Mais tarde ou mais cedo, o dia teria de chegar. Depois de 38 anos no poder, dos quais 23 foram passados em guerra civil, José Eduardo dos Santos prepara-se para deixar a presidência de Angola. Agora, poucos dias antes de fazer 75 anos, o homem que a propaganda do regime chamou alternadamente de “arquiteto da paz” e “camarada Presidente”, prepara-se para fechar a porta do Palácio do Futungo. Mas irá verdadeiramente entregar as chaves ao próximo inquilino do palácio presidencial? Ou deixará a porta apenas encostada, entrando e saindo sempre que lhe aprouver?
Nos últimos tempos, José Eduardo dos Santos tem dado a entender que a última opção é a mais provável. A prova disso é a maneira como, à medida que se aproxima a hora de sair, tem distribuído tarefas e cargos àqueles que lhe são mais próximos, na sua grande parte familiares. “É uma obsessão”, garante Marcolino Moco, ex-primeiro-ministro pelo MPLA e antigo secretário-executivo da CPLP, que nos últimos anos tem sido um dos críticos mais destacados de José Eduardo dos Santos.
“Estamos a falar de interesses económicos, mas também de influência militar, diplomática e capacidade de se poder mover em diferentes meios”, sublinha Paulo Inglês, investigador angolano da Universidade de Munique. “Interessa-lhe ser defendido pelos media públicos caso seja atacado de fora, interessa-lhe ter controlo militar, interessa-lhe influência política, para que não seja atacado publicamente por outras pessoas do MPLA, e interessam-lhe setores como o petróleo e os diamantes, tal como a possibilidade de negócios com o Estado.”
“A testa do mais velho impede a chuva”
A tendência de entrega de setores e ativos à família do Presidente é longa e confirmada. E acentuou-se à medida que José Eduardo dos Santos se aproximou cada vez mais da porta de saída e a sua saúde piorava, obrigando-o a visitas frequentes e estadias longas numa clínica em Barcelona.
Em 2012, foi criado o Fundo Soberano de Angola (FSA), que conta com uma carteira de investimentos públicos no valor de 5 mil milhões de dólares. Ao início, o Presidente nomeou o seu filho José Filomeno, mais conhecido como Zenú, para ser administrador. Um ano mais tarde, elevou-o ao posto de chairman, o mais alto. O nome de Zenú viria a ser mundialmente conhecido aquando da publicação dos Panama Papers. Naquela investigação, era revelado um alegado esquema de desvio de dinheiro do FSA, do qual faziam parte um fundo sediado na Suíça e o Banco Kwanza Invest, que Zenú ajudou a fundar em 2008. Em 2016, foi eleito para o Comité Central do MPLA.
Outro passo significativo, provavelmente o mais importante na tentativa de perpetuação da riqueza e do domínio da família dos Santos, deu-se em junho de 2016, quando Isabel dos Santos, a filha mais velha, foi nomeada pelo pai para presidir à petrolífera estatal, a Sonangol. Não é um lugar de somenos — é, em certa medida, o segundo posto mais importante em Angola, depois do próprio Presidente. Em julho de 2017, de acordo com o relatório da Organização de Países Exportadores de Petróleo, Angola foi o sétimo maior produtor de crude do mundo e o primeiro em África. Quando foi nomeada para dirigir a Sonangol, Isabel dos Santos já era a mulher mais rica de África — com investimentos em telecomunicações e supermercados, entre outros.
Zenú e Isabel são os dois filhos mais poderosos de José Eduardo dos Santos — mas a lista não termina aqui. Outro exemplo é o de Welwistchea dos Santos, mais conhecida por “Tchizé”, filha do segundo casamento do Presidente angolano. Em 2009, quando era deputada na Assembleia Nacional pelo MPLA, passou a dirigir o segundo canal da TPA, a televisão estatal angolana, tal como as suas transmissões internacionais. Em 2012, fundou a produtora Semba Comunicação, juntamente com um irmão, que vende conteúdos tanto a Angola (inclusive para a TPA) como a Portugal. Em 2015, ajudou a criar o Banco Prestígio, do qual detém uma quota de 30%. Tchizé, que é suspeita de branqueamento de capitais em Portugal, entrou para o Comité Central do MPLA em 2016.
Depois, há José Paulino, conhecido por Coreon Dú, o irmão que fundou a Semba Comunicação com Tchizé. Em 2012, o produtor e músico esteve por trás de uma campanha publicitária e de soft-power financiada pelo Estado angolano com um total de 40 milhões de dólares. Destes, 23 milhões foram investidos para comprar tempo de antena na versão internacional da CNN. O objetivo seria atrair investimento estrangeiro para Angola, na altura do boom. Quem quisesse fazê-lo, teria de apresentar um projeto à ANIP, à altura o organismo estatal responsável por receber as candidaturas de investimento. A presidente daquele organismo também fazia parte da árvore genealógica da família dos Santos. Tratava-se de Luísa Perdigão Abrantes, ex-mulher do “camarada Presidente” e mãe dos irmãos Tchizé e Paulino.
A lista de filhos ilustres, e cada vez mais poderosos, de José Eduardo dos Santos fecha-se com Eduane Danilo, o filho mais velho da terceira e atual mulher do Presidente, Ana Paula. Em maio deste ano, Eduane Danilo foi alvo de chacota, e sobretudo de indignação, por ter sido filmado a gastar 500 mil euros num leilão de beneficiência em Cannes, rodeado de celebridades mundiais. Inicialmente, pensava-se que o jovem de 26 anos tinha comprado um relógio — mas ele próprio, mais tarde, quis esclarecer que comprou um conjunto de fotografias de George Hurrell. O valor, porém, continuou a ser fixado no meio milhão de euros. Quando subiu ao palco do leilão, o filho do “arquiteto da paz” foi saudado, juntamente com a sua mulher, por Will Smith. “Eles parecem demasiado jovens para terem 500 mil euros”, disse o ator norte-americano. A fonte do dinheiro poderá estar no Banco Postal de Angola, do qual Eduane Danilo é acionista e fundador. Além disso, terá estado presente em negociações entre o Estado angolano e a Vodafone.
Mas há mais. Os últimos meses de José Eduardo dos Santos no poder têm sido marcados por decisões, decretos e leis que podem aprofundar o seu poder, mesmo depois de fechar — ou encostar — a porta do palácio de Futungo.
Em junho, a Assembleia Nacional, por proposta do MPLA, aprovou o Estatuto dos Antigos Presidentes da República de Angola. Nele está prevista a concessão ao “camarada Presidente” de residência oficial, despesas pagas e um salário correspondente a 80% do salário fixado para o Presidente. E imunidade.
José Eduardo dos Santos deixa poder mas com imunidade, subvenção vitalícia e casa oficial
Em julho, o parlamento aprovou um decreto de José Eduardo dos Santos que confere ao Presidente cessante o poder de nomeação das chefias das Forças Armadas Angolanas, da Polícia Nacional e dos Serviços de Inteligência por um período de quatro anos, prorrogáveis por igual período. Na prática, José Eduardo dos Santos poderá nomear pessoas da sua confiança para esses cargos durante os próximos oito anos.
E, também em julho, como o Observador noticiou, o Presidente revogou um despacho do Chefe da Casa Civil onde este, atendendo ao fim do mandato presidencial, pedia aos diretores e gestores de empresas públicas angolanas (onde se incluem Isabel e Zenú dos Santos) que fizessem uma “passagem de pastas” antes das eleições. No despacho em que revogava esta ordem — que não era clara se exigia uma prestação de contas a ser apresentada ao próximo Presidente ou, simplesmente, que os cargos de direção fossem vagados — José Eduardo dos Santos parece ter querido deixar uma mensagem subliminar. Além de dirigir o documento ao ministro da Economia, enviou-o com conhecimento aos presidentes e gestores de órgãos públicos. No topo da vasta lista, e graficamente destacados dos demais, surgem Isabel e Zenú dos Santos.
Passo a passo, José Eduardo dos Santos parece ter criado um sistema de poder e controlo inspirado num provérbio do povo Côkwe, oriundo do nordeste de Angola: “A testa do mais velho impede a chuva”.
Olhar por si e pelos seus
Entre os analistas e especialistas contactados pelo Observador, é quase consensual que José Eduardo dos Santos tem procurado, nos últimos anos, e com particular ênfase nos últimos meses, perpetuar o seu poder e condicionar as ações do próximo Presidente.
“Há aí um jogo”, aponta Paulo Inglês. “Há esta suspeita, porque é difícil saber se isto são os homens de José Eduardo dos Santos, que querem ter influência no poder que vem, ou se é uma espécie de acautelamento de José Eduardo dos Santos, para não sofrer uma espécie de vingança da parte de grupos que ele afastou e que depois possam surgir com o novo Presidente.”
Ao telefone com o Observador, o académico nascido em Lobito refere que ambas as hipóteses devem estar “certas”. “Primeiro, ele quer acautelar-se e a família também. Mas depois também há uma luta de poder e uma espécie de entourage de José Eduardo dos Santos, que quer manter influência, ou pelo menos não fechar os canais para os seus interesses.”
Marcolino Moco refere uma tradição de líderes africanos na altura de abandonar o poder e insere nela o Presidente de Angola. “José Eduardo dos Santos, como muitos líderes africanos, tem receio por causa dos exageros e das arbitrariedades de todo o tipo cometidos durante longos consulados”, refere ao telefone. “Quando chega aquela altura inevitável de abandonar o poder, compreende-se que haja estas preocupações.”
Jon Schubert, antropólogo político e especialista em Angola na Universidade de Genebra, aponta no mesmo sentido. “O importante é que pelo menos os ativos sejam protegidos, que os bens da família fiquem a salvo e que nem ele nem os filhos sejam depois perseguidos”, refere. A ideia é também sublinhada por Didier Péclard, colega de Jon Schubert e co-diretor da revista Politique Africaine. “Quando sai um Presidente que está no poder há 38 anos, muitas vezes essa saída só é bem preparada com a repartição das cadeiras dentro da família alargada, os antigos futunguistas“, diz ao Observador.
Para Carlos Rosado Carvalho, economista, jornalista e diretor do jornal angolano Expansão, existem “sinais mistos” da parte de José Eduardo dos Santos. De um lado, refere que o ainda Presidente puxou para si a decisão de reconduzir Carlos Sumbula na direção da Endiama (empresa estatal que explora a indústria diamantífera) e também a de escolher as chefias militares e policiais para pelo menos os próximos quatro anos. Por outro lado, sublinha Carlos Rosado Carvalho, o Presidente José Eduardo dos Santos escolheu deixar para o seu sucessor a nomeação da direção da companhia aérea TAAG, depois de ter demitido em julho a equipa liderada pelo inglês Peter Hill.
Sobre a revogação de José Eduardo dos Santos do despacho onde o chefe da Casa Civil pedia que os administradores públicos fizessem uma “passagem de pastas”, Carlos Rosado Carvalho não vê aí uma tentativa de o atual Presidente impor a sua vontade ao homem que se segue. “Não faz sentido”, sublinha. “Foi dito que era eventualmente por causa dos filhos, quem for eleito Presidente da República vai ter o poder de demitir quem quiser e quem lhe apetecer. Na prática, é isso. Segundo a ideia dos hiperpoderes que o Presidente angolano tem, ele pode fazer o que quiser sem dar cavaco a ninguém“. Seja esse Presidente José Eduardo dos Santos ou João Lourenço, o candidato do MPLA e favorito a vencer as eleições desta quarta-feira, 23 de agosto.
Ao telefone com o Observador, Lopo do Nascimento sublinha a mesma ideia. “Quem vem não é obrigado a seguir essas coisas, pode mudar os diretores, os chefes, quem manda”, explica o ex-primeiro-ministro do MPLA e dos tempos do Presidente Agostinho Neto. “A nomeação é feita pelos chefes de Estado, não há nenhuma lei que diga que quem foi nomeado não pode sair.”
O que fará João Lourenço com tudo isto?
Em dezembro de 2016, João Lourenço foi indicado pelo MPLA como o candidato às eleições desta quarta-feira. Discreto e silencioso, o ministro da Defesa e número dois do MPLA surgiu para a primeira linha, depois de aquelas que poderiam ser as primeiras escolhas de José Eduardo dos Santos — o vice-Presidente, Manuel Vicente, descartado após acusação do Ministério Público português de ter corrompido um procurador; ou Zenú dos Santos, hipótese que não terá sido bem vista dentro do Bureau Político do MPLA — terem caído por terra.
A campanha de João Lourenço tem assentado no slogan “melhorar o que está bem e corrigir o que está mal”. Entre aquilo que “está mal”, além da saúde e da educação, onde Angola aparece colocada entre os piores países do mundo, está também a corrupção. Segundo o ranking de perceção da corrupção da Transparency International em 2016, Angola é o 164º país mais corrupto entre os 176 contemplados. Em África, há apenas seis países em pior posição: Eritreia, Guiné-Bissau, Líbia, Sudão, Sudão do Sul e Somália. Porém, todos estes têm algo em comum: são internacionalmente reconhecidos como Estados falhados. Coisa que Angola, em bom rigor, não é.
“É preciso que reconheçamos as nossas falhas, só há progresso, evolução, se nós reconhecermos as nossas falhas. Vimos pedir aos eleitores o voto para ‘melhorar o que está bem e corrigir o que está mal’ e temos a certeza de que, com o vosso apoio, vamos vencer mais esse grande desafio”, referiu João Lourenço num discurso em julho. “Que fique claro que, se falharmos neste combate à corrupção, então falharemos também na melhor organização da nossa economia”, acrescentou.
Porém, tudo isto é dito por um homem que é um conhecido lealista de José Eduardo dos Santos. João Lourenço, militar experiente que entrou para as fileiras militares do MPLA desde a guerra pela libertação na República do Congo em Agosto de 1974, e que nelas continuou ao longo da Guerra Civil de Angola, é uma figura próxima de José Eduardo dos Santos. Há quem o descreva mesmo como um futunguista.
Ora, poderá o combate à corrupção ser feito pelo número dois de um partido que, mais de 15 anos depois do advento da paz, continua frequentemente a confundir-se com o Estado angolano e com as estruturas de poder do país?
Marcolino Moco diz que dá o “benefício da dúvida” a João Lourenço. “É preciso descentralizar o Estado”, garante. “José Eduardo dos Santos resistiu até onde pôde ao estabelecimento de poder autárquico, tudo é nomeado de forma discricionária, não há checks and balances em relação às principais figuras. João Lourenço aponta para caminhos diferentes”, garante. Ainda assim, relativiza as promessas de João Lourenço. “Esses caminhos sempre foram apontados por José Eduardo dos Santos. Mas, sendo outra pessoa a apontá-los, há sempre uma esperança.”
Para Jon Schubert, é “pouco credível” a promessa de João Lourenço de combate à corrupção. “Ele tem de ser um candidato credível para a população, apelando à mudança, e também para o MPLA, apelando à continuidade. Mas como vai ele conjugar o combate à corrupção ao mesmo tempo que José Eduardo dos Santos ficará como presidente do partido até 2021 [ano em que haverá o próximo Congresso do MPLA]? Isso é pouco credível e as pessoas não acreditam nisso.”
Já para Lopo do Nascimento, basta querer. “Todos nós somos fiéis antes de estar no poder”, diz ao Observador. “Mas quando ele tiver o poder de mudar, só será fiel se quiser.”