Nem o ex-ministro, nem o ex-secretário de Estado das Infraestruturas avaliaram a legalidade da solução jurídica proposta pela TAP para afastar a administradora Alexandra Reis a meio do mandato, e que resultou na atribuição de uma compensação de meio milhão de euros. Este pagamento foi considerado nulo numa auditoria realizada pela Inspeção-Geral das Finanças (IGF) devido a várias ilegalidades cometidas.
O relatório da auditoria da IGF, divulgado esta semana, só atira na direção da TAP, e em particular da presidente executiva e do chairman, que foram alvo de um despedimento por justa causa. Christine Ourmières-Widener e Manuel Beja vão enfrentar processos de responsabilização financeira (e reintegratória) no Tribunal de Contas por terem tomado uma decisão que, segundo o parecer da IGF, não cumpre os quadros normativos em vários aspetos, configurando ilícitos financeiros.
A nulidade desta decisão implica que Alexandra Reis tenha de devolver a maior parte da compensação que lhe foi paga há cerca de um ano pela TAP, (450 mil euros) ainda de acordo com a IGF, mas o relatório não sinaliza responsabilidades nem para os membros do Governo que deram o aval — neste caso Pedro Nuno Santos e o secretário de Estado, Hugo Mendes, que se demitiram dos cargos, assumindo responsabilidades políticas, mas não outras — nem para os membros dos respetivos gabinetes que acompanharam o processo de negociação e de decisão.
O relatório da auditoria, bem como as respostas do contraditório, referem que a chefe de gabinete de Pedro Nuno Santos, Maria Antónia de Araújo, participou numa reunião por Teams em que foi discutida uma proposta de acordo de revogação com Alexandra Reis, tendo recebido no dia seguinte um mail com a formalização do acordo final, tal como Hugo Mendes.
“Em 01.02.2022 às 18h15 teve lugar uma reunião via Teams com a presença do secretário de Estado das Infraestruturas, Hugo Mendes, a chefe de Gabinete do ministro das Infraestruturas, Maria Araújo, a CEO da TAP e o sócio do escritório de advogados SRS – César Sá Esteves, onde se discutiu os termos e condições constantes na proposta efetuada pela sra. eng. Alexandra Reis.”
“Em 02.02.2022 foi feita uma proposta final, efetuada pela sra. eng. Alexandra Reis enviada via seus advogados para os advogados externos da TAP e foi transmitida ao secretário de Estado das Infraestruturas pela CEO em email datado de 02.02.2022”.
A presença na reunião via plataforma digital é confirmada pela TAP e pela presidente executiva. Na documentação remetida por Christine Ourmières-Widener consta o mail enviado a Hugo Mendes que tem também como destinatária a chefe de gabinete do ex-ministro, facto que aliás é referido no relatório da auditoria da IGF.
Ministério das Infraestruturas diz que chefe de gabinete não é decisor político e que não há evidência de que conhecia mais do que valores atribuídos a Alexandra Reis
Em respostas enviadas ao Observador já depois de publicado este artigo, fonte oficial do Ministério das Infraestruturas sublinha que na informação do relatório de auditoria não existe “evidência do conhecimento destes sobre o teor, em concreto, do clausulado do Acordo que viria ser outorgado.” Refere a mesma fonte que o “e-mail enviado pela CEO da TAP, datado de dia 02/02/2022 (disponível no Anexo 11 do relatório da IGF), verte matérias abordadas na reunião do dia anterior, 01/02/2022. Ou seja, quer na reunião, quer no e-mail apenas foram tratadas informações relativas aos montantes que estavam em consideração para consolidar a quantia indemnizatória final.”
O Ministério das Infraestruturas assinala que o “chefe do gabinete de um membro do Governo não é decisor político nem titular de ação política, exercendo funções de cariz administrativo e operacional, de acordo com o artigo 5.º do DL 11/2022, de 20 de janeiro e conforme vertido no Despacho n.º 10869/2020, publicado em Diário da República II Série a 5 de novembro de 2020, com a nomeação e delegação de competências do então Ministro das Infraestruturas e da Habitação na sua Chefe de Gabinete, Maria Araújo”.
O ex-ministro das Infraestruturas já tinha admitido publicamente ter sido informado por mensagem de whatsApp num grupo onde estavam Maria Araújo e Hugo Mendes sobre as condições finais da saída da gestora da TAP, tendo dado o seu OK pela mesma rede social. Mas agora há também evidência de mails trocados entre a presidente da TAP e Hugo Mendes e Maria Antónia Araújo. Isto apesar de o gabinete do atual ministro João Galamba ter indicado à IGF “não possuir informação arquivada sobre a cessação de funções de Alexandra Reis no grupo TAP.”
A então chefe de gabinete de Pedro Nuno Santos foi nomeada para o mesmo cargo em fevereiro último, mas junto do secretário de Estado das Infraestruturas, Frederico Francisco, que, por sua vez, tinha sido adjunto do ex-ministro, mas para a política do setor ferroviário.
Nas respostas dadas à IGF, quer Pedro Nuno Santos, quer Hugo Mendes assumem que não pediram nenhuma avaliação própria da legalidade da solução jurídica e financeira proposta pelos consultores jurídicos da TAP para dispensar Alexandra Reis. E justificam que não era da sua competência avaliar essa legalidade, mas sim da TAP, não obstante terem dado o seu aval na qualidade de tutela.
Nos esclarecimentos prestados por escrito à IGF, Pedro Nuno Santos afirma: “Não fui elucidado sobre os contornos, fundamentos legais ou fórmula de valor de cálculo da compensação atribuída”, justificando assim o ter pedido informação à TAP quando a indemnização paga a Alexandra Reis foi noticiada em dezembro. Qualificando a sua intervenção para o fecho das negociações como política, o ex-ministro diz que nunca colocou sequer “a hipótese de não respeitar a lei, avaliação essa que não me cabia a mim fazer, mas antes à TAP e à eng. Alexandra Reis, as únicas partes na negociação do acordo celebrado”. E assume:
“Não foi feita, pelo Ministério das Infraestruturas e da Habitação (MIH), uma avaliação legal do procedimento seguido pela empresa porque não é ao MIH que cabe essa avaliação, e sobretudo sabíamos que a empresa estava — como era habitual — assessorada juridicamente para garantir o cumprimento de todas as obrigações legais a que estava habituada”.
Já Hugo Mendes justifica que a “preocupação foi sempre a salvaguarda dos interesses da empresa, não tendo havido a preocupação de verificar os aspetos jurídicos até porque a TAP tinha a acompanhar o processo a sociedade de advogados SRS, não tendo sequer admitido que não estaria a ser tudo efetuado dentro da legalidade, e com a boa fé, embora admita que, retrospetivamente, pudesse ter sido feito um controlo adicional”.
Finanças não foram consultadas nem informadas. Pedro Nuno remete para a TAP, Hugo Mendes diz que foi muito rápido
A ausência desse controlo adicional poderá também estar relacionada com o facto de o Ministério das Finanças ter ficado às escuras em todo este processo, não tendo sido informado nem pela TAP, nem pela tutela setorial das Infraestruturas. Uma falha crucial em todo o processo já que, aponta a IGF, cabe ao Ministério das Finanças o exercício da tutela do acionista do Estado nas empresas públicas. Neste caso, de acordo com as conclusões da auditoria, apenas as Finanças tinham respaldo legal para afastar Alexandra Reis numa assembleia geral, ao abrigo do estatuto do gestor público que foi ignorado em todo o processo.
A rescisão por mútuo acordo e os valores de compensação negociados entre advogados e que deu conforto legal a todos é fundamentada no código das sociedades comerciais, para o qual o estatuto do gestor público remete nas situações para as quais não tem enquadramento.
Na resposta dada por escrito, o antigo ministro das Infraestruturas reconhece que não consultou nem informou o Ministério das Finanças . “Do que é do meu conhecimento não houve interação entre as duas tutelas da empresa. Aquilo que me foi pedido foi a anuência setorial que dei”. Pedro Nuno Santos atira ainda a responsabilidade de informar a tutela das Finanças para a TAP. “Quando há matérias que exigem a autorização da tutela financeira e da tutela setorial, a prática é a empresa enviar os respetivos pedidos para as duas tutelas. Se este era um desses casos então o procedimento anterior teria de ter sido seguido”.
Hugo Mendes é mais explícito e acrescenta um argumento até agora pouco explorado nesta polémica: que é a pressa, ao reconhecer que não chegou a contactar “os colegas do Ministério das Finanças — João Leão era ministro e Miguel Cruz o secretário de Estado com a pasta da TAP —, porque foi tudo muito rápido e, na sua perspetiva, o assunto integrava-se no acompanhamento operacional da empresa, até porque se houvesse necessidade de reporte à tutela financeira este seria assegurado pela empresa, como sucedia habitualmente”.
A urgência aludida pelo ex-secretário de Estado vinha da TAP, ou mais precisamente da presidente executiva da TAP. Na troca de mails onde remete os termos finais do acordo de saída da administradora, Christine Ourmières-Widener a 2 de fevereiro diz: “Precisamos agora de chegar a acordo sobre a comunicação (uma referência ao comunicado de renúncia). Ela (Alexandra Reis) quer sair na sexta-feira” (4 de fevereiro de 2022).
Como pano de fundo do processo negocial, que demorou apenas uma semana, estava o cenário de uma possível mudança do poder político, ou pelo menos dos responsáveis das Infraestruturas que tinham dado o aval à presidente executiva da TAP para avançar com um acordo de rescisão de Alexandra Reis, pouco antes da realização das eleições legislativas de 30 de janeiro. Deste ato eleitoral saiu uma maioria que nem o PS esperava, mas o novo Governo só tomou posse no final de março, mantendo-se a equipa das Infraestruturas, mas com novo ministro nas Finanças e mudanças na tutela da TAP.
Na audição no Parlamento, Christine afirmou ter assumido que o contacto com as Finanças teria sido feito pela tutela das Infraestruturas. Nas respostas dadas por escrito e assinadas pelo chairman e presidente executiva, a “TAP presumiu a existência de articulação entre os membros do Governo competentes no exercício da função acionista, tendo em conta as obrigações de articulação legalmente previstas”.
No contraditório, a gestora francesa aponta na direção do presidente não executivo e defende que não lhe caberia a si, pessoalmente, o dever de comunicar o acordo alcançado, apontando na direção do Governo, que para a gestora foi quem tomou a decisão. “Em conclusão, neste processo, a decisão de terminar a relação contratual com a sra. eng. Alexandra Reis foi uma decisão do Governo, seguindo a recomendação da nova estrutura efetuada pela CEO”, diz a gestora francesa na carta de resposta à IGF.
“A iniciativa foi minha enquanto CEO, foi endereçada ao acionista (entidade competente para discutir e decidir a nomeação ou cessação de mandatos de administradores) e a negociação e aprovação dos termos e condições finais da cessação, incluindo a compensação, foi feita com um representante do Governo com a autorização deste”, conclui.
No contraditório, aponta ainda a Manuel Beja, porque as relações com os acionistas eram uma matéria que em primeira linha lhe competia, refere.
Nas respostas à IGF, o presidente não executivo assume que discordava da saída de Alexandra Reis, contrariando o argumento dado pela presidente de executiva de que as divergências entre duas colocavam em causa a execução do plano de reestruturação. E que tentou partilhar a sua visão com a tutela setorial, “nomeadamente o ex-secretário de Estado das Infraestruturas e o ministro das Infraestruturas, mas não teve recetividade”. E que a partir do momento em que houve a indicação dada pelo representante do acionista (Hugo Mendes), considerou que era sua responsabilidade fiduciária executá-la, uma vez que a racionalidade económica e jurídica estava fundamentada pelos advogados, referindo ainda o seu “dever de lealdade na implementação de uma decisão” que era e foi do acionista.
Atualizado às 23h15 com esclarecimentos do Ministério das Infraestruturas sobre papel da chefe de gabinete do ex-ministro Pedro Nuno Santos no processo de saída de Alexandra Reis.