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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Mykhayl, o bebé que sobreviveu a um míssil russo lançado contra o hospital em que nasceu

O hospital foi bombardeado pouco depois de ele nascer. A mãe perdeu o leite. Escondeu-se dos russos. Livrou o pai de ter de ir combater. As batalhas de Mykhail, 40 dias de vida — todos na guerra.

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A mãe de Mykhayl teve um mau pressentimento e, por qualquer razão que não sabe explicar, puxou o berço do filho e afastou-o um pouco da janela do quarto 5 do hospital de Bashtanka. Logo a seguir, sem uma sirene de aviso, ouviu-se o som parecido com o de um assobio e depois o míssil a atingir o hospital. Foi a 19 de abril, ao fim da tarde. Tremeu tudo à volta. Os vidros da janela partiram-se e caíram em cheio no local onde estava o bebé instantes antes.

Victoria, a mãe de Mykhayl, que tinha apenas 6 dias de vida, puxou-o rapidamente para fora do quarto e ficou no corredor, com outras duas mães que estavam no quarto do lado com os seus bebés, e mais 4 ou 5 profissionais de saúde.

Thur Valeriy, o ginecologista do hospital de Bashtanka que ajudou no parto de Mykhayl, estava a trabalhar ao computador no seu gabinete quando ouviu o assobio e o impacto. “A porta bateu contra a parede, as janelas explodiram todas, houve muitos gritos em todo lado. Fui rapidamente ter com os bebés, para os retirar juntamente com as mães. Confirmámos que estavam todos vivos”.

Ouça aqui o episódio de “A História do Dia” sobre o bebé Mykayl.

A história de Mykhayl e dos bebés que nascem às escuras na Ucrânia

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Victoria lembra-se que uma enfermeira estava a chorar, mas não parava de filmar tudo com o telemóvel. O Observador teve acesso a esse vídeo de 3 minutos, que mostra os instantes que se seguiram ao bombardeamento. Logo no primeiro plano surgem no corredor as três mães, uma em pé e duas sentadas. Ao lado, vê-se uma enfermeira encostada à parede, agachada e com as mãos na cabeça temendo um novo bombardeamento.

Ouve-se a enfermeira a queixar-se de o resto do pessoal do hospital ter descido ao abrigo e ninguém lhes ter ligado, “obviamente”, devido ao stress da situação. A enfemeira vai filmando e descrevendo: “Quarto dos recém-nascidos. Muitos vidros… Santo Deus que não estava aqui nenhum bebé numa incubadora, não restou nem uma janela.”

Depois parece responder a alguém: “Sim, nós estamos aqui. Nós, as mães e os bebés. Eu tenho recém-nascidos, bebés. Sim, sim… estamos todos no segundo piso.”

A seguir: “Isto é o quarto onde estava uma mulher com um bebé. Ela simplesmente agarrou no bebé e fugiu. A janela explodiu com a armação à volta dela…”

Depois entra no quarto onde estavam Victoria e Mykhayl: “Isto é o quarto número 5. A janela explodiu completamente. Não há… nem a armação”.

A enfermeira continua a filmar as várias divisões e a descrever o que vê: “Quarto número 3, onde há pouco estavam duas mães. Vejam como isto está. As janelas explodiram todas com as proteções. Tudo terrível… Esta é a saída. Meu Deus, isto é simplesmente… meu Deus, a porta explodiu. Meu Deus… o que se passa aqui… Em direção ao elevador, para baixo em direção à saída, não restou nenhuma janela.”

[Veja aqui o vídeo filmado pela enfermeira nos instantes que se seguiram ao bombardeamento:]

O míssil atingiu um edifício do hospital que estava sem ninguém àquela hora, e fica a cerca de 30 metros deste outro edifício onde funciona a maternidade. Apenas uma médica sofreu um corte numa perna provocado por estilhaços dos vidros.

Victoria estava em choque, a tremer. Disse que ia telefonar ao marido. Uma enfermeira tentou demovê-la, mas a mãe de Mykhayl insistiu e avisou que tinha havido esta explosão, sem conseguir dizer mais nada. Victor Kolonetsov, o pai do bebé, nem conseguiu perceber se a mulher e o filho estavam bem. Pegou no carro, ainda teve de ir pôr combustível para o caso de ter de fugir com a família, e voou a 90 km/hora num caminho de terra batida cheio de buracos onde costuma andar a 20 à hora. Quando chegou ao hospital, pôs Victoria e Mykhayl no carro e levou-os para outro hospital, a uma hora de distância, mais afastado dos alvos dos bombardeamentos. As outras duas mães foram de ambulância, mas Victoria fez questão de ir com o marido.

Os pais de Mykhayl no dia do casamento, com os avós. O avô esteve desaparecido 27 anos. Agora não larga o neto

DR

O namoro, a gravidez e a festa de casamento que durou dois dias, antes da guerra

Victor e Victoria conheceram-se um ano antes de Mykhayl nascer. Foram apresentados por amigos. Ela era de Plyushchivka, a 25 km de Bashtanka, trabalhava numa fábrica de queijos, também pintava unhas em part-time e já tinha uma filha de um casamento anterior, Uliyana, 9 anos. Ele trabalhava no negócio dos combustíveis em Mikolaiv, a maior localidade mais próxima de Bashtanka, onde vivem, a mais de uma hora de carro.

Victoria engravidou dois meses depois e ofereceu o teste de gravidez de prenda de anos ao marido, a 2 de agosto. “Obviamente que fiquei feliz, tenho 33 anos, já estava na altura”, recorda Victor. “É isso o amor, certo?” Pergunta retórica, na conversa do casal com o Observador, em banquinhos de madeira à sombra de uma árvore frente a casa (não convidaram para entrar, porque estavam ainda a arranjar a casa e não estava preparada para receber visitas).

De cada vez que soava a sirene tínhamos de descer para o abrigo. Soaram três vezes enquanto estivemos no hospital. Eu não queria, porque tinha dores, mas eles diziam que toda a gente tinha de ir. 
Victoria Kolonetsova, mãe de Mikhayl

Victor devolveu a surpresa cinco meses depois, em dezembro. Pegou na mulher de repente, pô-la no carro, levou-a a uma conservatória de Bashtanka, e perguntou que documentos eram necessários para casar. A funcionária viu-o tão decidido que aceitou tratar de tudo sem marcação, à hora de almoço. Passado um mês, juntaram 20 pessoas da família para fazer uma festa que durou 2 dias, com Victoria de vestido branco e Victor de fato azul.

DR

A chegada dos russos. E a insistência para o pai se juntar aos combatentes

Logo depois do casamento, começou a guerra, quando Victoria já estava grávida de 8 meses. Sentiram a terra a tremer no primeiro dia, quando caíram bombas em Mikolaiv. E uns dias depois chegaram os russos: “Passaram milhares de tanques naquela rua”, diz Victor, apontando na direção onde viu passar os blindados.

Não chegaram a ocupar a aldeia onde vivem, mas deixaram marcas: “Eles roubaram alguns supermercados, onde passou a haver filas grandes logo de manhã para comprar pão. Dormiram nalgumas caves de vizinhos. E disparavam para o ar, para assustar. Mas tivemos sorte: não bombardearam nem ocuparam a aldeia. Ela [Victoria] filmou, mas apagámos tudo porque, enfim, nunca se sabe…” O último mês de gravidez foi vivido com medo que os russos batessem à porta. Não chegou a acontecer.

Para encontrar medicamentos tive de ir até Mikolaiv e Novyi Buh. Para um lado 50 km e para o outro outros 60 km. Não eram caros, o problema era encontrar. Ainda por cima, por causa dos combates, tinham levado todos os fios para cirurgias
Victor Kolonetsov, pai de Mikhayl

Nas semanas finais, Victor tinha a preocupação de ter sempre o carro com combustível, para conseguir ir até ao hospital, assim que fosse preciso. E diz que mesmo que houvesse russos ia arranjar maneira de os contornar pelos campos. Antes ainda ponderaram fugir, para a terra de uma das avós de Mykhayl, mas entretanto também começou a ser bombardeada, pelo que decidiram ficar perto de Bashtanka. O desconforto de Victoria era crescente, já mal conseguia caminhar.

Ainda antes do parto, as forças de defesa territorial tentaram por três vezes que Victor se juntasse aos militares para ir combater, apesar de ele não ter qualquer experiência no manejo de armas. Das três vezes, Victor disse que não podia, porque tinha de olhar pela mulher e pelo filho, prestes a nascer. Mas a insistência crescia, indiferente à situação. “Eles eram arrogantes. Diziam: ‘Vá, vamos levar-te’; ‘Vamos, pega nas tuas coisas’; ‘Vens agora e acabou'”.

Com o stress provocado pelo bombardeamento, Victoria deixou de conseguir amamentar

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Só depois de Victoria contactar uma linha telefónica dos serviços militares é que passaram a Victor uma licença que lhe permite adiar por um ano o momento em que terá de se juntar aos outros combatentes. “Eu não prestei serviço militar, nem sei como defender a minha vida, não sei estar numa trincheira.” Além disso, conhece homens que foram e não voltaram, não sabe se estão presos ou se já nem estão vivos.

Desde que começou a guerra, temos de fazer os partos de luzes apagadas. E como somos um hospital local, se for preciso algum especialista ou se for necessário transferir uma mulher para Mikolaiv, já não conseguimos fazer isso. É um stress para nós, para as mães e claramente também para os bebés.
Thur Valeriy, médico que assistiu no parto de Mykhayl, sobre o momento do bombardeamento

Tem um primo que não dá sinal desde 22 de março. O exército contactou a família a dizer que seria necessário fazer um teste de ADN, para confirmar se ele é um dos militares aprisionados pelos russos, o que deixou Victor desconfiado. “Acho que disseram isso à mãe para não a assustar já. Mas para que é que precisariam de testes de ADN para confirmar pessoas vivas? Deve ser para confirmar se é um dos mortos”.

Se não fosse o nascimento de Mykhayl, o pai teria ido combater — “De certa forma, ele manteve a família unida”, reconhece Victor.

O pai à procura de medicamentos. E o regresso do avô ao fim de 27 anos de abandono

No dia 13 de abril, Victoria sentiu rebentarem as águas às 6 da manhã. O marido levou-a logo ao hospital de Bashtanka, mas não o deixaram ficar lá para assistir ao nascimento, por causa de todos os constrangimentos impostos pela guerra.

“Agora temos de fazer os partos de luzes apagadas. E como somos um hospital local, se for preciso algum especialista ou se for necessário transferir uma mulher para Mikolaiv, já não conseguimos fazer isso. É um stress para nós, para as mães e claramente também para os bebés”, descreve ao Observador o ginecologista Thur Valeriy. À escuridão na sala de partos, soma-se o ruído frequente dos bombardeamentos e das sirenes, que obrigaram a que alguns partos fossem interrompidos, para que as mães e os profissionais de saúde descessem ao bunker, onde ajudaram essas mães a dar à luz.

No caso de Mykhayl, não houve esse azar. O bebé nasceu de parto normal, às 14h40 do dia 13 de abril, com 4.400 gramas. Um gigante. Mostraram-no à mãe a correr, antes de a suturarem com alguns pontos. Só passado duas horas é que conseguiu avisar o pai. Victor chegou ao hospital, viu o filho, mas nem lhe pôde pegar. Disseram-lhe que estava tudo bem com o bebé, mas eram necessários uma série de medicamentos e material cirúrgico, que Victor teria de arranjar. Passou os dias seguintes a ir a aldeias a 50 km, sempre ao pé de bombas, e a correr o risco de encontrar russos, até conseguir tudo o que era preciso.

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Foi Victor que escolheu o nome Mykhayl para o filho — andou a ver a que santos pertenciam os dias à volta de 13 de abril. Também podia ter sido Petro ou Kyril, que era o preferido da mãe, mas não se opôs à escolha do pai.

Quem estava mais tempo com Mykhayl ao colo no hospital era o avô materno. Esteve 27 anos sem ver a filha, para viver com outra mulher, que também abandonou entretanto. Victoria e o pai reconciliaram-se inesperadamente nos últimos meses através do Facebook. Um amigo do pai abordou-a, dizendo que ele queria restabelecer contacto e Victoria aceitou. Sempre o quis reencontrar e não guardou rancor por ele ter saído de casa e terem estado tanto tempo sem se ver.

Como se quisesse compensar tamanha ausência, este avô não dava o neto a ninguém. “Foi o primeiro a segurá-lo e a dar-lhe banho, foi tudo com o avô. As avós ainda andaram à volta, mas o avô disse: ‘É meu e pronto'”, recorda Victor, que também só a custo conseguia resgatar o próprio filho dos braços do sogro.

As sirenes, os sons de bombardeamentos, o bunker. E o problema no braço que não mexe

Ao segundo dia de vida, Mykhayl confrontou-se pela primeira vez com o ruído da sirene, que alertava para o risco de bombardeamentos. E já teria ouvido os sons dos combates da artilharia, que se travavam nos arredores de Bashtanka. A mãe, ainda cheia de dores depois do parto, resistia a descer para o bunker. Mas os médicos insistiram que toda a gente tinha de ir.

Uma das mães que estava no quarto ao lado tinha tido o parto em casa, numa aldeia ocupada pelos russos, e só depois se dirigiu ao hospital. Os ocupantes deixaram-na passar, mas descreveu a Victoria um cenário assustador na sua aldeia, com soldados russos a viver nas casas das pessoas, (a quem retiraram os telemóveis) e com os tanques de guerra estacionados nos quintais.

A destruição causada pelo míssil que atingiu o hospital de Bashtanka, a 19 de abril. E a maternidade onde Mikhayl nasceu

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Victoria já só queria ir para casa, mas os médicos não deixavam. Depois percebeu porquê: o filho não conseguia mexer o braço direito. Movimentava os dedos dessa mão, mas não o braço. A mãe diz que a lesão resultou de um movimento mais brusco no momento do parto, devido à dimensão do bebé.

“É curável, vai ficar tudo normal, com ajuda de medicação e fisioterapia”, assegura Thur Valeriy, o ginecologista que ajudou no parto. Mas os pais continuam ansiosos e preocupados com este problema. Apesar da dificuldade em encontrar um hospital maior nas proximidades que não esteja numa zona perigosa, já consultaram uma especialista, que não consegue dizer se houve uma fratura da clavícula, ou se se trata de um problema neurológico, e precisa de esperar que o bebé cresça para poder ser submetido a mais exames.

Thur Valeriy, ginecologista do hospital de Bashtanka, que assistiu no parto de Mykhayl

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Uma semana com amigos para fugir das bombas antes de Mykhayl entrar em casa

Victor chegou a ter uma garrafa de champanhe, chocolates e flores prontos para o dia em que Victoria voltasse para casa com o filho. Mas depois do bombardeamento que atingiu a maternidade, foram para outro hospital, em Novyi Buh, a cerca de 30 km, numa zona apesar de tudo mais resguardada da guerra.

De tal forma que até pediram ao pai de Mykhayl que colocasse uma máscara para a Covid-19, o que o deixou bastante indignado: “A sério? Nós estamos a ser bombardeados, quais máscaras? Nós não temos coronavírus, nós temos bombas”. Com o stress provocado pela explosão, Victoria perdeu o leite materno e, aos 6 dias de vida, Mykhayl teve de passar a alimentar-se exclusivamente por biberão.

Quando saíram deste segundo hospital, não era seguro voltar para casa, porque a situação continuava muito tensa. Refugiaram-se então em casa de amigos em Sofiivka, onde ficaram uma semana até os bombardeamentos e confrontos de artilharia diminuírem. Só ao fim de duas semanas de vida é que Mykhayl entrou finalmente em casa pela primeira vez. Foi recebido pelos animais da família: um piriquito, três gatos e três cães, o Ruivo, o Preto e o Jack, que está sempre a ladrar preso à casota.

Mykhayl empurrado pelos pais junto à casa onde vivem, a uma hora de Mikolaiv

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O bebé ainda chora muito quando acorda. Só pára quando os pais lhe mudam a fralda e lhe dão leite ou falam com ele, para o tentar serenar. Fisicamente, saiu mais parecido com o pai, mas a mãe não se importa e torce para que Mykhayl herde a seriedade e honradez do marido. Já Victor diz que adora tudo na mulher, embora gabe especialmente os seus talentos gastronómicos: “É ela a tal”.

Sobre a guerra, tanto Victor como Victoria responsabilizam os presidentes dos dois países, por não terem encontrado uma solução que evitasse tantas mortes. Não querem que o filho cresça a odiar os russos, mas sabem que vai ser difícil que um dia ele não fique a odiar tudo isto que está a acontecer agora no seu país.

Se a guerra não acabar entretanto, daqui a menos de um ano Mykhayl vai deixar de ver o pai durante algum tempo. Victor já está mentalizar-se para esse dia em que acaba a sua licença especial e terá de se juntar aos militares que estão a combater pelo seu país.

A história de Mykhayl e dos bebés que nascem às escuras na Ucrânia

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