Ainda há um par de anos seria, no mínimo, difícil imaginar um cenário destes. A meio da tarde deste sábado, e já depois de terem desistido de ouvir várias intervenções e começado a fazer pausas longas fora do recinto, os congressistas voltaram a concentrar-se no pavilhão multiusos de Guimarães. Motivo: Manuel Monteiro, o ex-líder que chegou a sair do CDS em rutura absoluta com o antigo aliado Paulo Portas para fundar um partido concorrente, subia ao palco do congresso e cumprimentava amigavelmente os membros da mesa. Estava preparado para falar, e os congressistas preparados para aplaudir entusiasticamente a sua intervenção.
Do outro lado, os portistas assistiam com alguma curiosidade, mas sobretudo irritação. Foi um dos temas que marcaram a antecipação do congresso: primeiro soube-se que Monteiro marcaria presença; depois especulou-se sobre os motivos que levariam o antigo presidente a regressar a um congresso democrata-cristão, duas décadas depois. Do lado dos portistas, desconfiava-se de um “cavalo de tróia” ou de um candidato-surpresa contra Nuno Melo – e esse poderia ser o próprio Monteiro, que teria hipóteses de dividir seriamente o congresso, já que é bem recebido entre as tropas do líder cessante, Francisco Rodrigues dos Santos.
O cenário não se confirmou: Monteiro apareceu, fez um discurso programático, levantou parte do congresso e entusiasmou as hostes; mas chegou ao fim do discurso a oferecer o seu apoio a Nuno Melo e a anunciar que voltaria a Lisboa imediatamente a seguir, por motivos pessoais – foi acompanhado até ao carro pelo próprio candidato.
Assunto arrumado? Do lado dos portistas, não há certezas – e as garantias de Monteiro não desfizeram a ideia de que pode estar apenas a preparar terreno para o futuro, cenário em que várias fontes apostam. Candidato para daqui a dois anos?
Olhe que não, olhe que não. Ou talvez depois?
Quanto à questão que pairava sobre o congresso, Monteiro fez questão de a desfazer assim que chegou às imediações do pavilhão, fazendo uso da famosa expressão de Álvaro Cunhal – “olhe que não, olhe que não” – quando foi questionado sobre se planearia candidatar-se. Ainda assim, os congressos do CDS são terreno fértil para surpresas – desde logo, porque quem apresenta moções pode, durante o fim de semana, anunciar uma candidatura ou “emprestar” o seu texto a um rosto que queira candidatar-se à liderança. E depois, porque no partido, pelo menos na ala portista, persiste uma desconfiança evidente sobre Monteiro e os seus motivos.
O próprio fez questão de o notar durante a sua intervenção: depois de anunciar o apoio a Melo, com quem já tem conversado nos últimos tempos, gracejou dizendo estar consciente de que muitos dos apoiantes do eurodeputado “provavelmente” o considerarão “um dos piores presidentes” que o CDS já teve. Não andará longe da verdade. Durante e depois do discurso, foi isso que o Observador constatou em conversa com vários rostos associados a Paulo Portas e Assunção Cristas.
O ex-líder parlamentar Nuno Magalhães, que em entrevista à rádio Observador se assumia “portista com orgulho”, reconhecia o que parte do partido está a pensar: Monteiro pode não se ter candidatado para já, mas isso não significa que não volte a tentar a liderança do partido, quando tiver tido mais tempo para lhe tomar o pulso. “Passou a ser militante de direito próprio. Acho que é legítimo que pense assim… um partido de direita agora é contra a concorrência e o elevador social e ter sonhos e subir na vida?”, gracejava Magalhães, para depois admitir, mais a sério: “Se for assim, veremos, daqui a dois anos”.
Os comentários da ala portista eram feitos a pensar nesse cenário: o Observador ouviu várias previsões de quem viu em Monteiro alguém a “preparar terreno” para o futuro, a avaliar as suas hipóteses para daqui a dois anos ou até a tentar a sorte como candidato a eurodeputado. Uma coisa é certa: para os mais próximos de Paulo Portas, vai ser preciso prestar atenção às próximas jogadas de Monteiro – a ideia de que o regresso pode não ser apenas uma vontade de se reconciliar com o passado, sem mais, persiste.
O programa de Monteiro para o país (e as críticas ao seu “euroceticismo”)
Parte da ideia foi gerada, de resto, pelo conteúdo programático do discurso que Monteiro levou ao palco. A fazer lembrar os tempos de euroceticismo que marcaram a sua passagem pela liderança, nos anos 90, argumentou que o país não pode viver “de mão estendida à espera do dinheiro europeu” e de “subsídios” e que deve ser autossuficiente para contrariar o “grave problema de soberania” que tem em mãos.
De regresso a outra bandeira antiga – coincidente com o CDS atual –, falou contra a regionalização, mas também contra o processo de Bolonha (“uma mentira”), a necessidade de garantir a produção nacional e uma reforma administrativa do Estado. Tática política? Monteiro também a trouxe: o PSD “tarda em encontrar-se” e Chega e Iniciativa Liberal “interessam ao PS”, por isso o CDS é a verdadeira oposição, mesmo fora do Parlamento.
Do lado do portismo, mais ceticismo e até algum desconforto, sobretudo com as ideias a puxar ao euroceticismo. De várias fontes o Observador ouviu avaliações semelhantes sobre um discurso “datado” e de isolamento do país no contexto europeu. Em entrevista à rádio Observador, o próprio Nuno Melo, mostrando-se muito satisfeito com o apoio do antigo líder, foi diplomático: o que importa é ver um discurso “a falar de política, de Portugal, do contexto europeu, que agarra o congresso” – “mesmo que as ideias não sejam partilhadas por todos nós”. De resto, para perceber melhor as ideias de Melo em comparação com as de Monteiro, é “ler a moção”.
Nuno Magalhães foi mais claro: “Monteiro fez um discurso muito coerente com aquilo que sempre pensou, que não é necessariamente o que eu penso. Achei excessivamente eurocético para o meu gosto”. Bom “do ponto de vista cénico” e para animar o congresso, concluiu, admitindo que se Monteiro tivesse decidido candidatar-se “o congresso ficaria mais dividido”.
O congresso do café e as feridas antigas
O campeonato das palmas daria razão a Magalhães. Nos portistas, pode haver feridas que não sararam – Monteiro tentou refiliar-se ainda no tempo de Cristas, que considerou um regresso do antigo líder motivo para reabrir “feridas” e “mágoas” de pessoas “próximas” de si e deixou a pasta na gaveta até à posse do líder seguinte, Francisco Rodrigues dos Santos. E este, por sua vez, recebeu o apoio de Monteiro e acolheu o ex-líder refiliado de braços abertos.
No congresso, o trauma criado em 2003, com o abandono de Monteiro para fundar o Nova Democracia, pareceu ultrapassado, a julgar pelas palmas e até por alguns aplausos em pé.
Mais impensável, ainda há um par de anos, só mesmo se se visse Paulo Portas e Manuel Monteiro juntos em congresso – não aconteceu, porque não estiveram em Guimarães no mesmo dia (Monteiro já seguiu para Lisboa, Portas vota nos órgãos do partido no domingo, pelas dez da manhã).
Por curiosidade, foi, aliás, num congresso que se registou um dos momentos que de forma caricata mais evidenciaram a relação crescentemente gélida entre os dois homens: em 1996, no congresso de Coimbra, o então líder Manuel Monteiro abandonaria a sala precisamente enquanto o deputado Paulo Portas discursava, anunciando em jeito de provocação que ia “beber um café” (Portas acusá-lo-ia depois de estragar um congresso por causa de um café). Monteiro acabaria por se demitir em 1997, Portas seria eleito presidente em 1998, e o resto é história.
Nos portistas, tantos anos volvidos, o cenário de apoio a Monteiro da parte dos delegados é visto com ceticismo: “É porque o discurso era bem estruturado e as pessoas animam-se”, desvalorizava um democrata-cristão associado a essa ala. Mas, pelo sim pelo não, as movimentações de Monteiro vão sendo registadas.