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[Durante esta semana, o Observador viaja em reportagem pela Irlanda do Norte, pela Escócia e por Inglaterra para acompanhar uma das eleições mais decisivas na história do Reino Unido]
Paul Gallagher estava em casa, a ver televisão com os pais e os irmãos, quando vários homens armados, com as caras tapadas por passa-montanhas negros, entraram em sua casa. Apontaram as metralhadoras à cara de todos os membros da família Gallagher e amarraram-nos. O ano era 1994 e aquele era o bairro de Suffolk Estate, em West Belfast. Os Troubles, o conflito sectário que opunha católicos e protestantes, nacionalistas e unionistas, ainda durava. Os homens armados pertenciam à Força Voluntária de Ulster (UVF na sigla original), uma das milícias unionistas, e entraram na casa da família Gallagher por ser próxima da de um vizinho que pertencia ao Exército Republicano Irlandês (IRA em inglês), o alvo a abater nessa noite.
Porém, porque o vizinho tardava em chegar a casa, fartaram-se de esperar. Decidiram sair, mas não sem antes deixar um presente de despedida: uma rajada de tiros contra a fachada. Seis deles atingiram Paul, que ficou gravemente ferido. Uma das balas ficou alojada na sua coluna vertebral — e o jovem de 21 anos nunca mais voltaria a andar.
Paul conta esta história, sem pausas ou lágrimas, no gabinete onde trabalha como investigador da Queen’s University, em Belfast. Como presidente da Associação de Vítimas dos Troubles, já a partilhou muitas vezes, com muita gente. Prefere antes soltar algumas gargalhadas, como quando recorda ao Observador como foi crescer num bairro católico, no final da década de 80, na capital da Irlanda do Norte: “Enquanto criança, cresci a ver uma vedação do outro lado da janela. Às vezes passávamos perto do Muro da Paz e levávamos um enxerto de porrada dos miúdos mais velhos do outro lado. Portanto, eu passei a ir com uma barra de ferro na mão — mas levava porrada à mesma.”
“Os meus pais diziam-me para não arranjar problemas com o Exército, por isso, quando via um soldado, dizia ‘sim senhor’ e depois mostrava-lhe o dedo do meio quando ele virava costas”, diz, com humor. De seguida, o rosto fecha-se e o sobrolho fica mais carregado: “Quando tinha 14 anos, vi uma rapariga ser atingida a tiro por um soldado, mesmo à minha frente”, recorda, sem adiantar mais pormenores.
Mais de 20 anos passaram desde esses momentos — e desde que Paul ficou preso à cadeira de rodas com a ajuda da qual se movimenta. Dedicou toda a sua vida, desde então, a tentar ajudar vítimas do conflito, como ele. Ao mesmo tempo, mergulhou na carreira académica, estando à beira de completar um doutoramento na área da Sociologia sobre precisamente as vítimas dos Troubles. Foi tudo há tanto tempo: o IRA já pousou as armas, as UVF desapareceram enquanto organização, o Acordo de Sexta-Feira Santa foi assinado e as torres de vigia na fronteira entre as duas Irlandas foram deitadas abaixo. Mas, para quem chega a Belfast no final do ano de 2019, não parece ter passado assim tanto tempo. À primeira conversa sobre política, não passam dois minutos sem que alguém mencione “o conflito”. “Não nos andamos a matar uns aos outros, mas o conflito nunca acabou”, diz Paul, ao fim de pouco tempo de conversa com o Observador. “Simplesmente, a batalha agora faz-se na arena da política.”
Falls Road e Shankill Road, as duas faces da mesma moeda
James Anderson concorda — mas acha que não vale a pena falar do passado sem olhar para o presente e para o futuro. “Neste momento, a independente Sylvia Hermon é a única deputada da Irlanda do Norte a favor do Remain em Westminster. Estamos numa região onde o voto no referendo do Brexit foi 56% Remain e só temos uma deputada a favor da manutenção na UE…” O professor de Desenvolvimento Urbano e Política aponta, uma e outra vez, que não é possível falar nas tensões que se vivem na Irlanda do Norte sem olhar para o Brexit.
[As eleições britânicas estão a ser o tema do Zoom desta semana na Rádio Observador. Pode ouvir aqui o último sobre Nigel Farage e o Partido do Brexit]
A situação está longe de ser simples: uma região que é favorável ao Remain, mas que é maioritariamente representada no Parlamento nacional por deputados a favor do Leave, do Partido Democrático Unionista (DUP). Partido esse que, como parceiro de coligação dos governos de Theresa May e de Boris Johnson, teve um papel fulcral para representar os interesses da região num futuro acordo para o Brexit. Até que acabou por ser ultrapassado por Boris e não ver as suas exigências — manutenção de regras integralmente iguais para a Irlanda do Norte e para o resto do Reino — respeitadas no acordo alcançado com Bruxelas. Ao mesmo tempo, a região é abalada pelo facto de não ter governo regional, em Stormont, há mais de dois anos, por falta de acordo dos dois principais partidos (DUP e Sinn Féin).
Tudo assenta na geografia, claro está. Uma ilha maior, outra mais pequena. Dentro da pequena, dois países — a República da Irlanda, que ocupa mais espaço, e o Reino Unido, presente na Irlanda do Norte. A separá-los, uma fronteira invisível, como decreta o Acordo de Sexta-Feira Santa para manutenção da paz. Acordo esse que, temem todos, possa ser posto em causa se a situação não for acautelada com a saída do mercado único europeu.
Também aqui, na capital norte-irlandesa, tudo assenta na geografia. “Belfast é um puzzle de áreas católicas e protestantes”, explica o professor James Anderson, enquanto leva o Observador de carro por várias estradas da capital. Atravessada uma ponte, avisa: “Estamos em território totalmente católico, aqui”. Virando à esquerda no cruzamento, não tarda até chegarmos a Falls Road, a artéria principal do nacionalismo católico de Belfast. As casas de tijolo sucedem-se umas às outras, sem nada que as distinga a não ser os murais coloridos. Alguns recordam os que morreram. Outros celebram homens armados do IRA. Numa das paredes exteriores da sede do Sinn Féin, o partido nacionalista republicano associado ao Exército de Libertação, há um mural gigante em memória de Bobby Sands, o membro do IRA que morreu na prisão em greve de fome.
O passeio continua e, basta mais uma curva à esquerda, para se verem umas altas estruturas de ferro no meio da estrada. “Vê aqueles portões?”, pergunta James, com uma mão no volante e outra apontando janela fora. “Durante os Troubles, estavam sempre fechados. Só eram abertos para deixar passar o Exército.” Do outro lado fica Shankill Road, o coração da zona unionista de North Belfast. No início dos Troubles, quando o ressentimento de décadas entre católicos e protestantes rebentou e a violência começou a escalar, os moradores das duas estradas começaram a improvisar barricadas para proteger o seu lado. “As pessoas iam buscar camas velhas, mesas de cozinha, tudo o que conseguissem para criar uma barreira e ficarem assim a salvo de ataques do outro lado”, afirma o professor, afagando a barba branca. Com o tempo, as barricadas tornaram-se cercas, as cercas muros de pedra. Como continuava a ser possível atirar projéteis e pedras para o outro lado, as autoridades foram construindo mais e mais. Atualmente, os muros têm mais de sete metros de altura.
De acordo com o geógrafo Brendan Murtagh, 67% dos episódios de violência durante os Troubles em Belfast ocorreram a menos de 500 metros de distância de um destes muros, espalhados um pouco por toda a cidade. James, de olhos fixos neste que separa Falls Road de Shankill Road, continua a falar: “Quando o Acordo de Sexta-Feira Santa foi assinado, falou-se em deitar abaixo os muros, mas as pessoas que vivem aqui, de ambos os lados, não quiseram. Eu entendo-os”, diz, fazendo uma pausa. “Se eu vivesse aqui também não queria que os deitassem abaixo. Nunca se sabe se as coisas não podem descambar.”
Hoje chamam-lhes “Muros da Paz”. Mas, de cada lado de um destes muros, continuam a existir comunidades profundamente segregadas. Em Falls Road, é possível ver a bandeira tricolor da República da Irlanda um pouco por todo o lado. Há igrejas católicas, com estátuas da Virgem Maria, totalmente brancas, pairando solitárias nos jardins que rodeiam os edifícios. Veem-se crianças na rua e as paragens de autocarro têm os nomes escritos tanto em inglês como em gaélico, o idioma nativo da Irlanda. Basta andar menos de 20 minutos a pé para encontrar um dos portões abertos que separa a zona católica da outra — com a certeza de que, todas as noites, são fechados, depois de cada um recolher à sua área.
Ainda hoje, 93% das crianças na Irlanda do Norte andam em escolas segregadas, ou claramente católicas ou de origem protestante, conta a BBC. A segregação é de tal forma intensa que, de acordo com um estudo de 2002, citado pelo Guardian, 68% dos jovens entre os 18 e os 25 anos ouvidos pelo académico Peter Shirlow confessaram nunca ter tido uma conversa de relevo com uma pessoa da outra comunidade.
Depois de atravessado um dos portões no Muro da Paz que separa Falls Road da zona unionista, não é preciso andar muito mais para chegar a Shankill Road. O contraste não podia ser maior: em vez de bandeiras tricolores, estátuas da Virgem ou palavras escritas em gaélico, sobressai o vermelho e o azul, as cores da Union Jack, a bandeira nacional do Reino Unido. Os murais coloridos continuam a existir, mas é mais habitual ver a palavra Ulster e retratos de soldados do Exército britânico. É como passar para o outro lado do espelho: em vez de um “Jardim da Memória”, como o de Falls Road, há um “Jardim da Reflexão”, ambos em memória das vítimas de cada lado. Em vez de um restaurante animado por música gaélica, há uma casa de chá perfeitamente britânica e fish and chips em cada esquina.
Em vez de alguém atacado pelas UVF, como Paul, há quem tenha sentido todo o impacto da fúria do IRA. “Os atentados em Shankill Road, de 1993, aconteceram ali em baixo, está a ver?”, diz Grace (nome fictício), de 64 anos. Prefere não dar o seu verdadeiro nome, mas o casaco adornado com o escudo de uma das organizações protestantes da zona não deixa margem para dúvidas de que é unionista de gema. “Nasci e cresci em Shankill Road, toda a minha vida”, confessa, os olhos azuis arregalando-se. Prefere não dar o seu verdadeiro nome, nem ser fotografada. “É complicado”, diz apenas.
Se, no início da conversa, parecia algo tímida e relutante em partilhar as suas opiniões, não tardou a que cumprisse a regra dos dois minutos para falar nos Troubles. “Lembro-me perfeitamente dos atentados aqui na Shankill Road”, diz, referindo-se ao ataque à bomba levado a cabo por dois membros do IRA, que acabou por matar dez pessoas. “Calhou-me a mim, juntamente com outras pessoas, tentar explicar aos filhos de um casal que morreu na explosão o que tinha acontecido. Eram um rapaz e uma rapariga. Lembro-me tão bem. Ele só perguntava: ‘Porque é que Deus deixou que isto acontecesse?’ Não tive resposta para lhe dar.”
https://www.youtube.com/watch?v=jmwItTknrsk
Quando o trauma passa de pais para filhos
Ao todo, só nesta zona de North Belfast, mais de 500 pessoas foram mortas durante os Troubles. É um legado de violência cujos sobreviventes ainda carregam — não só nas histórias que foram passando aos filhos, muitas vezes pintadas com laivos de heroísmo, mas também nos traumas que, sem se aperceberem, transmitiram.
Siobhan O’Neill dedicou a vida toda a estudar o impacto da violência sectária na Irlanda do Norte sobre a saúde mental dos residentes. “No estudo que fizemos em 2008, concluímos que 39% da população testemunhou algum tipo de violência traumática, o que é uma proporção muito alta”, conta ao Observador por telefone, a partir de Londonderry, outra cidade norte-irlandesa abalada pelo trauma, ou não fosse o local do famoso Bloody Sunday. “Temos uma geração que cresceu com algum grau de contacto com explosões, tiroteios, cadáveres. E, portanto, temos taxas de doença mental e de suicídio muito elevadas.”
Curiosamente, não apenas entre aqueles que são velhos o suficiente para terem vivido os Troubles. Também a geração seguinte sofre do mesmo mal, com o número de suicídios em tempos de paz a escalar face à era do conflito. Uma das explicações possíveis encontradas por O’Neill é aquilo a que chama de violência intra-geracional: quando se cresce numa casa onde o pai ou a mãe (ou ambos) testemunharam de perto a violência, é mais provável que haja consumo de álcool e de drogas e problemas mentais. E isso é absorvido pelos filhos. “Chamavam-nos os Bebés do Cessar-Fogo”, resumiu Lyra McKee, a jovem jornalista que foi morta a tiro em mais um episódio recente de violência sectária na Irlanda do Norte, há apenas oito meses. “Aqueles que são demasiado jovens para se lembrarem do pior do horror, porque ou andavam de fraldas ou tinham-nas largado há pouco quando o Cessar-Fogo foi estabelecido.” Os números apontados por McKee fazem gelar qualquer um: os Troubles mataram 3.600 pessoas, entre 1969 e 1998; depois disso, e até 2014, 3.709 suicidaram-se em tempos de paz.
“As taxas de suicídio geralmente são mais elevadas nas zonas que sentiram mais violência. Que, habitualmente, são exatamente as mesmas zonas onde há mais desemprego e dificuldades económicas. E, também, mais atividade paramilitar, ainda hoje”, aponta a psicóloga Siobhan O’Neill. Foi precisamente essa “atividade paramilitar” que custou a vida a Lyna McKee, em Londonderry. E que continua ativa, mesmo que escondida. As milícias populares sempre tiveram o hábito de aplicar “castigos”, como tiros em determinadas partes do corpo ou espancamentos, para resolver problemas dentro da própria comunidade. Um hábito que levou a cineasta Sinéad O’Shea a realizar, em 2017, o documentário A Mother Brings Her Son To Be Shot, precisamente sobre essa realidade. Os “castigos” são muitas vezes tiros nas rótulas, cuja dor os próprios pais das vítimas amenizam, obrigando os filhos a beber álcool. E a sua popularidade está a regressar: em 2018, o Guardian falava em 60% de aumento em apenas quatro anos.
O destino de um jovem na Irlanda do Norte parece hoje estar selado à nascença, tal como em 1968. O sítio onde se nasce determina grande parte da sua vida. Aqueles que conseguem ter mais posses ou estudos tendem a sair para Londres ou Dublin. Os que ficam têm duas hipóteses: ou se tornam apáticos perante a política ou se radicalizam.
O desprezo por Westminster e a influência (limitada) nos Comuns
Um sentimento que Paul Gallagher, ele próprio atingido a tiro, compreende bem: “O sectarismo está dentro de nós, está na nossa medula. É preciso tentar limparmo-nos dele. Crescemos nisto. E é preciso tentar pará-lo, caso contrário passa para as gerações seguintes.” Um esforço que, apesar de tudo, tem sido bem sucedido no seu caso. Paul Gallagher é casado com uma mulher de origem unionista, também de West Belfast. Mas admite que, mesmo em 2019, isso ainda não é fácil: “Há pessoas na família dela que nunca aceitaram a nossa relação.”
Apesar disso, o ativista vai tentando. Durante alguns anos, fez parte de um projeto de diálogo inter-comunidades. Fazia sessões com unionistas onde contava a sua história e garantia que, apesar das seis balas que as UVF colocaram no seu corpo, tinha ultrapassado o ressentimento. “Dava o melhor de mim para tentar ouvi-los e respeitá-los. Mas às vezes alguém ria-se quando eu contava a minha história e eu pensava ‘estou aqui a fazer o quê?’. É complicado”, assume. “Ainda há o cheiro do medo no ar. Ainda há quem me diga ‘levaste tiros, portanto devias estar envolvido nisso’. Há pessoas que foram vítimas em explosões e que ouvem coisas como ‘aposto que trazias a bomba contigo, para teres ficado tão ferido…’. É um mecanismo de defesa. As pessoas não conseguem aceitar que coisas deste género possam acontecer a gente boa, que não fez nada. Mas acontecem.”
O ressentimento, a desconfiança e o medo continuam a existir, sob a superfície. “Por vezes basta acontecer qualquer coisa pequena que isto ressurge de imediato”, confessa Paul, dando como exemplo os protestos de 2012, quando a comunidade unionista se manifestou pelo facto de ter sido reduzido o número de dias em que a bandeira nacional era exposta. “O trabalho de dois anos que tínhamos feito entre as comunidades foi pelo cano abaixo. As pessoas deixaram de aparecer nas sessões”, revela. Agora, com o Brexit, e a menos de uma semana das eleições que o poderão tornar definitivo, acha que está a acontecer o mesmo: “Está tudo dividido outra vez e os partidos estão a dar gás a isto.”
Do outro lado da cidade, em Shankill Road, Grace também se lamenta dos políticos. “Estou farta, farta, farta. Não querem saber de nós”, confessa esta unionista de 64 anos. “Não sei se o Boris nos vai tramar ou não, espero que não. Mas compete aos britânicos ganharem coluna vertebral e começarem a defender o povo deles aqui”, afirma, queixando-se do acordo do primeiro-ministro que estabelece uma espécie de fronteira invisível no mar da Irlanda, separando a Irlanda do Norte do resto do Reino Unido.
Apesar dessa descrença, garante que vai votar na próxima quinta-feira. “Sempre votei no DUP e vou continuar a fazê-lo. Aqui é assim, é preciso apoiar a gente da nossa comunidade. Faz parte de nós.” A juntar o útil ao agradável está o facto de o DUP ser o único partido na Irlanda do Norte que sempre defendeu abertamente o Brexit, com que Grace concorda. “Isto aqui é uma zona de gente pobre, mas trabalhadora. E quem trabalha está sempre a pagar. Quem não trabalha, não paga nada e há muitos imigrantes a chegar ao país que não trabalham. O Brexit iria ajudar nisso. Não é que eu esteja contra essas pessoas, é só porque algumas delas estão a tirar-nos trabalho”, afirma.
Paul Gallagher também irá votar e pela mesma lógica de Grace: apoiará o Sinn Féin, porque se considera nacionalista e de esquerda. O facto de o partido não ocupar os lugares no Parlamento por onde é eleito (por recusar reconhecer legitimidade à Coroa), não o incomoda. “Mesmo que eles tomassem posse, não ia fazer diferença nenhuma. Só iam gritar com eles todos os dias, ninguém ia respeitar o voto dos que os elegeram. Pelo menos aqui sentimos que estamos a gritar entre nós, não é Londres que está a gritar connosco.”
Uma lógica que, explica a psicóloga Siobhan, é fácil de explicar: “Com um governo regional que não funciona, as pessoas voltaram à base, voltaram aos partidos que sentem que as representam: o Sinn Féin e o DUP”, resume. “Este é o enquadramento da geração mais velha, que é a geração que maioritariamente vota.” É a chamada política “verde e laranja”, as cores dos nacionalistas e dos unionistas, que dominam toda a conjuntura da Irlanda do Norte.
O Brexit tem reforçado esta dinâmica, como explica o professor James Anderson: “Aqui vota-se muito de forma tática. E, com o Brexit, esse taticismo está a acentuar-se.” Em concreto, o professor refere-se às alianças feitas pelos partidos a favor do Remain em várias zonas de Belfast. É o caso do seu círculo eleitoral, em South Belfast, uma das zonas mais anti-Brexit de toda a Irlanda do Norte. O Sinn Féin abdicou do seu lugar na corrida para reforçar as hipóteses do Partido Trabalhista Social-Democrata (SDLP na sigla original) vencer contra os unionistas. Se Claire Hanna ganhar, como parecem indicar as sondagens, o DUP pode deixar de ser o único partido norte-irlandês a estar representado na Câmara dos Comuns como foi nesta legislatura.
O outro foco de tensão está no pólo oposto, em North Belfast, o local onde se situa a Shankill Road. O candidato do DUP é nada mais nada menos do que Nigel Dodds, o líder parlamentar do partido em Westminster. Só que, aí, o SDLP retribuiu o favor ao Sinn Féin e retirou-se da corrida. Mas o unionista conta com um trunfo: o Partido Unionista de Ulster (UUP), de cara lavada com um novo líder (Steve Aiken), irá concorrer em praticamente todos os círculos eleitorais da região, mas retirou-se da corrida em North Belfast. Pouco depois, soube-se que tal aconteceu depois de terem sido feitas ameaças por milícias a membros do partido.
“Se Dodds vencer, será em parte devido à violência paramilitar. O DUP ficou manchado”, analisa James Anderson. “Há muita intimidação a ser feita. Muitos católicos têm sido atacados”. Foi o caso de três famílias católicas que foram impedidas de se mudar para casas em North Belfast, por estas terem sido destruídas por forças radicais unionistas, partindo vidros, espetando Union Jacks nas janelas e escrevendo graffitis nas paredes, com a palavra “taig”, um insulto utilizado na região contra os católicos. Os casos estão a ser investigados como sendo crimes de ódio.
É uma realidade que instila medo entre os nacionalistas que ainda se recordam dos infames Shankill Butchers, conhecidos por raptar, torturar e degolar católicos durante os Troubles. Mas as culpas estão bem distribuídas por ambos os lados: do outro lado da campanha, também em North Belfast, o Sinn Féin tem feito eventos que contam com a presença de Seán Kelly. E quem é Seán Kelly? Precisamente o bombista sobrevivente dos atentados de Shankill Road. “As vítimas aqui são usadas no futebol político”, suspira Paul Gallagher. “O Seán Kelly? A sério? Como é que têm lata para esfregar isso na cara das pessoas?”, questiona.
“O Brexit trará o regresso dos Troubles? Essa é a questão que preocupa as pessoas”
No meio de toda esta tensão, o Brexit dá gás à campanha em alguns círculos eleitorais e toca em pontos que muitos já pensavam ser passado. É o caso da ideia da reunificação das Irlandas, com a Irlanda do Norte a separar-se do Reino Unido e a juntar-se à República da Irlanda. O Sinn Féin sempre defendeu esta proposta, mas ela nunca colheu grande apoio, mesmo entre a comunidade nacionalista. “A ideia da reunificação estava adormecida. Não estava morta, mas estava dormente”, explica James. “A estratégia do Acordo de Sexta-Feira Santa tinha resultado, no sentido de minimização da fronteira. As pessoas gostavam de usufruir do NHS [SNS britânico] e poder ir trabalhar ou estudar ao outro lado. Até 2016, a ideia estava adormecida. Ninguém queria saber, era como se a fronteira não existisse. E depois surgiu o Brexit.”
As questões económicas pesam: com um comércio estimado de 43 mil milhões de libras por ano entre as duas Irlandas, qualquer nova fronteira pode levar a um rombo na economia local. São várias as indústrias que dependem de materiais que cruzam a fronteira: o caso mais flagrante é o da Guinness, a cerveja irlandesa que é feita em Dublin, engarrafada em Belfast e de novo enviada para Dublin. No meio deste cenário, rapidamente surgiram sondagens a dar conta de um maior interesse pela ideia de reunificação na Irlanda do Norte — neste momento, 45% são contra e 46% a favor. Mas a demografia pode contribuir ainda mais para acentuar o fervor pró-reunificação, já que os unionistas tendem a ser mais velhos e o número de protestantes está a diminuir.
E o principal motor desse desejo não é económico, crê o professor James: “‘O Brexit fará com que os Troubles recomecem? Essa sim, é a questão que preocupa as pessoas.” Uma preocupação que, para os unionistas do DUP, é infundada. A líder do partido, Arlene Foster, já afirmou ser contra o facto de “umas quantas pessoas que tiveram uma experiência limitada dos Troubles na Irlanda do Norte andarem aí a atirar ameaças de violência como se isto fosse uma moeda de troca no processo negocial”.
Mas, para o professor de Desenvolvimento Urbano e Política, não há dúvidas de que o risco do regresso da violência é real: “Uma fronteira terrestre seria maná vindo do céu para as milícias nacionalistas que acham que o Sinn Féin se vendeu. Podiam mesmo matar funcionários alfandegários e, depois, isso poderia levar a potencial conflito na fronteira”, aponta. “Também no caso da fronteira marítima, embora o risco seja menor, há potencial para problemas. Imaginemos que são instalados controlos alfandegários no porto de Larne, uma zona fortemente unionista. Os funcionários alfandegários podem começar a ser intimidados. E a violência tem sempre potencial para escalar. Não é preciso muita imaginação para pensar no que pode vir a acontecer”, profetiza.
Os sinais têm sido dados por algumas bolsas mais radicalizadas. O acordo de Boris Johnson, que irritou profundamente a comunidade unionista, levou a queixas dos grupos protestantes mais duros. “As pessoas andam a dizer ‘basta, temos de fazer alguma coisa’”, avisou recentemente James Bryson, um dos ativistas unionistas radicais mais conhecidos do país.
Do lado republicano, também não falta quem esteja radicalizado, como avisou a cineasta Sinéad O’Shea no ano passado: “Algumas das pessoas que conheci quando fiz o meu documentário estão só à espera de uma desculpa para regressar aos Troubles. Não recuperaram do conflito nem aceitaram que o processo político lhes exige que avancem. Continuam a alimentar ressentimentos, continuam a conspirar, transportam consigo armas e até anseiam por ter mais e melhores armas. Sentem falta do drama da guerra e da identidade que lhes fornecia.”
“Isto é como uma ferida que continua inflamada, cheia de pus, ao longo dos anos. Precisava de ser lancetada, para a infeção sair e poder começar-se de novo. Mas ninguém quer fazer isso, é demasiado doloroso”, analisa Paul Gallagher. Olhar para o passado e escarafunchar na ferida é demasiado complicado, demasiado difícil. Veja-se o caso da campanha pelas pensões para as vítimas dos Troubles, que Paul levou a cabo durante dez anos. Finalmente, conseguiu que Westminster aprovasse a sua atribuição, que deverá começar em maio de 2020. Mas o ativista ainda lamenta que tenha havido exceções para os terroristas, nomeadamente do IRA. “O Exército e a polícia também recebem pensões e alguns dos seus membros também estiveram envolvidos na violência. É fácil culpar só os terroristas. Isto deixou-me um gosto desagradável na boca”, afirma.
Já Grace, que deseja acima de tudo focar-se no Brexit e espera que o DUP seja finalmente respeitado, diz que os avisos de um possível regresso da violência não passam de histórias de terror contadas pelos políticos para conseguir votos. “Mas é claro que espero que isso não aconteça. Aqui em Shankill vimos pessoas a ser atacadas, vimos tudo a arder. Não quero que os filhos de ninguém tenham de passar por isso, independentemente da religião que tenham”, diz, com a voz baixa mas firme e estendendo a mão para a pousar no meu braço. “Os Troubles foram há muito tempo, mas ainda há muito ódio. Se alguém matou o meu tio ou o teu tio… Há famílias que não conseguem ultrapassar isso. E não podemos culpá-los.”
A mulher protestante suspira. “Este país é complicado, é diferente de tudo o resto. E há bem e mal em todo o lado.” Quanto à eleição de quinta-feira, só abana a cabeça em tom de descrédito: “Eles andam por aí a dizer coisas, mas… No final de contas, a gente sabe lá”, diz. Apesar das dúvidas, votará no mesmo de sempre, no quadradinho com as letras vermelhas do DUP.
Também Paul, apesar das críticas a Séan Kelly e da desilusão com os políticos, optará pelo Sinn Féin. “As pessoas olham para isto como se fosse um tema a preto e branco, mas é totalmente cinzento”, afirma este católico, que ainda vive na mesma casa onde foi atacado. “Na noite em que fui ferido, o meu irmão queria ir a uma zona protestante com uma faca e matar alguém. Felizmente, a minha família impediu-o, mas eu compreendo. No calor do momento, as merdas acontecem e as pessoas reagem. E não foi só o IRA, foi também assim com as UVF e com o Exército. Ou até com as pessoas que simplesmente ajudavam a passar armas de um lado para o outro. Houve diferentes níveis de envolvimento, mas quem disser que esteve fora disto está só a mentir a si próprio”, aponta.
Paul aperta as duas mãos uma na outra, pousadas em cima da mesa do seu escritório, na Queen’s University — a primeira instituição de ensino criada em Belfast sem qualquer denominação religiosa oficial. A grossa aliança dourada, símbolo do casamento de seis anos com uma unionista, brilha-lhe no dedo. A voz não lhe treme quando diz as seguintes palavras sobre a cidade onde cresceu: “Esta foi uma guerra suja. Vivíamos num sítio sujo. Ninguém aqui está limpo.”