Aleksei Mikhailichenko. Aleksei? Essa é boa. Nada disso, é Oleksiy. Diz-se Олексій em ucraniano, só que é Алексей em russo e, pronto, a malta vai atrás sem prestar atenção aos detalhes. Seja como for, é Михайличенко para os dois idiomas. E ainda bem, porque Mikhailichenko é um apelido bem divertido. Ouço-o desde pequeno e é como se fosse o delírio da massa associativa. Mi-kha-i-li-chen-ko. Formidável, a sonoridade. E o futebol do homem? Baaaah, fantástico. Corre-lhe nas veias, o drible fácil mais o drible em velocidade. Encostado à linha, parece uma enguia e ninguém lhe segura. Fora dos relvados, um soviético pouco convencional (embora tímido) e um dos poucos da geração dos anos 80 a triunfar no estrangeiro. No seu currículo, o impressionante registo de sete títulos nacionais consecutivos entre URSS (Dínamo Kiev), Itália (Sampdoria) e Escócia (Rangers), de 1990 a 1996. Antes, em 1988, ouro olímpico (2-1 ao Brasil de Taffarel, André Cruz, Aloísio e Romário) na final de Seul e segundo classificado no Euro (2-0 da Holanda) na final de Munique. Ei-lo, Михайличенко ao telefone.
Bom dia, tudo bem?
Tudo, tudo. E contigo?
O Mikhailichenko é um dos meu fetiches dos 80. Que craque, sempre em grande forma.
Sabes qual foi o melhor ano?
Nem ideia.
1988.
O do Europeu perdido para a Holanda?
Prata nesse Europeu, ouro nos Jogos Olímpicos. E eleito melhor futebolista do ano na URSS.
https://www.youtube.com/watch?v=qVyEN3XDweM
Ouro?
Ya, ganhámos ao Brasil de Taffarel, Careca, Bebeto e Romário. Já viste bem o ataque deles? Careca, Bebeto e Romário.
E vocês?
Lyuty e Tatarchuk.
Quem e quem?
Lyuty era do Dniepr, campeão soviético em 1988, e ainda jogou na Alemanha. Tatarchuk já era internacional AA nessa altura.
Espera lá, o Dniepr foi campeão soviético em 1988. Então e o Dínamo Kiev?
Ficámos em segundo.
Eischhhhh, porquê?
Eles perderam dois jogos, nós quatro.
E foi o teu melhor ano?
Ya, foi. Abri o livro. O Dínamo Kiev sempre foi uma competição louca. E saudável. Aquilo era só craques.
https://www.youtube.com/watch?v=qj2UnhNnokY
Pois, a selecção da URSS era quase toda do Dínamo Kiev.
Isso mesmo. Eu jogava lá e sentira algumas dificuldades para me impor de forma constante. Até que chegou o ano 1988.
Uauuuu, foi mesmo bom.
Joguei o Europeu em Junho e depois os Jogos Olímpicos em Setembro. Sem férias pelo meio. Férias a sério, nada. Uns dias entre as duas competições e está feito. Sabes uma coisa?
Diz.
Não estava minimamente cansado. De verdade. Foi um ano longuíssimo, sim, mas diverti-me como nunca. Imagina o que é chegar à final do Europeu e depois à dos Jogos Olímpicos. O balanço só pode ser positivo. A medalha de ouro comprova-o em absoluto.
Até 1988 jogavas intermitentemente no Dínamo, era?
Como te disse, a competição era louca. De vez em quando, era suplente.
De Lobanovsky?
Valeri, sim. Havia dois jogadores de classe mundial para cada posição. Se te disser alguns nomes, ficas espantado.
Arrisca.
Protasov, Rats, Bessonov, Kuznetsov, Demianenko, Belanov, Litovchenko.
Cheeeeega. Disseste sete jogadores da final do Euro-88.
Ya, certo. E tenho mais ilustres, como Baltacha. E não te digo Blokhin, porque tinha ido jogar para a Áustria.
Com que então, Mikhailichenko a suplente?
Era assim, todos tínhamos de passar pelo banco.
Ah, calhava a todos?
Sem exceções. Temos de mergulhar no ambiente da época e também na cabeça de Valeri.
Era mesmo especial, o Lobanovsky?
Yaaaaaa, claro que sim. Ele mudou a nossa vida, através das suas palavras, das suas acções, dos seus treinos. Ele parava o treino para maltratar o ataque ou corrigir a defesa. Por isso é que as equipas não nos superavam a maior parte das vezes. Conseguíamos sempre a dar volta ao problema, porque estávamos preparados para qualquer contrariedade. Isto, atenção, sem nos retirar magia, criatividade e poder de improvisação.
Sim, o Mikhailihchenko era um dotado.
Ahhhhhh, os outros também eram. Gostava de ter a bola, é verdade. E, com Valeri, aprendi a soltá-la no momento certo. Daí a minha ida para Itália.
Que tal?
Uma vida muito diferente. Não só a nível desportivo, também social. Tinha de ter muito cuidado, porque a comunicação social da URSS não ligava muito aos jogadores, aos treinos e por aí fora. Em Itália, o futebol vivia-se o tempo todo. Era uma loucura, tinha de ter cuidado. Dentro e fora do campo.
Qual era o objectivo?
Quando assinei pela Sampdoria, pediram-me sete, oito golos por ano. O que eles mais queriam era fantasia com a bola.
E?
Fomos campeões italianos pela primeira e única vez.
Pois foi, a grande Samp de Boskov.
Yaaaa, figura. Foi um campeonato sensacional em que ganhámos aos mais fortes, tanto em casa como fora. Ou seja, não foi um campeonato caído do céu, foi ganho com justiça. Acho que só perdemos pontos com a Juventus.
E uma equipa belíssima.
Pagliuca na baliza, Vierchowod no meio, com Cerezzo. Vialli e Mancini lá à frente, que dupla formidável. Joguei com eles a meia-final do Euro-88. E ganhámos 2-0, eheheheh. Curiosamente, também eliminámos a Itália nas meias-finais dos Jogos Olímpicos-88. Até marquei um golo no prolongamento, eheheheheh.
https://www.youtube.com/watch?v=aq1SnVWnR20
Esse jogo do Euro-88 ainda hoje é histórico. Quer dizer, lembro-me de ver esse jogo e de não ver a Itália jogar à bola.
Ahhhhhhhh, a magia de Valeri. Nessa noite, tudo deu certo. Tenho de falar do início do Euro-88. Ninguém acreditava em nós. Na estreia, 1-0 à Holanda. Depois, 1-1 com Irlanda. Para acabar, 3-1 à Inglaterra. Eu até marquei nesse jogo. Quando veio a Itália, já toda a Europa estava a contar connosco. Foi um trabalho notável em duas semanas, de olhar-nos de lado a considerarem-nos favoritos ao título. Com a Itália, o Valeri perguntou-nos se estávamos dispostos a pressioná-los o campo inteiro. Todos os 20 convocados disseram sim. E assim foi. Acabámos com 68% de posse de bola, foi 2-0 mas poderia ter sido três ou quatro.
E, depois, a final?
Éramos melhores que os holandeses. O 1-0 na fase de grupos dá-nos razão. Só que eles marcam um golo do outro mundo pelo Van Basten, enquanto nós atiramos ao poste e ainda falhámos um penálti, ambos pelo Belanov. Foi mérito da Holanda, claro. Mas também sorte. Muita sorte. Outra coisa: a Holanda tinha vedetas internacionais, como Van Bastgen, Gullit e Rijkaard, que nós não tínhamos. E outra coisa.
Conte.
No 1-0 do Gullit, é uma situação de jogo vista e revista por nós. Há um canto, a bola é repelida por nós e eles cruzam para a área. Nos treinos, o Valeri chamava-nos a aten ção para esse tipo de jogadas. Só falharíamos uma em mil. No dia da final, foi essa infíma probabilidade que fez clique. Alguém demorou mais um segundo do que devia a sair para o fora-de-jogo e eles aproveitaram para o golo.
De volta à Sampdoria. Campeão italiano e tal. Porquê a saída para o Rangers nesse Verão?
Porque o contrato era vantajoso, muito vantajoso.
E o futebol escocês era bom para o Mikhailichenko?
Muita gente pensava que o futebol era primitivo, sem ideias nem táctica. Eu também pensava, hã. Quando cheguei lá, percebi o erro dessa linha de pensamento.
Como assim?
Eles são é mais racionais que os outros a pensar o futebol. Se só é preciso dois toques para chegar à baliza, então vamos dar dois toques. Nada de elaborar demasiado. O futebol escocês era assim, a racionalidade em primeiro lugar. Aliás, em segundo.
E em primeiro?
A dedicação. Nunca vi nada assim.
E deu-se bem?
Adorei tudo aquilo. A espontaneidade dos adeptos, a alegria constante no balneário, os jogos vividos a mil à hora. Tudo especial, muito especial. Tenho saudades, imensas. Tanto da Escócia como da Inglaterra, onde ainda tenho uma casa.
Nem uma imperfeição no Rangers?
Só uma.
Conta?
Zero golos de cabeça.
E então?
Sempre me disseram que era um rapaz atlético, com bom jogo de cabeça. E a verdade é que marcava muitos golos de cabeça pelo Dínamo Kiev. Quando cheguei à Escócia, parecia um menino ao pé dos adultos. Em cinco anos de Rangers, nunca marquei de cabeça.