O espírito vacila, quer acreditar. A razão diz que não, aponta o dedo a uma realidade insuportavelmente má. “Isto vai Mudar!”, o lema da realizadora Monique Rutler que agora se tornou título do ciclo que a Cinemateca exibe para mostrar o que ela fez no cinema em Portugal desde o 25 de Abril, contém essa vontade de mudança que tarda em chegar a um país desfocado dos seus problemas e necessidades básicos: educação, saúde, condições de vida, dignidade, frontalidade, verdade, seriedade, os princípios de que a sociedade precisa para poder avançar no sentido do bem-estar.
Monique Rutler (n. 1941, Alsácia) soube filmar um retrato verídico, autêntico, sem conceções nem eufemismos, deste país que ela ainda quer melhorar. No seu olhar a direito está também a capacidade de dizer a liberdade que tomou como um dado adquirido desde que saiu para a rua com uma câmara na mão, então ainda estudante da primeira turma do curso de cinema do Conservatório Nacional. Daí aos dias de montagem de As Armas e o Povo, filme coletivo que nos mostra o que aconteceu no país durante o 1º de Maio de 1974, talvez o maior documento visual da Revolução, foi um passo curto. A vida desenrolou-se sem tréguas, rápida e lenta, conforme os dias e as penas, as alegrias. E mostra-se num ciclo de cinema que é uma viagem ao trabalho de uma mulher que não merece o esquecimento.
Fomos encontrá-la em casa, na Lisboa a que chegou aos 11 anos de idade. “Vim com a minha mãe que veio para cá atrás de um português. Apaixonou-se. Havia muitos portugueses na Alsácia a trabalhar na tecelagem. Cheguei cá e fui inaugurar o Liceu Francês. Integrei-me logo num grupo de amigos, muitos franceses e muitos internacionais. Mas a mentalidade era a de Portugal.” A vida foi um corropio entre Lisboa e Paris, onde tinha uma tia que trabalhava na Cinemateca e lhe ofereceu o gosto pelo cinema, e onde também viveu com o primeiro marido, o psicólogo português Joaquim Bairrão Ruivo, e com os dois filhos, Marina e Eric.
Os filmes e a vida em separado tiveram o seu fim um ano antes do 25 de Abril. Depois da frequência de um curso de cinema promovido pelo Instituto de Novas Profissões, entre 1971 e 1972, tinha sido assistente de realização no filme A Promessa, de António de Macedo, e a candidatura ao primeiro curso de Cinema “a sério” em Portugal foi um passo indiscutível. Quando chegou ao Conservatório, a sua bagagem cinematográfica deu-lhe uma capacidade invulgar de aprender, de decidir e de escolher. Mas no caminho atravessou-se um tumulto generalizado, o Antigo Regime caía e era preciso “mudar absolutamente”, celebrar, fazer de novo. “Estávamos todos à espera!” Na rua filmou o que pôde, na sala de montagem, depois, quando Fernando Matos Silva a convidou para trabalhar com ele, fez nascer As Armas e o Povo e, daí para a equipa da Cinequipa, uma das primeiras cooperativas de cinema a surgir nos quentes anos do PREC, foi um pulo.
Com os irmãos Fernando e João Matos Silva à cabeça, a Cinequipa, que contava ainda com nomes como José Nascimento, entre outros, exercia uma prática de cinema militante, e tinha a seu cargo a produção de duas séries para a RTP, Ver e Pensar, vocacionada para questões da infância e juventude, e Nome Mulher, dedicada às causas femininas, da autoria das jornalistas Maria Antónia Palla e Antónia de Sousa. É num desses episódios que a atuação de Monique Rutler se torna decisiva, cruzando a história do país com a dos restantes intervenientes.
Chamada a realizar parte do programa dedicado ao aborto e à sua prática, Monique Rutler acaba a filmar, de câmara na mão, uma vez que durante o procedimento o técnico “desmaiou”, todo o procedimento da interrupção da gravidez. O programa com as imagens do aborto vai para o ar a 4 de fevereiro de 1976 e metade do país diz-se chocado, o episcopado e a ala mais conservadora do CDS fazem pressão, as administrações da Maternidade Alfredo da Costa e da RTP cedem, acusam a jornalista e autora do programa, Maria Antónia Palla, de “incitamento ao crime”. Seguem-se imediatamente o julgamento, cuja sentença de ilibação só é conhecida em 1979, e a cessação de contrato da RTP com a Cinequipa.
Portugal pára pela primeira vez para discutir o assunto. O aborto e a condição da mulher. Foi o passo necessário ao primeiro referendo. “Mas [ainda hoje] não está tudo resolvido”, diz, referindo-se também a um eventual alargamento da despenalização até às 12 semanas de gestação, um regime que vigora largamente na Europa, e ao qual o país ainda não deu resposta, depois de só ter despenalizado a IVG em 2007.
Não admira, talvez, quando o país se desenvolve, diz-nos, debaixo de um culto patriarcal que parece não ter fim, nem quando é abertamente denunciado e ridicularizado como Monique Rutler o fez, em 1983, com Jogo de Mão, quatro histórias reveladoras do machismo português sempre capazes de envergonhadamente chegar ao momento atual. “Abanar a sociedade e abrir mentalidades” era o mínimo que ela podia fazer ainda no rescaldo de uma euforia coletiva em que o novo ia chegar, custasse o que custasse.
Mas não, o que chegou foi a dificuldade em filmar, o pedinchar por cada tostão para realizar os projetos, as salas cada vez mais escassas para exibir filmes, a distribuição a desaparecer, as equipas a desfazerem-se, outros caminhos a percorrer, no encalce da educação de que o país continuava a precisar, e essa ideia desassombrada de que isto ia mudar. Monique Rutler foi em frente e bateu o pé para fazer coisas como Os Direitos das Crianças (para a RTP, em 1979); Repensar a Escola – Perspetivas da Escola Primária em Portugal (para a Direção-Geral do Ensino Básico, em 1979); Ciência e Técnica Hoje e Amanhã (para a RTP, entre 1979 e 1980); Viagem através do Homem (para a RTP, em 1982); Assoa o Nariz e Porta-te Bem! (para a RTP, em 1980) A-da-Beja (em 1984).
“Fui filmando as histórias que estavam mais perto de mim, mais próximas do meu quotidiano”, diz-nos — e mais perto dos seus interesses também, acrescentamos nós. “Filmei o que quis.” E filmou o que pôde, o que a deixaram filmar. Filmou a história de Maria Adelaide Coelho da Cunha, a herdeira do Diário de Notícias, que o marido desacreditou e encerrou num hospital psiquiátrico para fugir ao escândalo de ser preterido por um motorista mais novo e de ideologia anárquica e para livremente poder vender e delapidar o património da família. Uma história verídica, passada no início do século XX, retratada em Solo de Violino, em 1990, por uma Monique Rutler empenhada em fazer cinema acima de tudo, com saber e sensibilidade, com engenho e com ousadia, mexendo nos costumes, outra vez nas mentalidades, sempre a tocar na ferida de um país de olhos fechados para os direitos das mulheres, um país sem futuros risonhos num mundo em andamento avançado em relação ao passado hegemónico de um grupo de homens abastados, velhos e não trapos, como os que por cá continuavam abandonados. Monique deu um grito de alerta, deu muitos gritos de alerta, foi ouvida e foi abafada, silenciada, por alguns.
Os seus Velhos São os Trapos (filme de 1978 sobre as condições na velhice em Portugal) continuam a existir nos jardins e nos escombros das casas que habitam um pouco por todo o país, esquecido deles e da sua pobreza, da sua solidão e da sua grandeza. À mingua de comida e de medicamentos, à mingua de alegrias e de cuidados. A Monique Rutler, a francesa e a portuguesa, Mário Soares deu-lhe a nacionalidade em 1988. Voltou a gritar esta semana, na Cinemateca, em Lisboa. O eco desse grito vai ficar. E, de certeza, “Isto Vai Mudar!”.