“As circunstâncias mudaram”. É desta forma que Miguel Tiago resume o quadro político que se coloca diante da esquerda e, em particular, do PCP. Mesmo que as próximas eleições legislativas resultem num cenário em que o PS vence mas é minoritário, o ex-deputado comunista garante que o partido não está obrigado a dar a mão aos socialistas só para impedir que a direita chegue ao poder.
O ex-deputado do PCP, que admite voltar ao Parlamento assim o partido o queira, aponta ainda o dedo a Marcelo Rebelo de Sousa, acusando o Presidente de fazer um “apelo constante, apesar de um pouco velado, para que o povo português procure outras soluções” que não passem por alianças à esquerda.
Em entrevista ao Observador, no programa “Vichyssoise”, Miguel Tiago acusa o PS de ter feito um simulacro de negociações com o único propósito de forçar legislativas para tentar conquistar uma hipotética maioria absoluta. “O PS quis ir a eleições desde o primeiro momento”, argumenta o comunista.
[Ouça aqui a Vichyssoise]
É inevitável começarmos pela intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa. Leu nas palavras do Presidente da República, que insistiu nas “divergências inultrapassáveis” à esquerda, uma tentativa de condicionar futuras alianças?
Julgo que desde o início das declarações de Marcelo Rebelo de Sousa, não apenas desta última intervenção, passa por um apelo constante, apesar de um pouco velado, a que o povo português procure outras soluções. Desde logo com a ameaça de eleições perante um chumbo, como quem diz que se este Orçamento chumba não há outra hipótese a dar ao atual Parlamento e é preciso reconfigurá-lo, até ao discurso associado à dissolução e à marcação de eleições.
Marcelo tem tentação de devolver o poder à direita?
Não consigo ver de forma tão líquida, até porque julgo que o que interessa aos grande interesses que estão por trás quer de Marcelo quer do PS, do PSD, do CDS, é mais arredar qualquer tendência de esquerda do Parlamento. Ou seja, reduzir a possibilidade de a esquerda condicionar qualquer governo, do que propriamente qual a cor que compõe o governo.
O Presidente pode estar tão interessado numa maioria do PS como num Governo de direita?
Sim, julgo que o que importa para os grandes interesses é estabilizar um governo que não precisa de negociar à sua esquerda e muito menos com os comunistas. Aqueles que lucram com a situação do país, que exploram os trabalhadores, que pretendem horários desregrados e salários mínimos abaixo do aceitável, todos esses têm como principal objetivo retirar qualquer possibilidade de os comunistas poderem influenciar a vida política nacional. Mesmo com uma correlação de forças em que o PS é maioritário em relação ao PCP houve impacto e foi sempre contra os grandes interesses económicos e a favor dos trabalhadores e dos jovens em geral.
Há quem retire do voto do PCP que os comunistas decidiram voltar às origens e voltar a ser um partido de protesto. O PCP vai deixar definitivamente de negociar com o PS?
O PCP nunca mudou quando negociou, nem mudou agora. Quando se criou aquela solução para dar possibilidade a um Governo minoritário do PS, que não tinha sido a força mais votada, o PCP era o PCP de antes e é agora o mesmo que esteve nessa solução. As circunstâncias é que são radicalmente diferentes.
Portanto não houve mudança na linha política do partido?
Em 2015, o PS não tinha maioria, nem era a força mais votada. Era necessário criar condições para que uma força que não era a mais votada fosse governo. Essas condições tiveram exigências por parte do Presidente da República de então e deram origem à solução que durante quatro anos esteve em vigor. Os dois anos seguintes a isso já são num contexto diferente, em que não há qualquer compromisso de governação. O PS é a força mais votada e não precisa do PCP nem do BE.
Neste Orçamento há medidas como aumento pensões, aumento do salário mínimo, creches gratuitas, que eram exigências do PCP. Como é que o PCP explica aos seus eleitores que nada disso se concretize por decisão do PCP ao chumbar o OE?
Tudo isto se poderia concretizar. O PS poderia ter apresentado outro Orçamento do Estado e não o quis fazer porque quis ir a eleições desde o primeiro momento.
Quis mesmo?
A mim não me restam muitas dúvidas. Basta ouvir a última intervenção de António Costa no debate do Orçamento, que é um apelo descarado à maioria absoluta. Estou até convencido que muitas das propostas que o PS acrescentou à ultima hora, ou que disse à última hora que estava disponível para fazer, já o fez num contexto em que já sabia que não ia haver Orçamento. Portanto, à última disse que afinal até estava disponível já na perspetiva de depois poder dizer que só não se avançou nisso porque não houve Orçamento.
O PS fez propostas que nunca teve intenção de concretizar só para culpar o PCP depois?
Sim. Isto é uma sensação que não posso comprovar, mas se olharmos para o processo e sabendo como funcionam os partidos e os debates entre partidos, como é compreensível que o PS guarde para a última hora essas cedências?
Se daqui a uns meses tivermos em Portugal um governo PS minoritário o PCP assume posição de salvar a maioria de esquerda ou vai deixar que se forme uma maioria à direita?
O PCP não olha ao nome dos partidos, mas às políticas que os partidos praticam. Se o PS quiser governar à direita, como é sua tradição, não vai contar com o PCP. Julgo que pelo trajeto do PCP e o exemplo do PCP está mais do que demonstrado que o PCP nunca abre as portas a nenhuma política de direita, venha ela do PS ou do PSD. A única vez que o PCP abre as portas ao PS para negociar é no contexto que o PS tem de negociar com o PCP para poder ser governo.
O que é que o PS precisa de oferecer o PCP para haver esses entendimentos?
O PS não demonstrou em nenhum momento qualquer abertura para se aproximar nas questões fundamentais.
Mas o que pode fazer num momento pós-eleitoral?
É difícil colocar as coisas nesses termos. O PS, se vier a constituir-se como uma força em maioria relativa, terá de olhar para o Parlamento e perceber que não está em maioria absoluta — coisa que agora não percebeu. Não se coloca tanto do que tem ou não de aceitar. A situação nacional hoje exigia respostas e permitia, por força da folga do défice orçamental decretado pela pandemia, por força do crescimento da economia e dos fundos europeus, dar resposta a exigências que se colocam. Entrando num Orçamento do Estado, a preocupação do PCP vai ser sempre se o Orçamento responde a necessidades prementes ou não.
E numa futura negociação, haverá uma negociação entre o PS e o PCP que possa partir de um patamar superior, já com trabalho feito no anterior OE? Há matérias que já estão fechadas ou terá de se fazer tudo de novo?
Acho que pode estar a haver confusão sobre a forma como este OE foi feito e os anteriores. Nos anteriores a 2019, houve um exame comum e prévio aos orçamentos e depois havia uma conversação inicial. Já não estamos nessa fase. Atualmente, o que existe são apenas conversas entre o PCP e o Governo. Não há uma espécie de entendimento partidário.
O que pode mudar de forma tão estrutural que volte a reaproximar esses dois partidos? O que é que de facto o PS tem de dar, em termos de políticas concretas, para que o PCP volte a acreditar que é possível negociar com PS?
Que sinal é que tem de dar o povo português para obrigar o PS a aceitar propostas de esquerda? Para que o PS se veja numa circunstância em que é obrigado a negociar à esquerda? Julgo que a resposta é evidente. O PS fingiu querer um Orçamento e o PCP, e também o BE e os Verdes, fizeram um conjunto de propostas que não tiveram cabimento nesse Orçamento. Cabe-nos agora enquanto povo dizer: quero o Orçamento que foi chumbado, com aquelas propostas que vieram dos vários partidos. Querendo essas propostas, cabe às pessoas reforçá-las no Parlamento e na nova maioria que vier a ser constituída. Essas propostas irão estar reforçadas, independentemente de quem esteja no poder.
Admitindo que o resultado é um configuração semelhante à de 2019 e o PCP volta a recusar “geringonça”. Isso não seria uma traição ao eleitorado que gostou desta experiência e queria ver o PCP a influenciar as políticas do Governo?
Se o partido mais votado for o PS não há necessidade de reconstituir nenhuma posição comum.
Voltamos ao que tivemos em 2019, com um Orçamento difícil de aprovar…
Se o PS sair reforçado nas próximas eleições, a lição a tirar é que o Orçamento do PS é aquele que o povo quer. Se o PCP sair reforçado, a lição a tirar é que há um reforço daquelas propostas do PCP.
O PCP colocou a questão das leis laborais quando já tinha dito que misturar as questões não era digno e responsável. Isto não é incoerente?
O que o PCP sempre disse foi que para a avaliação do Orçamento conta essencialmente os aspetos contidos no documento. Mas que a avaliação da política global pondera todos os elementos à volta, incluindo os sinais que são dados num conjunto de áreas, nomeadamente na política laboral que é central na vida dos portugueses. Os nosso direitos no trabalho também definem os nossos direitos à família e ao tempo livre.
Qualquer acordo à esquerda que envolva o PCP tem de revisitar as leis laborais alteradas no tempo da troika?
Não estamos sequer a ponderar que haja acordos à esquerda. Para haver confluências elas podem ser pontuais e num projeto específico pode haver confluência, o que é raro porque o PS gosta mais de votar com o PSD, o CDS e com o IL do que com a esquerda. Mas pode haver confluências pontuais que não tenham a ver com um programa de fundo. Agora, em Orçamentos e grandes programas políticos, é claro que terá de haver respostas a questões mais largas. Nos primeiros quatro anos, a questão fundamental era impedir que a troika continuasse a despedaçar o nosso país e que continuasse através do PSD e do CDS. E avaliou-se a situação política e era possível criar uma resposta parlamentar. Ora, já não estamos nessa circunstância. Julgo até que quando PCP assinou a posição comum utilizou a palavra irrepetível. Aquela circunstância era para dar resposta a uma situação muito clara. Agora, colocam-se outras questões que é dar avanço. O PCP tem um programa diferente do programa do PS. Se o PCP se colocar na posição de pôr o PS no poder acima de tudo, em vez do PSD e do CDS, então há um conjunto de propostas do PCP que começam a ser sacrificados só para ter o PS no poder e isso também não é justo, nem é isso que os eleitores querem.
O resultado de João Ferreira em Lisboa traz ânimo ao partido e considera que ele seria um bom sucessor de Jerónimo de Sousa quando for o tempo da mudança de líder — que não sei quando considera que deve ser?
Os resultados da CDU em Lisboa são encorajadores e mostram que é possível, mesmo num contexto muito difícil, fazer um trabalho que convoca os eleitores a reforçar uma força política que à esquerda é a única que cresce. Quanto ao resto, julgo que o trabalho e a capacidade e a intervenção do João Ferreira falam por si, mas não vou expressar opiniões fora dos organismos do partido que é como funcionamos. Acho que há muitos quadros condições para ser secretário-geral do PCP e a forma como o João intervém na vida política fala por si.
Tenciona voltar ao Parlamento ou isso é uma porta que já se fechou?
Nunca fechei a porta a estar na política consoante o que a vida e os projetos políticos a cada momento me permitam. Se houver coincidência ou a possibilidade de conjugar os meus objetivos de vida num determinado momento com a participação política, seja no Parlamento seja em qualquer outro lado, não ponho isso de parte.
Vamos avançar para o segundo segmento da nossa refeição, “Carne ou Peixe”. Quem preferia levar a uma concentração motard em Faro: Paulo Rangel ou Rui Rio?
Eh pá… não posso ir sozinho, não é?
Pode ir com o Miguel Oliveira mas teria de levar à mesma um dos dois…
Então talvez o Rui Rio fosse na mota do Miguel Oliveira.
Quem preferia barrar à porta de uma discoteca. João Oliveira ou João Ferreira?
Essa é ainda mais difícil… acho que barrava o João Oliveira só porque tenho mais confiança com ele para depois explicar que fui obrigado.
Quem convidava para passar fim de semana numa praia da Arrábida: Nuno Melo ou Francisco Rodrigues dos Santos?
Jesus! Fazia tudo para que eles não viesse à Arrábida sequer. Mas trazia aquele que vier a ser o próximo líder do CDS para depois passar aqui nas ruas de Setúbal e ouvir das boas.
Quem mais facilmente convidava para pintar um mural do PCP numa rua de Setúbal: Marcelo Rebelo de Sousa ou Ferro Rodrigues?
Marcelo. Preferia, ao menos ainda me ria um bocado.