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FOTO: João Porfírio/OBSERVADOR
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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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Teletrabalho? "Em Portugal, muitos gestores não confiam nas pessoas que trabalham com eles"

O "voluntarismo não é infinito" e os gestores não podem esperar que as pessoas voltem ao trabalho, no pós-férias, com a mesma mentalidade que marcou o início da pandemia. Entrevista a Nadim Habib.

Não, não é comum fazer-se duas entrevistas à mesma pessoa no espaço de um ano. Pelo menos, entrevistas de food for thought como as que se obtêm quando se fala com Nadim Habib. Mas estes não foram 12 meses quaisquer e, como reconhece o economista, consultor e professor na Nova SBE, a crise que surgiu subitamente “destapou muitos dos problemas de produtividade” que existem há muito na economia portuguesa – a questão é se vamos aproveitar a crise para mudar ou se vamos voltar ao “antigamente”.

O especialista em gestão empresarial e produtividade defende que esta crise demonstrou como “ter uma empresa para substituir um emprego não é solução. Porque uma empresa que não gera receitas suficientes para construir um balanço que dá folga para três meses de salários, sem faturar, não é uma empresa”. Para isso, é preciso uma coisa “rara” em Portugal: aplicar modelos de gestão que procurem ser o melhor em alguma coisa, não apenas ser “suficientemente bom”.

Nadim Habib acrescenta que foi “impressionante” como gestores e trabalhadores reagiram à emergência mas avisa, à beira do regresso pós-férias, que o “voluntarismo das pessoas não é infinito”. “Estar nesse regime reativo – em “modo crise mundial”, com grande voluntarismo – 30 dias tudo bem, 60 dias ok… Quando chegamos a 90 dias já temos muita gente em burnout“, avisa. A boa notícia é que é inevitável que desapareçam algumas coisas “estúpidas” na forma como teimamos em trabalhar – e o teletrabalho (ou omnitrabalho, termo que prefere) terá de ser cada vez mais uma realidade. Para que isso aconteça, além de uma nova “linguagem” organizacional, é preciso que os gestores confiem realmente nas pessoas com quem trabalham.

“Trabalhar até às 18h ou 19h todos os dias? ‘Sorry’, isso simplesmente não é natural”

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“O trabalho já antes estava a entrar nas nossas casas”

Na entrevista que fizemos há um ano destacámos aquela ideia de que, na sua opinião, não era natural para uma pessoa trabalhar todos os dias até às 18h ou 19h – que isso era um sinal de problemas de produtividade nas empresas. Com esta pandemia, com tantas empresas em teletrabalho, foi interessante ver como muita gente diz ter acabado por trabalhar ainda mais horas, apesar de não perder tempo nos transportes, por exemplo. O que é que isso nos diz?
Isso mostra como os problemas não desapareceram. Nós já tínhamos um problema de produtividade antes e a única coisa que fizemos foi levar o problema de produtividade para casa. O que tivemos nos últimos meses foi um voluntarismo fenomenal das pessoas – toda a gente pensou: ‘isto é uma crise, vou dar o meu melhor’. Então, basicamente, o que aconteceu é que muita gente passou a estar das 9 da manhã às 10 da noite a olhar e a gritar para o computador, os filhos a gritar para o ecrã, e no final do dia sentimo-nos cansados sem que tenhamos necessariamente produzido mais. Esta situação tornou mais visíveis muitas das nossas fragilidades.

Tais como?
Tais como muitas das coisas sobre as quais falámos na outra entrevista. Tive imensa gente a dizer-me que tinha lido a entrevista e que concordava que são estúpidas muitas das coisas que criticámos, sobre a forma como trabalhamos. O problema é que não se fez grande coisa para mudar o facto de que não estávamos a aumentar suficientemente a nossa produtividade.

Mas o que é que faltou, ou está a faltar, para que esta crise nos ajude a mudar nas áreas em que considera ser necessário mudar?
Continua a faltar uma conversa sobre como é que nos vamos organizar à volta do trabalho – estou convencido de que a crise vai obrigar-nos a ter essa conversa. Nós temos de repensar a maneira como trabalhamos. Ponto final.

Quem é Nadim Habib?

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Nadim Habib nasceu na Dinamarca, filho de uma mãe dinamarquesa e pai libanês. Além da Dinamarca, viveu no Líbano, Bruxelas e, depois, foi para a London School of Economics, na capital britânica. É Mestre (M.Sc.) em Economia pela LSE e é, também, consultor internacional nas áreas de estratégia, inovação e criatividade. Foi CEO da Formação de Executivos da Nova SBE e da Angola Business School, tendo também trabalhado para diversas multinacionais no Reino Unido, Bélgica e Portugal. Mudou-se para Portugal no início da década de 90 e, hoje, coordena o programa “Leading for Organizational Agility“, na Nova SBE. Tem três filhos.

O teletrabalho faz parte desse “repensar”, após a pandemia?
O teletrabalho não começou com a pandemia, isso já estava a acontecer… Muitas pessoas já há muito que iam buscar os filhos à escola a falar com o chefe em alta-voz, no carro; há muito que estavam a responder a e-mails ao final do dia. Tudo isto já estava a acontecer, apenas se agudizou: o trabalho já estava a entrar nas nossas casas de muitas formas.

Ainda assim, pudemos fazer uma experiência, com um teletrabalho mais generalizado, numa altura de emergência. Como acha que correu?
Os jovens, esses, adoraram, em grande parte. Quem não tem filhos teve uma experiência totalmente diferente. Como costumo dizer: “Se não tens filhos não tens uma vida, portanto não me fales em equilíbrio entre vida e trabalho – cala-te”. Quando tens filhos, tens uma hipoteca, tens contas para pagar, tens responsabilidades que tens de cumprir. Isso é uma vida, uma vida prazerosa mas cheia de responsabilidades. E para essas pessoas foi bem mais complicado – quem já sofria mais com problemas de gestão e de falta de produtividade passou a sofrer ainda mais, mesmo deixando de perder tempo no trânsito. De manhã à noite, fechado numa sala, a olhar para um computador…

Os elogios dos “chefes” nas redes sociais. Todos dizem ter “a melhor equipa do mundo”

Com o tal “voluntarismo” de que falava há pouco…
Sim, e com os chefes a elogiar as suas equipas nas redes sociais, todos tinham uma equipa “fantástica”, “a melhor do mundo”. Tudo bem, mas o que nós não fizemos, ainda, foi ter essa conversa onde reconhecemos que com o modelo que temos, de um modo geral, as coisas não vão funcionar.

Mas confia que agora, sim, vamos ter essa conversa?
Acredito que sim. Embora nestas últimas semanas tenha ficado com algum receio. Nesta fase em que muita gente já voltou ao escritório, pelo menos parcialmente, há sinais de que possivelmente tenhamos aprendido muito pouco. Isto é frustrante, porque senti que a crise revelou uma série de fragilidades que muitos identificavam mas cuja solução ia sendo protelada – “este ano não dá, bla bla“. Não só na questão do trabalho mas de muitos aspetos da nossa economia.

Como assim?
Eu tenho de ter cuidado aqui, porque não sou politólogo, mas esta crise mostrou que ter uma empresa para substituir um emprego não é solução. Por um motivo muito simples: porque uma empresa que não gera receitas suficientes para construir um balanço que dá folga para três meses de salários [sem faturar nesses três meses] não é uma empresa. Isto não devia acontecer, aprendemos que muita gente tinha negócios com margens finas demais e não aguentavam dois ou três meses sem receita. Demonstrou que, se calhar, o nosso sucesso até agora [no pós-troika] não foi tão grande quanto pensávamos. Tivemos anos de crescimento económico mas toda a gente anda estoirada – isto não é melhorar a qualidade de vida.

"Esta crise mostrou que ter uma empresa para substituir um emprego não é solução. Porque uma empresa que não gera receitas suficientes para construir um balanço que dá folga para três meses de salários [sem faturar nesses três meses] não é uma empresa."

“Se um chefe não confia no trabalhador porque é que o contratou?”

É previsível que esse voluntarismo de que falou continue agora, no regresso de férias?
Não, não é infinito. As pessoas estão a chegar a um ponto agora em que… digamos, estar nesse regime reativo – em “modo crise mundial”, com grande voluntarismo – 30 dias tudo bem, 60 dias ok… Quando chegamos a 90 dias já temos muita gente em burnout. Tivemos sorte porque este período difícil aconteceu a poucos meses de entrar o verão mas, agora, o regresso, vai ser duro, duro, duro. Não podemos sustentar aquele regime mais tempo. Foi inacreditável o esforço que o país fez, tanta gente com filhos em casa, com as escolas fechadas, a trabalhar e a ensinar os filhos. Inacreditável. Agora tem de haver melhorias, mudanças – as empresas precisam de falar com as pessoas, ser muito claras sobre aquilo que é esperado delas e sobre as garantias que lhes podem dar. As pessoas precisam de ter uma noção mínima do que lhes vai acontecer, de como se espera que o negócio corra. A sensação que tenho nesta fase, porém, é que muitas estão a voltar para o escritório como se nada se tivesse passado – e regressar não porque se ache que é a melhor solução mas porque é uma tentativa de voltar a uma certa normalidade.

Por parte de quem? Dos gestores? Dos próprios trabalhadores?
De toda a gente. “Deixem-me voltar para o escritório porque, pelo menos, consigo abrandar”, pensam alguns trabalhadores. A ironia é essa. Há aqui uma questão interessante: se for olhar para tendências de crescimento de produtividade no Ocidente nas últimas décadas vemos um declínio consistente, o que é surpreendente tendo em conta que foram as décadas em que se massificaram os computadores, a internet… Com todas estas ferramentas giras, estamos a aumentar cada vez menos a produtividade. É porque temos a tecnologia mas não mudámos a forma como trabalhamos. Muita gente está a perguntar, neste momento: “Porque é que não fazíamos isto antes? Já tínhamos o [Microsoft] Teams antes…” Em algumas empresas do Norte da Europa já se está a ver os gestores dizerem aos funcionários para virem só três vezes por semana ao escritório. E rapidamente se chega à conclusão de que só precisamos de metade do espaço de escritório, os custos baixam, a produtividade aumenta, há menos trânsito…

"Tivemos anos de crescimento económico mas toda a gente anda estoirada – isto não é melhorar a qualidade de vida." FOTO: João Porfírio/OBSERVADOR

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O que impede que isso aconteça também em Portugal?
Em parte, porque se criam aquelas questões do “chefe” que pensa “como é que eu sei que o gajo está a trabalhar?”. Isto é estúpido: se um chefe não confia na responsabilidade de alguém porque é que o contratou e o tem na equipa? Se um líder não é capaz de aferir o contributo de alguém para uma equipa então é o líder que está a falhar. Na verdade, é só isso que o gestor tem de fazer! Como se costuma dizer, “you have one job…“!

É uma questão de falta de confiança, essa é a palavra que usou?
É uma falta de confiança nas pessoas que existe sob uma capa de justiça e de tratar todos os funcionários da mesma forma. Esta questão faz-me lembrar o caso de um meu ex-aluno, alemão, que começou a trabalhar numa empresa portuguesa. Quando foi contratado, deram-lhe um telemóvel e sublinharam que o telemóvel tinha um plafond de x euros ou minutos ou lá o que era. Ele ligou-me a contar o episódio e disse-me: “Como assim? Um plafond? O que raio é que eles pensam que eu vou fazer com o telemóvel? Ligar para linhas eróticas na Austrália? Se não confiam em mim porque é que me estão a contratar? Confiam em mim para ser a cara deles perante um cliente, para gerir as equipas deles, mas não confiam em mim para gerir uma porcaria de um telemóvel?”. Os gestores não podem pensar assim: têm de dar telemóveis a toda a gente e, claro, se alguém gastar 500 euros de telemóvel num mês obviamente temos de perceber o que se passou – temos de gerir as exceções em vez de criar regras e limitar a liberdade das pessoas.

"Um aluno, alemão, começou a trabalhar numa empresa portuguesa e deram-lhe um telemóvel, sublinhando que tinha um plafond. Ele ligou-me a contar o episódio: 'Como assim? Um plafond? O que raio é que eles pensam que eu vou fazer com o telemóvel? Ligar para linhas eróticas na Austrália?'."

“Porque é que o gestor não pergunta a cada pessoa se e como quer voltar? That’s my point”

Estamos numa pandemia e há um receio de cada um com a própria saúde, que é uma coisa muito íntima. Ou seja, há pessoas com muito medo de ficarem infetadas e outras que não têm qualquer medo, que querem é voltar ao escritório e estão confiantes de que conseguem evitar ficar infetadas ou que se ficarem infetadas não vão sofrer assim tanto. Como é que um gestor deve lidar com estas diferenças de perceção de cada pessoa?
Porque é que o gestor não pergunta a cada pessoa como é que quer fazer? That’s my point.

É realista?
Claro, porque não? Os gestores têm de falar com toda a gente e perguntar: “Como te sentes em relação a isto? Se estás desejoso de voltar para o escritório, diz-nos, que nós encontramos uma solução. Se por qualquer razão não te sentes bem em voltar, diz-nos, que nós encontramos uma solução”. Vamos lá ter estas conversas, até porque se há pessoas que querem trabalhar mais em casa eu, como gestor, tenho de garantir que a pessoa tem condições: tem ligação de internet suficientemente rápida? Como podemos ajudar a melhorar as condições? As regras só servem para servir uma falsa meritocracia e para controlar as pessoas, partindo do pressuposto de que vai haver abusos. Pela minha experiência, regras dessas só acabam por punir 99% das pessoas com medo do 1% que vai furar as regras.

Há quem peça que se criem regras, que se regule o teletrabalho…
Não faz sentido criar regras porque todas as regras que eu conheço são abusadas. Nós não precisamos de uma regra que impeça as pessoas de trabalhar, em casa, depois de certa hora – nós precisamos é de uma gestão de empresa que não precise que a pessoa trabalhe em casa depois dessa hora. Há pessoas que dizem que estão a trabalhar mais em casa. Isso está errado: não devia estar a trabalhar mais, devia estar a produzir mais! Só se trabalha mais sem produzir mais se se estiver preso a modelos antigos: provavelmente continua a ter reuniões que são inúteis – só que antes eram numa sala de reuniões e agora são na sala de estar em casa. Antigamente tinhas a chamada “morte por Powerpoint”, agora tens a “morte por Zoom”. Más práticas são más práticas, em qualquer das situações.

"Só se trabalha mais (em casa) sem produzir mais se se estiver preso a modelos antigos: provavelmente continua a ter reuniões que são inúteis – só que antes eram numa sala de reuniões e agora são na sala de estar em casa. Antigamente tinhas a chamada 'morte por Powerpoint', agora tens a 'morte por Zoom'."

Alguns sindicatos têm pedido essas regras…
Os sindicatos muitas vezes pecam por querer regular em demasia o trabalho, com o intuito de proteger quem já tem o posto de trabalho e esquecendo quem não o tem, ou seja, regulando o trabalho existente e esquecendo o trabalho potencial. Não queremos mais regras, queremos é criar um mercado de trabalho mais dinâmico onde as pessoas tenham mais opções e, dessa forma, têm força para “castigar” as organizações que os querem tratar menos bem. A má gestão não é castigada pelo mercado.

Um artigo recente do The Wall Street Journal dizia que, agora que parece que passámos a fase da emergência, por sinal, muitos gestores e trabalhadores estão a começar a reparar mais nos problemas do teletrabalho, na forma como é limitativo…
Não faz sentido falar em teletrabalho. Faz sentido falar em omnitrabalho: é trabalhar em múltiplas plataformas, em múltiplas localizações. Eu, pessoalmente, já o fazia antes da pandemia: às vezes trabalho no meu gabinete, que partilho com outras pessoas, às vezes vou para a biblioteca, às vezes fico em casa – até muitas vezes sentava-me na bomba de gasolina da A5 onde tinha wi-fi e sabia que ninguém me ia interromper. É certo que nem todas as carreiras permitem trabalhar assim, mas estou certo de que isto faz sentido para mais pessoas do que se admite normalmente. Veja, até na banca: falei com o meu gestor de conta, que disse que já se está a regressar ao balcão porque “o cliente gosta de ir ao balcão” – assim vamos voltar ao antigamente! Eu odeio ir ao balcão e adorei ter, recentemente, tratado de todo um processo de uma compra de terreno por e-mail. Temos uma ótima oportunidade de alterar as coisas que tanto nos saturavam no passado e espero que não a desperdicemos. E não precisamos que se mudem leis para que mudemos – parte de nós.

Pode ser, também, uma questão geracional?
Será, certamente, porque agora temos uma geração que descobriu que é possível trabalhar em casa ou a partir de qualquer lugar, pelo menos parcialmente. Se as pessoas forem forçadas a voltar, como dantes, elas vão fazer a pergunta: “Espera aí, isto não faz sentido…”. Acho que mais pessoas vão pensar: “Bem, hoje está um trânsito infernal, está a chover a potes, consigo fazer a partir de casa o que tenho de fazer – não faz sentido ir para o escritório”. Qual é o problema disto? Nenhum, desde que haja uma linguagem comum e uma estrutura que permita que eu, se calhar, em vez de fazer aquilo que tenho de fazer em 8 horas no escritório – mais duas no trânsito –, faça isso em seis horas em casa. Qual é o problema?

Acha mesmo que isso vai tornar-se mais banal?
Acredito que sim. Acredito que houve uma mudança estrutural nas nossas cabeças, que mudaram para sempre. Sei que vai haver pessimismo macroeconómico no próximo ano ou dois mas penso que estruturalmente estamos perante uma mudança profunda. E acho que não estamos ainda cientes do impacto económico que tudo isto vai ter em todos os setores: no imobiliário, no tipo de casas que as pessoas querem, nos preços das rendas dos escritórios, nos transportes, nas viagens. Quebrámos o normal e esta é a nossa oportunidade para criar um “novo normal” – e isso é uma coisa maravilhosa.

"Agora temos uma geração que descobriu que é possível trabalhar a partir de qualquer lugar. Se as pessoas forem forçadas a voltar, como dantes, elas vão fazer a pergunta: 'espera aí, isto não faz sentido...'. Acho que mais pessoas vão pensar: 'bem, hoje está um trânsito infernal, está a chover a potes, consigo fazer a partir de casa o que tenho de fazer – não faz sentido ir para o escritório'. Qual é o problema disto? Nenhum."

Há potencial para que façamos menos coisas “estúpidas” no trabalho, como dizia?
Veja, se eu estou integrado numa gestão sólida que me permite, como trabalhador, decidir ir às compras em meia hora a meio da tarde quando há pouca gente, e se quiser compensar isso trabalhando um pouco depois de jantar, quando a minha mulher ou o meu marido pode estar com as crianças, isso é ótimo. Até porque isso ajuda a evitar que depois estejamos todos ao sábado de manhã, uns em cima dos outros, no hipermercado.

Até ajuda a evitar ajuntamentos de pessoas…
Mas isso não é só por causa da questão epidemiológica: já antes era estúpido esconder o computador do chefe, no escritório, para despachar umas compras online num instante. Era estúpido não poder sair mais cedo à 5ª feira para ir ver o filho jogar futebol. Qual é o problema de fazer isso quando, depois, até nem me importo de trabalhar um pouco no sábado à tarde, para compensar e cumprir os meus objetivos?

Ser “suficientemente bom” só chega quando as coisas correm bem

Alguém dizia no final do ano passado que os gestores em Portugal são de fraca qualidade. Revê-se nessa análise?
Lê-se isso muitas vezes, que temos maus gestores – não é verdade. O que falta é, muitas vezes, modelos de gestão que procurem gerar retornos suficientes para construir organizações com músculo, que conseguem investir nas pessoas. Há uma aceitação de organizações que dão um lucro “suficiente”. Em Portugal normalmente não estamos a tentar ser os melhores, tentamos ser suficientemente bons. E ser suficientemente bom chega quando as coisas correm bem, mas não chega quando as coisas correm menos bem. Não era preciso ser um génio para ganhar dinheiro a vender cafés na baixa de Lisboa durante o boom turístico. Havia tantos clientes que mesmo com um mau serviço um tipo até ganhava algum dinheiro. Mas para construir uma cadeia inteira com sustentabilidade e inovação é preciso ser um génio – e é esse trabalho que temos de fazer, incluindo nas universidades.

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É, também, uma questão de flexibilidade na gestão?
Houve grandes mudanças estruturais nas nossas economias que impactaram as empresas, nos últimos 30 anos. A primeira tem muito a ver com “como é que eu vou buscar melhorias de produtividade na minha empresa?” Tipicamente, eu digo que se consigo melhorar a produtividade da empresa há mais dinheiro para os acionistas, mais dinheiro para os funcionários e mais dinheiro para investir em clientes. A partir dos anos 90, foi-se buscar ganhos de produtividade ao lado dos custos.

Custos das matérias-primas? Salários…?
Sobretudo nos salários. Essa foi a história da economia portuguesa: pagar menos e reduzir pessoal, ao ponto que a única forma de compensar essa redução de pessoal foi trabalhar mais horas do que o contratualizado. Assinam-se contratos de oito horas mas trabalha-se nove ou dez. Trabalha-se nas férias, recebe-se telefonemas de trabalho nas férias… A mudança que ocorreu foi tentar obter ganhos de produtividade não pelo lado dos custos mas pelo lado das receitas: se eu conseguir vender produto mais caro e ter o cliente a gastar mais comigo, então eu ganho produtividade.

Viu isso a acontecer em alguns setores?
Vimos isso a começar a acontecer na restauração. A restauração em Portugal no final do século passado era um casal, a vender bitoques a 500 paus, porque o casal aceitava trabalhar 7 dias por semana para ter dinheiro suficiente para pagar a sua hipoteca e ter os filhos na escola. That’s it. Era uma gestão de sobrevivência. A mudança que nós queremos é fazer com que se crie mais valor acrescentando, investir no produto e no cliente, porque esse corte dos custos não é viável. Esse é o gestor que é necessário: na restauração já se estava a ver isto, um pouco na hotelaria, na banca estava-se a começar a fazer um caminho, mas Portugal tem um longo caminho pela frente.

"A restauração em Portugal era um casal, a vender bitoques a 500 paus, porque o casal aceitava trabalhar 7 dias por semana para para pagar a sua hipoteca e ter os filhos na escola. That's it. A mudança que nós queremos é fazer com que se crie mais valor acrescentando, investir no produto e no cliente, porque esse corte dos custos não é viável."

Ouve-se muito falar do aumento do valor acrescentado, mas é também uma questão de concorrência em setores que nunca tiveram tanta…
Isso está relacionado com um segundo choque que houve nas economias, incluindo a portuguesa, e que está relacionado com a maturação de mercados. Nos anos 90 tivemos o lançamento de muitos novos mercados em Portugal: a nova banca, as novas telecomunicações, multinacionais a entrar. O mercado cresceu muito depressa, o gestor era levado a focar-se muito na produção – contratar pessoas para as pôr a produzir e captar a procura emergente. Nos últimos 10 anos, atingiu-se uma maturidade em que, agora, qualquer crescimento que eu tenho é roubado ao concorrente. Já não pode ser um enfoque na produção mas, sim, no cliente. Tenho de ter pessoas ao balcão que são mais sensíveis para o cliente, na caixa do supermercado, e o cross-sell e o up-sell acontece na linha da frente com o cliente e não na reunião do conselho de administração. Para isto os líderes têm de investir mais em formação, mais em inovação, mais na explicação da estratégia.

É esse o apelo que deixa aos gestores, nesta fase?
Muitas organizações ou mudam radicalmente nos próximos seis a 12 meses ou as coisas vão piorar. Com a crise económica, muita gente low level [em posições hierárquicas mais baixas] vai aceitar o burnout porque tem medo de perder o emprego. Mas o grande risco para a economia não é tanto uma crise económica mundial que abrande a procura, porque acho que ela voltará e Portugal tende a ser normalmente resiliente nestas coisas, o maior problema é se há uma desistência interna do processo de transformação de que a economia precisava para avançar. O apelo que eu deixo aos líderes é que têm de ter noção de que é preciso ter uma conversa séria sobre as mudanças que queremos aproveitar para fazer. Todos reagiram muito bem à crise, foi impressionante a forma como se reagiu mas aquilo que aceitámos que acontecesse nestes primeiros 90 dias não pode ser um plano. Agora precisamos de planos. E estamos todos a olhar para os nossos líderes e a dizer: “Okay, eu dei tudo o que tinha para dar, nestes meses, agora diz-me tu qual é o plano”.

"Foi impressionante como se reagiu mas aquilo que aceitámos que acontecesse nestes primeiros 90 dias não pode ser um plano. Agora precisamos de planos." FOTO: João Porfírio/OBSERVADOR

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E é possível planear hoje? Quando há riscos de segunda vaga, por exemplo?
É possível, sim. Porque mesmo que haja segunda vaga, já sabemos mais ou menos o que vai acontecer. Portanto, isso não é desculpa: precisamos de olhar para a frente e ter essa conversa necessária envolvendo todos. Repare: eu fiz um trabalho com uma empresa, sobre estratégia, em que antes da pandemia fui para um lugar com 20 pessoas. Agora, fizemos mais uma sessão e tivemos a empresa toda, através da Internet. Toda a gente. Ganhámos uma forma mais direta de falar com as pessoas e porque é que não aproveitamos essa forma para perguntar às pessoas: como é que vocês imaginam o vosso trabalho daqui para a frente? Se não envolvermos as pessoas nessa discussão vamos regressar aos modelos antigos, de gestão demasiado top-down. E isso vai fazer com que os trabalhadores obedientes fiquem mas os mais talentosos vão sair à primeira oportunidade.

Haverá menos espaço, também, para a micro-gestão? Os chamados gestores micro-managers?
Micro-managers ou, como prefiro chamar, controladores. Temos de acabar com aquelas reuniões de ponto de situação à segunda-feira, em que cada equipa ou pessoa diz o que está a fazer e todos os outros “desligam” automaticamente, por se perceber que aquilo, na verdade, devia ter sido seis reuniões one-on-one mas só não o foi para poupar tempo ao chefe. Temos de abandonar a ideia do gestor que diz que consegue ver o futuro – coisa difícil de se dizer hoje em dia mas há alguns meses havia quem dissesse que conseguia ver o futuro – gestores “visionários” que dizem que veem aquilo que mais ninguém consegue ver.

"Temos de acabar com as reuniões de ponto de situação à segunda-feira, em que cada equipa ou pessoa diz o que está a fazer e todos os outros "desligam" automaticamente, por se perceber que aquilo, na verdade, devia ter sido seis reuniões one-on-one mas só não o foi para poupar tempo ao chefe."

No ano passado deu o exemplo do empregado de restaurante que sabe adaptar-se rapidamente ao cliente, e que sente confiança em, por exemplo, tirar da conta um bife que o cliente não gostou e sugerir imediatamente outra coisa…
Há outro bom exemplo de como a gestão tem de se adaptar. Imagine que quero fazer um jantar para 50 pessoas, ligo para o restaurante e peço uns menus. O dono diz-me: então tem aqui um prato de carne e um de peixe – depois diga-me quantos querem carne e quantos querem peixe. Quando lhe dou essa informação ele chama a equipa e “prescreve”: “Tu vais comprar 20 quilos de carne, tu vais buscar o peixe”. O gestor calcula quantas pessoas precisa de chamar naquela noite para servir – tudo é preparado de forma a garantir que toda a gente é servida maximizando-se o lucro.

Certo…
Outra coisa é dizer: olha, tenho um autocarro com 50 estrangeiros que querem comer coisas novas, podem gastar dinheiro, querem experimentar coisas novas – eu aí tenho de preparar a minha equipa de forma totalmente diferente, tenho de lhes dar formação para explicarem os produtos, tentar fazer up-sell no camarão, no vinho. O gestor precisa de garantir que as pessoas da equipa também estão capazes de tomar decisões. Esta pandemia só vai acelerar esta mudança no sentido de garantir que as equipas são capazes de lidar com “qualquer futuro”. Espero que assim seja.

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