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JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

"Não consegui proteger a minha filha. Agora não há nada". Os sobreviventes de Pedrógão um ano depois

Gina Antunes perdeu a filha e a mãe no fogo: "Aquela imagem está sempre na minha cabeça. Para mim, todos os dias são 17 de junho, aquele malvado dia que nunca devia ter acontecido".

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Gina, Manuel, Cacilda, Maria e Alzira. Cinco sobreviventes de Pedrógão Grande, um ano depois da tragédia. Cinco formas de lidar com o luto. Negação. Raiva. Medo. Depressão. Aceitação?

A negação. “Hoje, vou aos cemitérios e penso que elas não estão lá”

A porta abre-se e revela o amplo e fresco salão que serve de piso inferior à moradia de dois andares. O impacto é imediato. É impossível não reparar naqueles olhos azuis-claros que espreitam em cada retrato. Lá ao fundo, junto à parede, as luzes brancas do altar improvisado compõem o resto do cenário. Está decorado com peluches, bonecas e um carrinho de bebé em tons de rosa. Eram os brinquedos de Bianca, a criança de quatro anos que morreu quando o carro em que seguia com a avó, a mãe e o irmão foi engolido pelas chamas. Passou um ano desde os incêndios de Pedrógão Grande.

Gina Antunes, mãe de Bianca, não controla as lágrimas. Era ela quem estava a conduzir naquele dia. Numa questão de segundos, foram surpreendidos pelas chamas. O filho mais velho, de 20 anos, saiu do carro ainda em andamento. Gina só parou quando deixou de ver um único centímetro de estrada. O fumo, o calor e o fogo eram insuportáveis. Abriu a porta, saiu do carro, caiu uma e outra vez, até que se convenceu de que estava condenada. Escondeu-se debaixo do carro e decidiu esperar a morte de olhos fechados. Aceitou o seu final, mas não conseguia assistir ao resto. Até que sentiu alguém a puxar-lhe pelo braço, uma figura masculina vinda sabe-se lá de onde. Ainda resistiu, gritou até perder a voz e as forças. Não podia simplesmente fugir, não sem antes tentar uma e outra vez. Acabaria por ser levada à força, sem poder fazer mais. As portas não se abriram. Perdeu a mãe e a filha, deixadas, impotentes, no banco de trás enquanto tudo ardia. Maria Odete Rodrigues, de 62 anos, e Bianca, com apenas 4, morreram carbonizadas no interior do carro.

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“Eu sei que elas estavam vivas dentro do carro… A forma como foi… Os meus braços ardiam com o calor… Não suportava… Imagino o que elas sofreram, o corpo a arder com as chamas dentro do carro…. Não encontro respostas para isto.” Gina continua: “Aquele momento está sempre no meu pensamento. Onde quer que eu esteja, onde quer que eu vá, aquela imagem está sempre na minha cabeça. Para mim, todos os dias são 17 de junho. Aquele malvado dia que nunca deveria ter acontecido”.

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“Dizia-lhe muita vezes: ‘Bianca, come para seres grande como a mamã’. E ela respondia: ‘Não, porque eu vou ficar pequenina para sempre’. Também estava sempre a dizer: ‘Mãe, tu proteges-me?’. Mas eu não a consegui proteger. Agora, não há nada. Por isso é que muitas vezes me pergunto: ‘Será que elas foram fazer uma viagem e voltam?’. É quando vem a revolta e penso que é tudo mentira”.

Há um ano, em Portugal, morreram 66 pessoas e mais de 250 ficaram feridas num incêndio que, em poucas horas, atingiu dimensões catastróficas. A maioria das vítimas morreu enquanto fugia das chamas, algumas encurraladas nos próprios carros. Faltou tudo: assistência, socorro e organização. Tudo o que podia falhar, falhou. Perderam-se, além de vidas humanas, casas e meios de subsistência primários. Num meio maioritariamente rural, como o de Pedrógão Grande, animais e culturas agrícolas ficaram reduzidos a cinzas. Hoje, um ano depois, há quem comece finalmente a regressar a casa. Mas há quem tenha perdido tudo e pouco ou nada tenha recuperado. Em alguns casos, há quem tenha perdido algo ou alguém que nunca mais vai recuperar. Voltar a Pedrógão Grande é regressar, por isso, a uma região onde o medo convive com todas as fases do luto: a negação, a raiva, a depressão e, por fim, a aceitação.  Gina Antunes ainda não aceita o que aconteceu.

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“Dizia-lhe muita vezes: ‘Bianca, come para seres grande como a mamã’. E ela respondia: ‘Não, porque eu vou ficar pequenina para sempre’. Também estava sempre a dizer: ‘Mãe, tu proteges-me?’. Mas eu não a consegui proteger. Agora, não há nada. Por isso é que muitas vezes me pergunto: ‘Será que elas foram fazer uma viagem e voltam?’ É quando vem a revolta e penso que é tudo mentira”.

O internamento fez com que não conseguisse assistir aos funerais da mãe e da filha. “Não sei se conseguiria ter ido”, assume. “Hoje, vou aos cemitérios e penso que elas não estão lá”.

Gina tem olheiras profundas. Os olhos estão inchados e vermelhos. As fotografias em redor provam que perdeu muito peso. Esteve quase um mês internada no hospital por causa das queimaduras graves com que ficou por ter tentado, a todo o custo, salvar a mãe e a filha. Não consegue elevar o braço esquerdo mais do que 45 graus.

O internamento fez com que não pudesse assistir aos funerais da mãe e da filha. “Não sei se conseguiria ter ido”, assume. “Hoje, vou aos cemitérios e penso que elas não estão lá.” A morte das duas tornou-se um fardo demasiado pesado para a família. O marido de Gina não aceitou ajuda psicológica e refugia-se no silêncio. Continua a beijar o retrato da filha todos os dias, de manhã, quando acorda, e à noite, antes de se deitar. O filho mais velho, que tinha na avó uma das maiores confidentes, ainda hoje se fecha no quarto que pertencera a Maria Odete para chorar. Não aguenta mais viver nesta casa. Gina, para já, apenas sobrevive. O silêncio transformou-se em sinónimo de ausência e só os seus próprios gritos, que liberta quando estende a roupa ou quando percorre a estrada que antes fazia com a filha, a ajudam a enfrentar o vazio.

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“Tenho tido momentos fracos e já pensei em muita coisa…. Houve uma noite em que estava para tomar os meus medicamentos, ali na cozinha, e pensei tomar todos os que estavam na gaveta. Assim, a dor ia acabar. Mas ao mesmo tempo pensei: ‘Não, não podes tomar tudo. Então e depois, vai haver outro funeral? O teu filho vai ficar sem mãe? O marido vai ficar sem mulher? Como é que vai ser? Tomas os medicamentos que tens a tomar e vais para cama. Ponto'”. Encontrou alguma força para continuar. Talvez sejam as flores. “Refugio-me nas flores. Já pus mais flores desde que regressei a casa do que em toda a minha vida. A minha mãe adorava flores.”

[“‘Mãe, tu proteges-me?’. Mas eu não a consegui proteger.” O depoimento de Gina Antunes, um ano depois de ter perdido a mãe e a filha]

A raiva. “Quem fez isto devia pagar. Era fazer-lhes o mesmo”

Um ano depois dos incêndios, Pedrógão Grande vive ainda entre a dor, a raiva, o medo e o desespero. Mas começa também a haver esperança. A pouco e pouco, o negro vai dando lugar ao verde: as flores silvestres nascem por todo o lado. Já não se veem carros calcinados, não há troncos caídos, nem cabos elétricos desfeitos. Já não se ouve o crepitar das chamas, só os pássaros e os insetos que regressaram. O ar é fresco, apesar do calor, e o cheiro a queimado sumiu-se. Não fossem alguns sinais da calamidade que aqui se viveu e seria difícil imaginar a violência do desastre que se abateu sobre Pedrógão Grande. Sinais como uma fita amarela da polícia esquecida em torno de um tronco e que antes servira para demarcar a zona onde estava um cadáver.

[Deslize o cursor entre as duas imagens para ver a foto do mesmo local há um ano e agora]

Descendo a ladeira chega-se ao centro de Nodeirinho. Foi aqui, nesta aldeia com pouco mais de 30 habitantes, que morreram 11 pessoas. E é aqui que vive Manuel da Costa, de 61 anos. Um dia depois do grande incêndio ainda procurava o filho, que fugira de carro quando o fogo já rodeava a aldeia. Manuel saberia, pouco depois, que o filho de 21 anos tinha morrido. Foi preciso identificar o corpo.

Só repete uma ideia até à exaustão: tudo isto poderia ter sido evitado e os responsáveis ainda andam à solta. “‘Tá tudo quieto, ninguém faz nada! A maioria foi a tribunal e ficou com pulseira eletrónica. Mas o que é isto!?”. 

Passou um ano e Manuel tem o mesmo bigode branco, manchado de amarelo pelos cigarros que fuma compulsivamente, e a mesma pele grossa e torrada, de quem trabalha de sol a sol. As mãos vão mexendo na rebarbadora que tem diante de si. Quando não estão a arranjar o aparelho, as mãos fogem-lhe para o bolso do polo, de onde saca um e outro cigarro marca Winston. “Nunca mais na vida isto se esquece. Não é fácil…”.

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Só repete uma ideia até à exaustão: tudo isto poderia ter sido evitado e os responsáveis ainda andam à solta. “‘Tá tudo quieto, ninguém faz nada! A maioria foi a tribunal e ficou com pulseira eletrónica. Mas o que é isto!?”. É a única vez em que a voz se faz ouvir para lá do murmúrio. “Quem fez isto devia pagar. Era fazer-lhes o mesmo. Amarrá-los a uma árvore e fazer-lhes o mesmo”, explode. A incompreensão e a ira estão lá: “Quando um gajo anda distraído, anda bem…”

O medo. “Se eu não saí daqui com o fogo de volta de mim, agora vou para onde? É para um lar?”

Além da dor e da revolta, o dia-a-dia de Pedrógão Grande também se faz de medo. Mesmo um ano depois dos incêndios que destruíram tudo ou quase tudo, há quem ainda sinta medo. Medo que o fogo regresse, claro, mas sobretudo medo dos perigos do isolamento. A GNR deu ordens expressas para que as pessoas, sobretudo as mais velhas (e são quase todas mais velhas), não abram a porta a estranhos. Há vários testemunhos de burlas por toda a região, relatos de pequenas poupanças de uma vida, as que restaram quando já não há animais para tratar ou legumes e fruta para plantar, saqueadas em minutos.

“Estou sempre com muito medo”, desabafa Cacilda Nunes. Tem 76 anos e quando falou com o Observador há um ano passara aquela noite a combater o incêndio, sozinha e rodeada pelas chamas. Estava exausta, mas sobreviveu sem qualquer ferimento. Demorou a abrir a porta. Perguntou uma e outra vez quem era e o que pretendia, até abrir finalmente a porta. Por entre desculpas, caminhou hesitante até ao tanque de lavar roupa e atirou-se para o banco de madeira improvisado. “Estava ali a pôr um bocadinho de água morna, com sal e vinagre, em cima do joelho. Dizem que faz bem, mas eu não sei o que isto é…”, queixa-se.

“De vez em quando, vem aqui a guarda. Está sempre a avisar para não se abrir o portão. A gente não sabe quem é que aqui vem, se é por bem, se é por mal”, diz, antes de mostrar o pequeno aparelho verde com dois botões que carrega no bolso do avental: tem ligação direta à GNR e, assim que pressionado e no caso de o portador não atender a chamada telefónica, todos os meios são acionados.

Depois do incêndio, perdeu quase tudo: parte da casa, os animais e as plantações. Hoje, já tem o telhado reparado, recuperou três galinhas, “graças a Deus”, e já tem feijões, tomates, pimentos e um bocadinho de alface. A ajuda chegou, apesar da burocracia: foi ela própria, desabafa, que teve de construir a pequena parede do galinheiro para acomodar as galinhas. “A parede ficou torta, feita às três pancadas, mas ficou”, conta, com um certo orgulho. Um orgulho que desaparece quando explica como têm sido estes dias depois da catástrofe.

“Os meus dias? São tristes e a chorar. Nunca se esquece, mas o que é que nos adianta estarmos sempre a falar no mesmo?”. Cacilda encolhe os ombros, enquanto vai ajeitado o lenço negro que lhe tapa a cabeça. “Sempre vou tratando da minha vida, sozinhita. Agora é que não estou capaz de fazer nada. E tanto que tenho de fazer. E tanto que tenho de fazer…”.

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Passa os dias quase sempre sozinha, animados, aqui e ali, pela visita de uma ou de outra vizinha. A família mais próxima está muito distante e vai aparecendo de vez em quando. Daí o medo. “De vez em quando, vem aqui a guarda. Está sempre a avisar para não se abrir o portão. A gente não sabe quem é que aqui vem, se é por bem, se é por mal”, diz, antes de mostrar o pequeno aparelho verde com dois botões que carrega no bolso do avental: tem ligação direta à GNR e, assim que pressionado e no caso de o portador não atender a chamada telefónica, todos os meios são acionados. Há vários como este espalhados por toda a região.

Cacilda não demora a recordar o que aconteceu à vizinha. Certo dia, abriu a porta a dois homens que propunham trocar todo o dinheiro que tivesse em casa por uma nova moeda — o euro tinha acabado, juraram. Crente, a vizinha entregou milhares de euros sem qualquer resistência. Nunca mais os viu e a polícia continua à procura dos suspeitos. “Às vezes sinto barulhos durante a noite… Tenho medo”, assume Cacilda, enquanto esfrega o joelho direito, o tal que a atormenta.

Um carro da GNR aproxima-se e pára mesmo à porta de casa. Dois guardas acercam-se e começam a fazer perguntas. Mesmo depois de tudo esclarecido, não deixam de a censurar. “O que é que já lhe dissemos, Dona Cacilda? Não pode abrir a porta a estranhos”. Cacilda desculpa-se como pode. Desta vez, a ajuda não era precisa, mas chegou. 

Cacilda queixa-se de como lhe prometeram 13 mil euros e deram apenas 2 mil. “Prometeram uma coisa e deram outra. A quem se queimou a casa, ficaram ali com uns palacetes que sei lá”, desabafa, antes de pedir licença para atender o telefone. Ausenta-se por alguns minutos. “Era a minha vizinha”, diz. “Não gostou nada que tivesse aberto o portão, mas eu disse que não me iam fazer mal…”, garante. Mas se há medo, porquê ficar aqui, sozinha? “Se eu não saí daqui com o fogo de volta de mim, agora vou para onde? Para onde é que eu hei-de ir? É para um lar? Agora os novos não querem aturar velhos. Os novos não aturam velhos.”

Cacilda, filha de pedreiro, faz questão de ir mostrar o muro que construiu com as próprias mãos, aos 76 anos. Lá ao longe, na estrada, um carro da GNR aproxima-se e pára mesmo à porta de casa. Dois guardas aproximam-se e começam a fazer perguntas. Mesmo depois de tudo esclarecido, não deixam de a censurar. “O que é que já lhe dissemos, Dona Cacilda? Não pode abrir a porta a estranhos.” Cacilda desculpa-se como pode. Desta vez, a ajuda não era precisa, mas chegou. Há quem se queixe de ter sido esquecido.

A depressão. “Quando me deito está tudo a passar pela minha cabeça. O fogo veio de além”

Assim que se entra na casa, um cheiro nauseabundo parece entranhar-se. É difícil identificar de onde vem e o que é, mas é demasiado forte para ignorar. As moscas passeiam furiosamente. Maria da Assunção, de 74 anos, veste de negro da cabeça aos pés. Tem uma luva preta na mão direita, que mal mexe. “A mão adormeceu e o sangue já não circula. Está sempre gelada”, explica. Há uns anos, um acidente grave quase lhe partiu a coluna. Agora, o peso da idade e a mão inutilizada tiraram-lhe praticamente toda a mobilidade. Tudo o que faz é em esforço e com dores.

A última vez que falou com o Observador, há um ano, em Carvalheira Grande, na freguesia da Graça, só pedia para não ser esquecida. Se não foi, parece ter sido. A casa continua igual ao que era antes e depois do incêndio: miserável. As telhas que arderam foram reparadas, mas ainda chove lá dentro. “Continua a chover cá como chove na rua”, queixa-se, apontando para o cimo das escadas que unem os dois pisos. Lá está o balde de plástico que recebe a água que cai do tecto. Tudo é um amontoado de coisas e objetos indistinguíveis, que só parecem acentuar a humidade que mora nas paredes sujas. No exterior, os cobertos que antes guardavam animais, alimentos, roupas e máquinas são entulho. O mesmo entulho em que se transformaram na noite de 17 de junho de 2017. Um ano depois, tudo ou quase tudo continua igual. Um ano depois, Maria da Assunção tem pouco ou quase nada.

Não compreende como é que uns tiveram direito a “tudo” e ela não teve direito a nada. “Veio tanto dinheiro para Pedrógão e não souberam gerir? A uns tudo e a outros nada?

“Isto foi uma desgraça o que me aconteceu. Todos os dias me levanto e tenho isto tudo queimado, com tudo numa miséria. E agora, coitada de mim. Uma reformazita que me dão, que não chega para pagar água, luz, gás e a comida. Não chega para nada e não me arranjaram as minhas coisinhas?”

Maria da Assunção não consegue parar de chorar. Ao fundo, enterrados em duas cadeiras brancas de plástico, Jorge Cláudio, de 53 anos, e Joaquim, de 33, assistem ao desespero da mãe. Jorge, com o boné a tapar-lhe o rosto. Joaquim, de olhar vazio e t-shirt esfarrapada e suja. Têm ambos atrasos cognitivos, conta. Nenhum dos dois reage ou intervém. Maria da Assunção, viúva há dois anos, é uma mulher em depressão.

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“Quando me deito está tudo a passar pela minha cabeça. Não é a sonhar, é mesmo comigo acordada. O fogo veio de além. As folhas dos eucaliptos a estalarem, o fumo era tanto que já nem via nada. E eu com a mangueira por mim abaixo, senão morria ali queimada”. As memórias são ainda muito vivas, quase como se se sentisse tão abandonada como naquele dia. “Os bombeiros passaram e eu disse-lhes: ‘Por favor acudam-me, que eu morro aqui queimada. E eles disseram-me assim: ‘A gente já vem. A gente já vem’. Até hoje, nunca mais vieram. Até hoje, nunca mais vieram…”, repete.

Queixa-se das seguradoras que não apareceram e da ajuda que nunca chegou. Confunde-se quando tenta explicar que um dos cobertos não tinha seguro, mas os outros sim. Ou então faltava a escritura, mas já está a chegar. Detalhes que não estão ao seu alcance. Não compreende como é que uns tiveram direito a “tudo” e ela não teve direito a nada. “Veio tanto dinheiro para Pedrógão e não souberam gerir? A uns tudo e a outros nada? A mim ninguém me deu nadinha. Ao menos que me arranjassem as coisas, já era bom.”

Um ano depois, a ajuda não veio e dificilmente virá. Na zona cinzenta que envolve seguros, autarquia, junta de freguesia e Santa Casa da Misericórdia, ninguém parece querer assumir responsabilidades. E ninguém parece perceber o óbvio: que aquela família de três, dependente das pensões de Maria da Assunção e dos biscates que o filho mais velho vai fazendo, sem terreno para cultivar e sem espaço para guardar e cuidar dos animais que possam vir a existir, está condenada e abandonada. Pelo menos, é assim que se sente Maria da Assunção. “Está tudo ardido. Ardeu tudo. Só tive desgraças na minha vida e agora estou na miséria. As arrelias têm-me matado.” Aqui, nesta casa, não nascem flores.

[“Os bombeiros disseram assim: ‘A gente já vem’. Até hoje, nunca mais vieram.” Veja no vídeo o depoimento de Maria Assunção]

Aceitação? “Eu perdi o gosto de tudo. Não tenho ilusões para nadinha, nadinha. Só para viver um dia de cada vez”

A menos de cinco quilómetros de Carvalheira Grande, a sul, fica Vila Facaia, uma das zonas mais afetadas pelo fogo. Alzira Quevedo, 76 anos, perdeu tudo naquela noite: a casa, os animais, a roupa e as recordações. E ia perdendo o marido. Joaquim Quevedo, 81 anos, decidiu voltar para trás enquanto tudo ardia, largando a mulher e o sobrinho, para tentar salvar a casa. Rodeado de fumo, caiu inanimado. Foi resgatado por um vizinho, que o encontrou no chão. Tinha já as pernas e os braços queimados. Até a carteira que trazia no bolso da camisa ardia. Era uma questão de segundos até perder a vida.

“Se me arrependo de ter voltado para trás? Arrepender-me para quê? O que tem de ser tem de ser. Se morresse, era o mesmo, pronto. Um carro voltou, deu comigo no chão e foi o que me safou. Já não havia nada a fazer”, resume Joaquim, recostado no sofá castanho colado à parede onde está um quadro da Última Ceia. O aparente desprendimento com que fala não esconde as marcas com que ficou: esteve internado várias semanas no hospital, perdeu a força no braço direito e ficou praticamente cego de um olho.

Alzira reprova o marido à distância. “Só pensávamos em defender a gente. E o meu marido nem se defendeu, porque foi teimoso. Se ele vai com a gente, talvez se safasse. Foi teimoso, voltou para trás. A minha aflição quando o vi a voltar para trás, rodeado de lume e de fumo. As chamas pareciam ondas do mar. Quando vi aquilo, fiquei perdida. Pensei: ‘Vamos morrer todos’”.

Alzira reprova-o à distância.  Veste um avental azul escuro e uma camisa com flores brancas bordadas num fundo azul-clarinho. Está sentada à mesa e é ela quem conduz a conversa. “Só pensávamos em defender a gente. E o meu marido nem se defendeu, porque foi teimoso. Se ele vai com a gente, talvez se safasse. Foi teimoso, voltou para trás. A minha aflição quando o vi a voltar para trás, rodeado de lume e de fumo. As chamas pareciam ondas do mar. Quando vi aquilo, fiquei perdida. Pensei: ‘Vamos morrer todos’.”

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Não morreram. Mas, tal como todos os que ficaram, uma parte de si perdeu-se a 17 de junho de 2017. “As pessoas já não são o que eram”, conta. “Não sei explicar. Parece que a gente perdeu o gosto. Eu perdi o gosto de tudo. Não tenho ilusões para nadinha, nadinha. Só para viver um dia de cada vez. Uma vida inteira a trabalhar e de um momento para o outro ficamos sem nada.”

Os primeiros meses foram suportáveis graças ao apoio que recebeu. “Se não fossem as pessoas boas, como é que a gente recuperava? Como é que a gente vivia? Tenho tido muita gente amiga, muito apoio”, garante. Vive na casa de um primo, com o marido e com o sobrinho criado como um filho desde que os pais morreram. É ele quem chega, sem avisar. Tinha estado a jogar dominó, ali perto. Fica a observar a cena à distância. Traz um casaco verde, um chapéu azul e umas calças de ganga impecavelmente lavadas. Sofre de Trissomia 21. É também por ele que Alzira quer mudar-se o quanto antes. O sobrinho não se está a adaptar bem à mudança. Mas já não faltará muito.

[“Se não fossem as pessoas boas, como é que a gente recuperava?” Veja no vídeo a história de Alzira Quevedo] 

A casa nova, construída sobre as ruínas da anterior, está praticamente pronta. “Agora, se Deus quiser, vem uma coisa atrás da outra. Os pedreiros nunca largaram aquilo, nem a chover”, conta, antes de aceitar, sem hesitar, fazer uma visita guiada até ao futuro lar.

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O percurso não demora mais do que três minutos de carro. Chegados lá, as paredes ainda cheiram a tinta. Há pó de obras por todo o lado, mas circula ar fresco no interior da casa, pintada em tons de branco e cinza claro. O negro já não existe ali mais. Alzira vai elogiando as obras e explicando todas as divisões. Só a escadaria íngreme e sem corrimão parece ser incompreensível. Mas Alzira não se deixa ir abaixo. “Não me posso queixar.” A casa estará pronta em breve, talvez ainda antes de setembro. “Quero vir para aqui”, segreda-nos o sobrinho. Ele, como todos os outros, anseia pela normalidade depois da catástrofe. Que depois de aceitarem o que perderam, chegue, por fim, a esperança de dias melhores.

Vídeos: Edição de André Dinis Carrilho, Fábio Vilares e Raquel Sá Martins. Realização de André Dinis Carrilho

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