História
Esta história começa com uma amizade antiga que, como muitas das que duram, se move por valores comuns. Neste caso, falamos de preservação: quando Miguel Cunha Ferreira, proprietário do restaurante A Camponesa, decidiu que era altura de reformar-se, quis garantir que delegava a gestão do espaço a alguém capaz de herdar a tarefa que ali, desde os anos 50, se foi desenvolvendo.
O principal era “manter viva a cozinha portuguesa”, explica André Magalhães. Chef e taberneiro, depois de A Taberna das Flores (que acaba de fazer dez anos), da Taberna Fina (entretanto encerrada) e da Loja com História, no quiosque da Praça de São Paulo, ficou com essa responsabilidade e, assim, fez nascer, no início de outubro, a A Antiga Camponesa, em conjunto com os sócios Bárbara Cameira e Tiago Alves. “[Os donos] Puseram o sítio no mercado para alugar e ficaram um pouco dececionados porque só tinham ofertas de estrangeiros, que queriam abrir conceitos, que não tinham nada que ver com a tradição portuguesa”.
Professor convidado no mestrado de Ciências Gastronómicas na Universidade Nova de Lisboa, é com algum desgosto e aflição que, quando anualmente lidera o seminário “Lisboa Cosmopolita” [que, do Martim Moniz à baixa lisboeta, reflete sobre as influências de outras culturas na gastronomia portuguesa] nota a intensificação do processo de “gentrificação” nesta zona da cidade. “Sempre que dou esta aula vejo que fecharam mais e mais restaurantes e comércios tradicionais portugueses. São os sítios onde as pessoas vão realmente e que estão a ser substituídos por coisas sem identidade”, diz. “Fecharam o João do Grão”, lamenta.
Nesta Lisboa que já só é lisboeta nos postais, há por isso a preocupação em lembrar a história do sítio que agora ocupa: “Passámos a chamar-lhe a A Antiga Camponesa para manter a memória do local, mas também na perspetiva de renovarmos e revisitarmos o sítio e a memória culinária do espaço”, acrescenta André Magalhães.
Espaço
Atravessamos o Largo Camões, percorremos a Calçada do Combro, viramos na Rua Marechal Saldanha (que vai dar ao Miradouro de Santa Luzia, vulgo Adamastor), entramos n’A Antiga Camponesa e regressamos a Portugal. A encarar a rua, está uma cópia de A Camponesa, do artista Carlos Reis, que remete para “o universo dos produtos do campo de Portugal”, para a “frugalidade da nossa cozinha”, que aqui é “revisitada e atualizada” com “criatividade” e “engenho”.
É o único quadro nas paredes e “o ponto de partida do restaurante” para a inspiração de cozinha, que partilha a matriz sazonal e local da Taberna das Flores (já lá vamos) e também para a componente mais estética: “É dela que sai a palete de cores da decoração”.
A memória d’A Camponesa anterior está presente também no chão com mosaicos coloridos e na cortiça das paredes. De resto, tudo é nacional e uma homenagem à cultura portuguesa: desde a pedra de Lioz utilizada nas mesas, que “faz jus à tradição das tabernas e das casas de pasto de Lisboa”, às cadeiras de bacalhau, fabricadas também em Portugal.
Comida
Se na Taberna das Flores a forma de comer passa pela partilha, aqui é diferente: há um início, meio e fim — ou seja, entrada, prato e sobremesa. “A ideia é justamente que, sem pretensiosismo, revisitemos um formato mais clássico do restaurante, em que cada um escolhe a sua sequencia de pratos”. Um “exercício um bocadinho mais egoísta do comensal”, que usufrui de um “conforto” diferente, com direito a guardanapo de algodão e mais espaço na mesa. Também quem atende os clientes tem mais margem para demonstrar a sua boa arte a servir.
O chef irlandês Gareth Storey é quem, nos bastidores, tem o comando da cozinha, que partilha com o resto da equipa. “Conheci-o como cliente d’A Taberna”, conta André Magalhães. “Ele tem uma namorada portuguesa e sempre que vinham a Portugal iam à Taberna.” A sequência de acontecimentos juntou-os: o irlandês ia mudar-se para Portugal e procurava trabalho; o trio de taberneiros iam partir nesta nova aventura; e, muito importante, os gostos estavam alinhados — “Temos uma filosofia muito de trabalho e referências culinárias muito parecidas”, diz André Magalhães, acrescentando que ambos têm especial gosto no trabalho com “as miudezas e as partes menos nobres dos bichos”.
De resto, o ponto de partida é o mesmo d’A Taberna das Flores: “Produtos portugueses de época e de micro-época. Aproveitamos mesmo as micro-estações, há coisas que aparecem uma semana ou quinze dias”, explica. Não é chavão dos tempos que correm, a sazonalidade é um tema que os taberneiros levam muito a sério. Prova disso é a liberdade criativa que existe na cozinha, viabilizada por esta característica e que, cá fora, se manifesta numa carta em constante transformação.
“A ementa muda quando nos apetecer — todos os dias há pratos a mudar. Acaba um produto e trocamos por outro”, detalha. “A ideia é termos esta mobilidade e liberdade na componente criativa dos pratos”, diz, acrescentando que houve um reforço nas relações com os produtores com quem trabalham diretamente (“em vez de darmos dinheiro a intermediários, pagamos melhor aos produtores”).
Com as carnes e os peixes, é igual: “Tentamos trabalhar sempre coisas diferentes, especiais, mas sempre de qualidade e sempre que possível com alguma tradição em Portugal. Carnes de raças portuguesas, peixes da nossa costa, pescados artesanalmente.”
E se o produto é obrigatoriamente português, a componente criativa na cozinha não tem fronteiras estabelecidas. É assim Portugal: “Sempre foi um país cosmopolita e sempre foi um país de intercâmbios — a nossa cozinha está pulverizada de influências das antigas colónias, do Brasil ao Oriente. Nós influenciámos imenso outros países do mundo e recebemos influencias de outros países do mundo. Por isso, há sempre espaço no processo criativo para integrar outros elementos. Não é uma coisa fechada, não é um processo hermético, antes pelo contrário.”
No dia em que o Observador passou pela A Antiga Camponesa, da carta faziam parte sete sugestões para as entradas, desde mexilhões de cebolada (9€), fígado de tamboril, tomate, torrada de boletos (12€) ou molejas de vitela, feijão catarino, molho de coentros (13€). No capítulo dos principais, encontrámos seis opções: um prato de chocos, pimentos e alioli (17€), espadarte e arroz de algas (18€) ou cachaço de bísaro grelhado, açorda de grelhos (19€). Hoje, vai ser diferente. Com 32 lugares disponíveis, é possível fazer reserva.
O que interessa saber:
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Nome: A Antiga Camponesa
Abriu: no início de outubro
Onde fica: R. Mal. Saldanha Lisboa
O que é: o novo restaurante dos donos d’A Taberna das Flores que, a partir de produtos portugueses, de estação e de micro-estação, faz nascer pratos criativos, servidos na formatação clássica de entrada, prato principal e sobremesa.
Quem manda: André Magalhães, Bárbara Cameira e Tiago Alves e o chef Gareth Storey
Uma dica: ligue para reservar lugar
Contacto: 21 347 1515
Horário: de terça-feira a domingo, das 19h às 10h30