolhido por mim, é porque me chamou a atenção, sou um contemporâneo seu, portanto, vivo as mesmas condições. Não temos as mesmas condições sociais, económicas, de educação, pode ser que não, mas confie em mim, eu estou vivo, respiro. Escolhi um texto que não conhece, vai dialogar com a atualidade. Isto a propósito do quê?

Perguntava-lhe se o teatro deve ou não espelhar as dinâmicas sociais do momento.
O meu teatro sempre espelhou isso, as minhas dinâmicas sociais são a minha curiosidade sobre a linguagem, a linguagem quanto formulação de realidade, são sobre a mitologia, a mitologia engloba-nos a todos, a mitologia mesmo da personagem, algum discurso metateatral também. Agora, não faço espetáculos sobre o facto de ter nascido numa colónia em Moçambique. O meu espetáculo não tem como tema principal as flutuações de género, muitos dos temas candentes agora e que estão na ordem do dia. E muitos dos espetáculos que eu ultimamente, os de que mais gosto são dentro dessa área, só que eu não… Se há outros que o fazem melhor, que o façam. Não tenho essa apetência. A minha curiosidade vai noutro sentido enquanto encenador e ator.

E enquanto programador e diretor, vai programá-los?
Ah, sim. Não há como não programar, um teatro que não programa hoje… Recebo quase todas as programações de teatros europeus e não existe teatro que não programe essas questões.

Di-lo como uma inevitabilidade.
Porque é a realidade, isso é chão, é adquirido. A partir desta realidade, o que podemos fazer para nos diferenciar? Porque isto é o que toda a gente apresenta em todos os teatros hoje em dia, é só isso. Não tenho respostas para lhe dar, mas faz-me muita aflição estarmos todos idênticos, apresentarmos todos com as mesmas linhas de pensamento, os espetáculos todos dentro do mesmo chapéu de chuva, das mesmas temáticas… Há muitas outras áreas.

O novo diretor artístico herda grande parte da programação de 2023-2024 do teatro municipal da sua antecessora, Aida Tavares

FILIPE AMORIM/OBSERVADOR

Estão todos a apresentar o mesmo, no fundo?
Não é isso que digo. É uma questão geracional. Ultimamente, os grupos que nasceram nos anos 90 e que não tinham tanta essa preocupação foram-se reorganizando para isso. Mas agora o discurso é feito muito entre aquela fronteira entre a performance e a afirmação biográfica, e tudo isso vai dar à vivência agora na comunidade e como é que é essa vivência. Às vezes, mesmo para resolver problemas muito claros, como a eutanásia, isto e aquilo, fazem-se espetáculos sobre a agenda quase parlamentar, muitas vezes. Volto a dizer, dos espetáculos mais interessantes que vi até partem dessa agenda, eu próprio não tenho como fazê-los porque não sei. Não me interessam a nível do que poderá existir cenicamente. Mas isso é como ator e encenador, e é esse discurso que fica comigo. Agora, o meu discurso é de direção artística. E portanto, sim, devo dizer até que o que está desenhado alicerça-se muito nessa linha.

Para 2024?
De 2024 em diante. A questão do posicionamento social, político do teatro, normalmente delego nos artistas, nas propostas que trazem. Claro que estou aqui para coordenar, para não haver descalabro, não é? Não me interessa planear, programar alguém com a mentalidade do século XIX. Essa pessoa sou eu e não estou a apresentar (risos). Estou aqui para dialogar neste sentido. Gosto de dialogar.

No início do ano um protesto interrompeu uma peça no São Luiz com um apelo à representação trans. Junto com o Teatro do Vão, o São Luiz optou por substituir André Patrício por uma atriz trans para a interpretação de Lola. Pergunto-lhe o que achou do momento e se seria tomado a mesma decisão.
Não sei qual seria a minha atitude, não estava cá nessa noite. Não simpatizo com o facto de, a partir de um protesto, substituir-se um ator. Não gostei da forma como foi tratado o ator nessa polémica. Acho que a própria condição de ator também é frágil, como a questão do transexual. Quanto ao protesto, os palcos sempre serviram para isso, os grandes escândalos dão-se também no palco. Pareceu-me, entretanto, um bocadinho organizado demais esse protesto, podia ser mais espontâneo, até mais selvagem, se quisermos, mas, em termos gerais, não achei que tivesse um final muito edificante. O nível de violência projetado nesse protesto… Investiria mais até na criatividade. Mas isso é a forma. Não me posso pôr na posição [de quem protesta], não sofro essa violência ligada à inerência do meu corpo. Ela [Keyla Brasil, a atriz trans que protestou] achou que era legítimo interromper um espetáculo que decorria também legitimamente. O que acho que o encenador depois falhou é que não devia ter alterado as questões, devia assumir a sua posição até ao fim.

"Os teatros ultimamente têm uma postura quase académica, de ensino pela arte, de educação cívica, disto e daquilo. Esquecem-se que também devia ser um sítio um bocadinho mais debochado. O teatro devia ser um sítio de festa, de vinho, de rosas e de poesia."

Falou sobre o fim, gostava de lhe perguntar sobre o princípio. Compreende a crítica de falta de representação?
Essa crítica tem sido formulada, já vem do meio académico americano e passou com grande permeabilidade para o meio académico brasileiro. A Universidade de São Paulo é um caldeirão de todas as novas teorias woke e tudo isso. Até estranhei tardar esse tipo de protestos [cá]. Continuaram depois no Teatro do Bairro… E continuarão. Tal como muitas vezes havia desabafos nos anos 90 de mulheres artistas, de nunca haver papéis para atrizes, ser sempre para os atores. Isso sempre existiu. Tal como a questão étnica de atores que não sejam brancos. Quer dizer, não há como hoje em dia não perceber isso, a realidade é múltipla e diversa, mesmo aqui na cidade. No Chiado, a realidade é outra, já não é igual à dos anos 90, quase já não se ouve falar português.

Tenho uma amiga no Porto e gosto muito de ir à Ribeira. Ela diz-me: “Ainda vais à Ribeira? Deixámos isto para os turistas”. Portanto, temos que nos ir adaptando à realidade, não chocando muito, nem nos violentando, ir até onde conseguimos ir. Gosto disso, sempre gostei da diversidade. Mas diversidade absoluta, de opiniões, mesmo que elas sejam chocantes. Acho que ali o desenlace podia ter sido outro. O protesto estava feito, teria repercussão nos jornais, não precisava de continuar a haver violência. Aí a Keyla Brasil diria “mas eu sofro violência”, como ela disse, “sofremos violência desde sempre”. Certo, mas não concordo que os alvos de violência tenham que ser violentos. Os antigos oprimidos são os novos opressores, muitas vezes. É [preciso] haver aí um equilíbrio. Mas depois também não tinha piada, porque tudo tem que ter esse nível de rutura para ficar inscrito. É incrível que tantos episódios paradigmáticos já se passaram aqui neste teatro, mas toda a gente ainda continua só a falar desse.

Talvez porque chegou aos jornais e foi amplificado nas redes sociais?
Sim, teve a repercussão que teve e é um momento importante. Acho que este episódio da Keyla vai ser revisitado aqui num espetáculo em breve.

Em 2023?
Ainda em 2023, quando se fizer uma revista do ano. A Praga vai fazer uma revista do ano [“Bravo 2023!”, dos Teatro Praga, estreia-se a 13 de dezembro] com os momentos simbólicos do teatro… Não sei, estou a dizer isto, mas não faço ideia, estou a projetar.

Que legado quer deixar no Teatro São Luiz?
Festa, celebração. Não é por causa daquele cliché da pandemia, não tem nada a ver com isso. É que os teatros ultimamente têm uma postura quase académica, de ensino pela arte, de educação cívica, disto e daquilo. Esquecem-se um papel fundamental que vem desde as Bacantes da Grécia, que é que o teatro também devia ser um sítio um bocadinho mais debochado. O teatro devia ser um sítio de festa, de vinho, de rosas e de poesia. E onde as pessoas se encontravam, dançavam, e se apaixonavam nos foyers. Gostava que o São Luiz tivesse também uma estética de foyer.

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