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Vera Marmelo

Vera Marmelo

Na congregação pop-rock de Jónatas Pires, a canção não é falsa partida — ainda soa a transcendência

O antigo vocalista e guitarrista de Os Pontos Negros ressurge e "a solo", mas não sozinho, edita um disco comunitário. Um álbum com Bíblia, poesia, baladas, povo e rock and roll.

Quando o ouvíamos há uns anos, porta-voz de uma comitiva indie-rock com pêlo na venta, cantava assim com fervor: “Eu não me chamo Casablancas / eu não me chamo Jack White / na hora de te ajeitar as cobertas / digo-te boa noite, não good night”. Ouvíamo-lo a incluir na história do rock and roll português personagens como Gabriela, a “sensação de Queluz”, de “t-shirt dos Ramones e o olhar atravessado”. Ouvíamo-lo a fazer uma canção de uma suposição: “Se o Variações fosse o meu barbeiro”. Agora escutamo-lo a solo: Jónatas Pires, antigo vocalista, guitarrista e compositor da banda Os Pontos Negros, acaba de editar o álbum Terra Prometida.

Corrigimos: este não é, na realidade, um disco a solo. “A solo talvez só se for por ter o meu nome e a minha imagem na capa, mas não é só meu — há outras pessoas, e não apenas músicos, que contribuíram de forma significativa”, vinca Jónatas Pires em conversa com o Observador.

Quando se coloca o disco a tocar e entra “Primavera”, a primeira canção, parece que a toada será diferente da que lhe conhecíamos, que este será um disco mais na senda daquilo que por exemplo o seu companheiro de longa data Samuel Úria — que Jónatas acompanha regularmente em concertos — tem vindo a fazer. Parece, acima de tudo, que vamos entrar num disco baladeiro, com baladas de bom gosto, feitas de acordes sem pressa, de palavras cuidadas e próprias de quem vê a escrita de canções como ofício literário. Só que, ainda na primeira canção, depois das cordas entra um coro. E a seguir ao coro entra a guitarra elétrica a solar, a cantiga ganha contornos épicos, as palavras são entoadas como se o rock and roll fosse (e não é?) também ele uma forma de transcendência.

À segunda canção, “Quando o Vendaval Vier”, o ritmo continua a acelerar, a guitarra elétrica entra, os teclados tomam conta de tudo isto e é quase como se tivéssemos uns Arcade Fire nascidos na bacia do Tejo, indie-rock feito de matéria épica, tão vigoroso quanto dançante, com referências bíblicas e espirituais a intrometerem-se.

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Daí em diante Jónatas Pires vai apontando para várias direções: dá continuidade à linhagem rock de Os Pontos Negros em canções como “Terra Prometida” e “Eu Só Preciso”, curiosamente os dois primeiros singles; passa pelas baladas descarnadas de “Meus Olhos Descansam”, “Mesa Posta” e “Epílogo”; e encarna em Dylan dos anos 70, fase Basement Tapes e The Band, em “O Padeiro de Portalegre”, a cantar acelerado como um pastor do rock and roll que agita a classe trabalhadora, troçando mordaz da elite:

O meu pai era padeiro em Portalegre
a minha mãe secava escadas no Estoril.
Num dia bom tinham de trabalhar com febre
porque sem pão ninguém produz
e habitação sem a faxina

é um terror para a patroa,
que até nem é má pessoa,
dá de comer à retornada
o que lhe sobra da esplanada
onde se senta a discutir quem fez abril.
(…)
O meu avô era pastor em Montalegre
a minha avó tinha emigrado no Brasil
Viveram para guardar ovelhas e um casebre
porque se o leite é do patrão e o teto é do senhorio (…)

As origens: uma banda chamada Os Pontos Negros e uma editora chamada FlorCaveira

Esta história não começa agora, já começou há uns bons anos: mais exatamente entre o fim dos anos 90 e o início dos anos 2000, quando nasceu em Portugal uma editora chamada FlorCaveira, criada por rapazes convencidos de que o país não tinha de passar ao lado do ressurgimento do rock independente como fenómeno popular, capaz entusiasmar a juventude com sonhos elétricos e cantáveis.

Na música da FlorCaveira ouvia-se uma missão: a de evangelizar (a palavra não é um acaso: muitos dos que por ali andavam saíam da igreja à tarde para ir para concertos de rock à noite) o público e as outras bandas para o pop-rock independente cantado em português. Hoje pode parecer impossível mas à data havia quem torcesse o nariz, quem garantisse que o idioma das cantigas de indie-rock e de matriz sonora anglo-saxónica só poderia ser o inglês.

Na segunda metade dos anos 2000, já se tinha assistido a muita coisa no indie-rock, nos anos imediatamente anteriores: gente como os White Stripes e os Strokes tinha começado uma revolução, os Arcade Fire continuavam-na e tantas mais bandas, atraídas pela chegada deste tipo de música às rádios e aos festivais, fugiam para a garagem para pegar nos instrumentos elétricos. O difícil parecia ser convencer o mundo de que este indie-rock novo também soava bem cantado sem estrangeirismos.

No início, a pandilha era liderada pelo pastor (não apenas do rock and roll) Tiago Guillul e por Samuel Úria — mas depois apareceu a Amor Fúria para se juntar à Flor Caveira, aparecem escritores de canções como Manuel Fúria, João Coração e B Fachada, apareceriam bandas descendentes como Os Quais, Os Golpes, Diabo na Cruz, O Deserto Branco, os Feromona. E antes destas últimas, com um alcance que nenhuma das restantes teve no fim da primeira década dos anos 2000, apareceram os Pontos Negros.

Em 2008, Os Pontos Negros lançavam um disco chamado Magnífico Material Inútil. E de repente Jónatas, o irmão David Pires, Silas Ferreira e Filipe Sousa eram novos porta-vozes do indie-rock aportuguesado, estilo Strokes com ovo a cavalo, mordazes e inteligentes, embalados pela onda recente mas formados também no cancioneiro do folk-rock e do country americanos dos 60’s e 70’s, transportando a escrita de Bob Dylan e Johnny Cash como uma cruz colada ao peito.

A história de Os Pontos Negros é a história de tantas outras bandas: afirmação — logo com o primeiro disco mais a sério, uma canção, “Conto de Fadas de Sintra a Lisboa”, tornou-se um hino indie —, desgaste e fim. Balanço: três discos pujantes, o último dos quais, Soba Lobi (2012), gravado nos históricos estúdios Abbey Road em Londres. E uma herança de que grupos como os Capitão Fausto, por exemplo, são claros descendentes na linhagem.

O último Crime Elétrico d’Os Pontos Negros

É claro que esta revolução não era nem consensual, nem hegemónica. Basta lembrar que os anos 2000 são os anos em que o hip-hop português se afirma em definitivo e que esta música tinha uma popularidade na capital e num nicho alternativo que não se replicava noutras partes do país. Mas ela, a revolução, existiu, só não foi tão grande (nem a indústria musical portuguesa é tão grande) que o que aconteceu a Os Pontos Negros tenha sido assunto mediático.

O que aconteceu foi afinal muito simples. Jónatas Pires começa por dizer: “Não diria que Os Pontos Negros acabaram. Há um hiato”. De seguida, dá esperanças a quem quer ver mais concertos de uma banda que juntou-se nos últimos anos apenas para duas atuações, na festa dos 60 anos de Zé Pedro dos Xutos & Pontapés (que era um fé acérrimo e que apoiou o grupo) e em 2018 na celebração dos dez anos do álbum Magnífico Material Inútil: “Damo-nos todos bem, estamos a fazer outras coisas mas há sempre a possibilidade de voltarmos a tocar”.

Por último, a explicação da paragem: “Depois do disco que editámos em 2012, o Soba Lobi, estávamos cansados. Foram cinco ou seis anos muito intensos. Tivermos de tomar decisões e fazer escolhas e na altura pareceu-nos que o melhor era descansarmos um bocadinho antes de pensarmos em fazer mais música. Pessoalmente, naquela altura faltava-me assunto, não conseguia encontrar um fio condutor ou uma narrativa a que me pudesse agarrar e desenvolver em termos de ideias e de escrita. Isso demorou algum tempo a aparecer”.

Jónatas Pires vai apresentar este disco ao vivo em concertos em Lisboa (próxima segunda-feira, 14, no Teatro Maria Matos) e Porto (sexta-feira, dia 18, no Auditório CCOP)

Vera Marmelo

Um disco com “alguma continuidade” e com gentes de suor e trabalho

Depois do fim de Os Pontos Negros, Jónatas Pires começou um projeto coletivo, musical e de cariz solidário chamado Tudo É Vaidade e continuou a dar concertos, acompanhando e fazendo parte da banda ao vivo de Samuel Úria. Mas só agora chega um disco novo de canções originais pensadas sobretudo por si, ainda que não sejam apenas suas.

Admitindo que o disco  “acaba por ter um som de alguma continuidade com aquilo que é o meu percurso, com a minha forma de escrever”, Jónatas Pires vinca que o resultado final deve-se muito aos seus parceiros. Por um lado, dos restantes três elementos de Os Pontos Negros, dois participaram em Terra Prometida: o irmão, David Pires, toca bateria e Silas Ferreira assegurou a produção musical do álbum. Por outro, fazem parte da parelha o músico António Quintino, que conhece “há vários anos”, que “toca na banda do Samuel [Úria]” e que fez “os arranjos de cordas”, e Joana Wagner, que “participa no Tudo É Vaidade e que vem dar um contributo especial a este disco”, nomeadamente nos teclados.

A estes convidados somam-se “os de sempre”, explica o autor, duas pessoas que o acompanham “na vida e no mundo da música há muito tempo”: Samuel Úria e Selma Uamusse. E nesta seleção nacional de pop-rock entra ainda Manuel Palha, músico dos Capitão Fausto que, para Jónatas Pires, “tem uma musicalidade, uma linguagem e uma sensibilidade muito especiais que o tornam, na minha opinião, num dos melhores músicos” do espectro pop-rock português.

Há “cerca de dois anos e meio”, Jónatas Pires recebeu um convite de uma pessoa de uma editora — a Sony — para gravar. E decidiu pôr mãos à obra. Do leque de 11 canções que apresenta no disco, só duas, “Primavera” (a primeira faixa) e “Rosto Negro” são “mais antigas”. Todas as outras “foram escritas a pensar neste disco, para que houvesse um tema transversal”. É aqui que, na conversa, Jónatas se assume da velha escola melómana: “Este disco não é uma coleção de singles. Apesar de haver variedade no som e de as canções não serem todas iguais na maneira como soam e nos ambientes, procurámos que houvesse uma certa coerência interna e que isso se notasse do início ao fim. Sei que já não está muito em voga fazer um disco para ser ouvido como um romance pode ser lido — de fio a pavio [e com coerência narrativa] — mas…”.

Num texto de apresentação escrito a propósito do álbum, Jónatas Pires descreve Terra Prometida como um disco “para peregrinos”. E explica porquê: “É-o porque é um disco em que as canções falam todas de um caminho. A forma mais sucinta que consigo encontrar para descrever isto é a ideia da canção como falsa partida. Se pensarmos, por exemplo, numa corrida de atletismo, à segunda falsa partida somos desclassificados e não temos mais hipóteses. A ideia transversal a todo o disco é que mesmo que passemos a vida em falsas partidas, a meter a pata na poça, a chegar a buracos sem fundo, há sempre uma hipótese, uma réstia de esperança mesmo que invisível de que iremos cruzar a meta. Não importa se é em primeiro lugar — a vida é muito mais um caminho e uma jornada do que um concurso”.

A religião infiltra-se inevitavelmente na matéria de canção. Há, desde logo, a referência do título à “terra prometida” e ouve-se Jónatas Pires cantar sobre “pagar a passagem”, sobre o Tejo como um “Mar Vermelho”, sobre quem anda a “vaguear entre os anjos”, sobre “a eternidade como epílogo do fim”. O antigo vocalista de Os Pontos Negros não nega a ligação: “Não há como esconder que muitas referências têm origem nos textos da Bíblia ou na vida de Jesus, que para mim é uma inspiração, um modelo”.

Mais do que religião, porém, o que se infiltra nas canções é sobretudo “a fé”, a ideia de “caminho” e conceitos religiosos aplicáveis ao dia a dia. Veja-se o caso da balada “Epilógo”, um tema que não é exatamente religioso mas que reflete sobre o amor: “É uma canção sobre várias expressões de amor que são absolutamente desvalorizadas ou remetidas a um papel secundário ou terciário comparadas com o amor romântico. Há facetas do amor que estão relacionadas com lidar com sacrifícios, com compromissos, com lealdade, com fidelidade, com permanecer e não desistir — e que não passam só pelo amor romântico, que encontramos mais retratado em canções”.

Outro dos aspetos notórios no álbum é que em Terra Prometida fala-se de subúrbios de Lisboa e das suas gentes. Na canção que dá título ao disco, Jónatas Pires canta assim: “Começámos no Vale da Amoreira / nas casas caiadas de suor e miséria / o Tejo como Mar Vermelho / mas és o capitão do barco do Barreiro. / Somos os descentes do desprezo / os verdadeiros herdeiros da humilhação”. Em “Fogo Posto” ouvimo-lo cantar sobre “as auroras que cantámos / ao procurar um amanhã melhor”. E “Padeiro de Portalegre” é, como o tema-título, um braço dado às gentes populares, humildes, pouco abastadas, precárias — há até a história do “irmão” que “estudou para ser engenheiro” mas acabou “dispensado, em seu lugar foi contratado o sucessor”.

O que aqui se ouve é também uma espécie de espírito working class songs, Jónatas Pires qual Springsteen da Grande Lisboa a cantar sobre o tipo explorado, básico e simples, trabalhador, humilde, sem luxos, que não vive com fausto. Referindo ele próprio Bruce Springsteen e notando que “hoje já não temos tantos operários a trabalhar nas fábricas”, Jónatas lembra que ainda existem “pais e mães que se levantam às 5h ou às 6h para ir trabalhar, que têm de sustentar a família, fazer sacrifícios e passam por dificuldades”. Gente que ultrapassa essas dificuldades “sem nunca desistir, por amor”, que “passa pela vida mas cujas demonstrações de sacrifício, de amor e de afeto passam despercebidas — nunca vão estar nos manuais de história, nos programas de televisão, não se vai dizer ou escrever muito sobre elas”.

Jónatas Pires assume mesmo que em uma ou outra canção está “a homenagear e pegar nessas histórias” de gente que vive com muito suor, com lágrimas, com sacrifícios e que só raramente inspira a escrita de cantigas. “Muitos dos privilégios de que gozamos assentam no sacrifício de muitas pessoas anónimas — e a pandemia veio de alguma forma revelar isso, embora não fosse uma realidade desconhecida”, vinca. Decifrar mais profundamente as intenções líricas é que já não quer: “Uma das coisas que quero deixar em aberto é a possibilidade de cada ouvinte poder ir à procura do reflexo daquilo que lá está na sua própria vida”, remata.

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