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A primeira empresa com ADN português a alcançar o estatuto de unicórnio — quando atingiu uma avaliação superior a mil milhões de dólares — teve uma queda aparatosa. Os rumores de que estaria a estudar uma saída da bolsa de Nova Iorque, o cancelamento, em cima da hora, da apresentação das contas do terceiro trimestre do ano e as mais de duas semanas de silêncio que se seguiram faziam antever que a Farfetch poderia estar em apuros. O resgate da plataforma de moda de luxo de José Neves chegou pelas mãos da sul-coreana Coupang (e dos 500 milhões de dólares que disse que pretende injetar).
Os capítulos da novela Farfetch, que se tem vindo a desenrolar ao longo das últimas semanas, não são muito diferentes dos de outras empresas internacionais que outrora foram consideradas unicórnios. Fora da indústria da moda e em áreas como a construção de casas modulares ou o aluguer de espaços de cowork também há firmas que perderam as asas e o estatuto de animal mítico, bem como a reputação que conseguiram a alcançar.
A WeWork chegou a ser considerada uma das startups mais valiosas dos Estados Unidos. No passado mês de novembro declarou falência nesse país e no Canadá. No entender de Erik Gordon, professor de gestão na Universidade de Michigan (EUA), que utiliza esta empresa de aluguer de espaços de trabalho partilhados como caso de estudo nas suas aulas, os “antigos unicórnios que estão a fechar portas ou a pedir proteção contra a falência, um pouco por todo o mundo, têm algumas características, como terem sido avaliadas como unicórnios com base em ilusões — e não na realidade”.
Através de declarações escritas enviadas ao Observador, o professor defende que “devido às avaliações irrealistas”, as empresas conseguiram “angariar grandes quantidades de dinheiro, que gastaram de forma imprudente”, o que, considera, pode ter levado ao fim dos negócios. Questionado sobre se o facto de unicórnios como a Farfetch, a WeWork ou a Bird, empresa de aluguer de trotinetes elétricas, terem colapsado é um potencial fator de preocupação para negócios que operam nas mesmas áreas, Erik Gordon acredita que sim: “As empresas que ainda não faliram estão assustadas porque compreendem que podem enfrentar o mesmo fim, feio, que outras tiveram.”
José Neves, o homem que sonhava ser astronauta e não conseguiu manter o unicórnio Farfetch a voar
WeWork, de uma avaliação de 47 mil milhões de dólares à falência
Fundada em 2010 com o objetivo de revolucionar o mercado de cowork, a WeWork cresceu até ser considerada uma das mais valiosas startups dos Estados Unidos, tendo, em 2019, sido avaliada em 47 mil milhões de dólares. Quatro anos depois, este verão, afirmou ter “dúvidas substanciais” sobre o futuro. Em novembro, declarou falência nos Estados Unidos e no Canadá.
O modelo de negócio da startup consistia na assinatura de contratos de arrendamento de longo prazo de grandes propriedades, que posteriormente alugava a várias empresas mais pequenas ou a trabalhadores em regime freelancer com acordos mais flexíveis e por períodos de tempo mais reduzidos. Foram dúvidas relacionadas com a sustentabilidade do modelo de negócio, com prejuízos avultados e com o estilo de liderança do CEO e cofundador, Adam Neumann, que levaram a empresa a não entrar em bolsa em 2019.
Adam Neumann, empresário israelo-americano, criou a WeWork juntamente com a mulher, Rebekah, e um amigo, Miguel McKelvey. A imagem da empresa, detalha a agência Reuters, estava fortemente ligada ao CEO, que era considerado extravagante e que promovia o mantra “trabalhar muito, festejar muito”. Por isso, ao longo dos anos surgiram vários rumores de que marcava reuniões para as duas da manhã e que bebia shots de tequila com os funcionários depois de os despedir.
A liderança de Neumann, que chegou ao fim em 2019 após a tentativa falhada de entrar em bolsa, é um dos focos de WeCrashed, série que estreou no ano passado na Apple TV+ e que conta a história da ascensão e da queda da WeWork. A startup, após um resgate financeiro por parte do Softbank Group, conseguiu chegar a Wall Street em 2021, com uma avaliação de 9 mil milhões de dólares, aproximadamente um quinto do valor estimado dois anos antes.
A pandemia, que deixou os escritórios vazios e que levou os trabalhadores a adotarem o teletrabalho, fragilizou a WeWork, que ao longo da sua história nunca conseguiu dar lucro. A Reuters nota que, com a Covid-19, a empresa teve não só de lidar com os caros contratos de arrendamento que tinha assinado como o facto de vários dos seus clientes terem cancelado o arrendamento dos espaços.
As dificuldades e a necessidade de liquidez mantiveram-se mesmo depois do fim das restrições relacionadas com a Covid-19, com os trabalhadores a serem autorizados a regressar aos escritórios. Este ano, apesar de ter passado meses a reestruturar dívidas e a renegociar contratos de arrendamento, a WeWork não conseguiu evitar a falência nos Estados Unidos e no Canadá.
A empresa informou que as filiais fora desses dois países não seriam afetadas, pelo que as operações em Portugal se manteriam com normalidade. A empresa chegou no verão de 2022 a Lisboa, onde mantém, no número 50 da Rua Alexandre Herculano, o primeiro e único espaço de trabalho flexível que abriu no mercado português.
Se chegou a estar avaliada em 47 mil milhões de dólares e entrou em bolsa a valer 9 mil milhões, a WeWork tem agora uma capitalização bolsista, segundo o MarketWatch, de cerca de 19,7 milhões de dólares. Para o professor Erik Gordon, a queda da startup (e do seu valor de mercado) deve-se ao facto de “o seu modelo de negócio não fazer sentido”. Isto porque, afirma, a procura por espaços de escritórios partilhados “nunca atingiu o nível necessário” para fazer face aos elevados contratos assinados pela empresa. Por isso, continua, a falta de subarrendatários, impulsionada pela Covid-19, fez com que não conseguisse compensar as perdas ou até “pagar os alugueres”.
Bird, de “ar mais limpo, menos trânsito e mais alegria” à proteção perante falência
Adotando o lema “ar mais limpo, menos trânsito e mais alegria”, a Bird nasceu em 2017 nos Estados Unidos para tornar as “cidades mais habitáveis, reduzindo o uso de automóveis, diminuindo as emissões de carbono e melhorando a segurança de todos os utilizadores das estradas”. A empresa de aluguer de trotinetes elétricas, que entrou em Portugal em 2019, com a chegada a Lisboa, e que está presente em mais de 350 cidades em redor do mundo, entrou este mês com um pedido de proteção contra credores ao abrigo de um formulário Chapter 11, do código de falências dos Estados Unidos.
O pedido chega cinco anos após ter sido considerada a startup mais rápida a atingir o estatuto de unicórnio e não afeta os mercados em que está presente na Europa e no Canadá, que continuarão “normalmente”. No âmbito do pedido de proteção, a Bird pretende fazer uma “reestruturação financeira” sem interromper as operações diárias, sendo que deverá receber 25 milhões de dólares de investidores, como o fundo Apollo Global Management, num financiamento DIP (debtor-in-possession ou devedor em posse, em português).
Entre as razões que justificam o pedido de proteção perante falência estão as “despesas judiciais significativas” relacionadas, detalha o The Wall Street Journal, com os mais de 100 processos que a Bird enfrenta na justiça, a maioria devido a alegados danos pessoais resultantes de acidentes dos utilizadores nas trotinetes. Ao peso das ações judiciais juntou-se a inflação, com a empresa — que nunca teve lucro — a valer agora cerca de 1,3 milhões de dólares.
A revista norte-americana New York Magazine adianta que a startup perdeu 430 milhões de dólares desde o final de 2021, ano em que entrou na bolsa de Nova Iorque. A chegada a Wall Street não foi pacífica para a Bird, que viu as ações desvalorizarem mais de 90% nos primeiros seis meses. Apesar disso, nesse ano, aparentava focar-se no desconfinamento das cidades europeias. Comprometeu-se a investir 150 milhões de dólares para “manter o uso de carro reduzido”, montante que pretendia utilizar para “abrir programas de micromobilidade seguros e sustentáveis em mais de 50 novas cidades” na Europa.
A saída de bolsa aconteceu em setembro deste ano após ter permanecido, durante 30 dias de negociação consecutivos, com uma capitalização bolsista abaixo de 15 milhões de dólares, algo que não é permitido pelas regras. Travis VanderZanden, antigo executivo da Uber que criou a Bird e era seu CEO, deixou a tecnológica após esta ser retirada de Wall Street.
Bird promete investir 125 milhões de euros na Europa para “manter o uso do carro reduzido”
Se ao longo dos anos, antigos trabalhadores foram descrevendo os colegas como sendo “fenomenais”, “talentosos” e “muito, muito inteligentes”, a reputação das chefias era diferente. De acordo com o The Verge, por várias vezes, ex-funcionários descreveram os executivos que faziam parte da liderança da Bird como “assustadores”, “patetas”, “muito interessados em nepotismo” ou indivíduos com “problemas de personalidade”.
Steve Schnell, que ocupou o cargo de chief operating officer da empresa de 2017 a 2020, era dos mais visados. Terá, alegadamente, demitido trabalhadores de forma aleatória por causa do Slack, plataforma utilizada pelos funcionários para comunicarem entre si, após ter ficado bêbedo numa cimeira em Amesterdão. Outro dos boatos é de que as festas da empresa, nomeadamente as de fim de ano, ficavam fora do controlo, com trabalhadores a consumirem drogas. A Bird negou, afirmando que “tem políticas fortes contra o uso de drogas ilegais e/ou o uso indevido de drogas legais”.
Com o comunicado de que a Bird pediu proteção perante uma situação de falência, a New York Magazine descreveu a empresa como “um produto da era inebriante e pré-pandemia de um mundo tecnológico apoiado por capital de risco”. E considerou que a startup era uma “vítima do timing“: uma ideia certa, com líderes a tomar decisões erradas. A mesma opinião foi expressada por Erik Gordon ao Observador, que considerou que os problemas da Bird devem-se ao facto de ter sido “mal gerida”.
Entre esses problemas de gestão está o facto de, em novembro de 2022, a Bird ter, indica o The Verge, durante pelo menos dois anos (2020 e 2021), inflacionado as receitas, de forma indevida e após a conclusão de determinadas viagens, ao contar os saldos pré-carregados da ‘carteira’ digital que os utilizadores têm na plataforma. Na altura, reconheceu o erro ao dizer que a receita “não deveria ter sido registada” e que iria corrigir os relatórios financeiros “assim que possível”.
Veev, de unicórnio ao resgate do principal investidor em menos de dois anos
O nome é inspirado na palavra “viver” em espanhol e francês, vivir e vivre, respetivamente. Os fundadores são israelitas (Amit Haller, Ami Avrahami e Dafna Akiva) e é nesse país que estão parte das operações, incluindo um centro de investigação e desenvolvimento. A sede, por sua vez, está localizada em Hayward, cidade na Califórnia, Estados Unidos. A história da Veev remota a 2008, quando começou a sua atividade enquanto gestora de ativos imobiliários.
Nove anos depois, a startup mudou de rumo e passou a dedicar-se à construção de casas modulares. Em entrevista à agência Associated Press, Amit Haller, cofundador e CEO, explicou que a empresa tem uma “linha de produção linear” para produzir as suas paredes, que têm soluções mecânicas, elétricas e hidráulicas, que é semelhante à utilizada na “produção de um carro”. “Com o nosso método único plug-and-play, essas paredes são encaixadas umas nas outras no terreno, de forma muito rápida e eficiente.”
Após a entrega de todos os materiais, a Veev precisava de “uma equipa de cinco pessoas” e de uma grua para construir a casa em “quatro semanas”. Posteriormente, segundo a Forbes, era entregue ao comprador da propriedade um manual interativo, que, em conjunto com uma aplicação da startup, permitia controlar a casa e ver o interior das paredes para saber, por exemplo, onde estavam localizadas as vigas de aço ou a canalização.
A tecnológica, que nos seus tempos mais áureos chegou a contar com 400 trabalhadores, fechou uma ronda de financiamento de 400 milhões de dólares em fevereiro de 2022, investimento que a catapultou para o estatuto de unicórnio um mês depois. Porém, em novembro desse mesmo ano, demitiu cerca de 30% da sua força de trabalho, uma decisão que descreveu como “estratégica” e que foi tomada numa altura em que deixou de construir edifícios altos (como prédios e arranha-céus) para passar a focar-se em moradias.
Um ano depois, no final de novembro de 2023, a startup revelou que, após o “cancelamento à última hora” de um “processo de levantamento de capital”, tinha de fechar portas. “À luz da situação atual do mercado em Israel e no mundo, não foi possível garantir financiamento adicional”, afirmou, citada pelo site Vice, adiantando que as operações continuariam até que fosse “encontrado um comprador para os ativos”.
Nesta fase, os funcionários da empresa em Israel continuarão a trabalhar”, continuou a empresa, sem deixar claro o que aconteceria aos trabalhadores na Califórnia. A Veev contava, nesta altura, com cerca de 250 trabalhadores.
A subida das taxas de juro, que levaram a um aumento do preço da construção e que também deixaram os investidores menos recetivos a comprar casas, bem como problemas na cadeia de abastecimento são, segundo o Vice, algumas das dificuldades que a empresa teve de enfrentar. Além disso, de acordo com o site israelita CTech, a startup recebeu apenas 200 milhões de dólares dos 400 milhões que anunciou ter arrecadado no ano passado. A segunda metade do investimento deveria ter sido entregue em março deste ano, mas alguns investidores — após a empresa ter tomado a decisão de se focar na construção de moradias particulares — recusaram transferir esse montante.
Em contrapartida, propuseram que fosse feita uma ronda de financiamento interna de 120 milhões de dólares. O CTech nota que a Veev estava relutante, mas aceitou por falta de alternativas, sendo que recebeu empréstimos avaliados em 25 milhões de dólares. Após anunciar que ia encerrar, a Lennar, empresa de construção que é a maior investidora da startup, concedeu-lhe um empréstimo provisório de três semanas, período após o qual foi a única a fazer uma oferta para adquirir o controlo total da Veev.
Desta forma, três dias antes da véspera de Natal, o CTech avançou que a compra estava concluída e que os cofundadores Ami Abrahami e Dafna Akiva tinham sido demitidos, embora a Lennar tenha manifestado interesse em manter as operações em Israel.
Convoy, da ambição de tornar o “transporte de mercadorias mais eficiente” à “tempestade perfeita”
Dan Lewis passou pela Microsoft, Google e Amazon antes de lançar, em 2015, a sua própria empresa: a Convoy, que utiliza a tecnologia “para tornar o transporte de mercadorias mais eficiente, reduzindo os custos de algumas das maiores marcas do país, aumentando os lucros dos transportadores e eliminando as emissões de carbono” do planeta.
A startup, sediada em Seattle, conquistou o apoio de líderes tecnológicos como Bill Gates e Jeff Bezos, sendo que, de acordo com o Axios, era vista como uma potencial futura gigante de uma região que acolheu empresas como a Amazon e a Microsoft. Em 2018 alcançou o estatuto de unicórnio após captar um investimento de 185 milhões de dólares, numa ronda liderada pelo braço de investimento da Google.
Ao longo da sua história, a Convoy conseguiu arrecadar cerca de 900 milhões de dólares em financiamento. Porém, nos últimos anos, após máximos atingidos na pandemia com picos na procura, foi afetada pela queda dos preços no setor da logística. Nos últimos 18 meses, segundo a CNBC, a tecnológica fez várias rondas de despedimentos, tentou cortar custos e readaptar-se ao mercado.
Não conseguiu, o que a levou a tomar a decisão de encerrar as “principais operações comerciais”, com os trabalhadores a receberem ordens para pararem de registar pedidos e cancelarem os existentes. Num email enviado aos funcionários, Dan Lewis justificou que um “colapso sem precedentes no mercado de mercadorias” e um “dramático aperto financeiro” reduziram “drasticamente o apetite de investimento”. Uma “tempestade perfeita” que “acabou por esmagar o nosso progresso”, acrescentou o CEO da Convoy, que ainda no ano passado estava avaliada em cerca de 4 mil milhões de dólares.
O resgate da Convoy — que demitiu 533 trabalhadores (a maioria da sua força de trabalho) após anunciar que ia fechar portas — chegou pelas mãos da plataforma de logística Flexport, que comprou os seus ativos. O CEO dessa empresa, Ryan Petersen, disse que não iria adquirir a totalidade do negócio, nem qualquer passivo, mas que pretendia “manter um pequeno grupo de membros da sua equipa principal de produtos e engenharia”. Uma fonte com conhecimento do acordo revelou ao The Wall Street Journal que Dan Lewis vai passar a fazer parte da Flexport.
Não foram revelados detalhes do negócio, mas Petersen afirmou que “o preço da compra em relação ao valor é modesto”. Ainda antes da Convoy fechar portas, a Flexport também aparentava estar com dificuldades, uma vez que, de acordo com a CNBC, tinha anunciado que ia demitir cerca de 20% da sua força de trabalho.
A queda de unicórnios internacionais como a Convoy e a Veev levam Erik Gordon, professor de gestão da Universidade de Michigan, a considerar, em declarações ao Observador, que “qualquer empresa cuja avaliação e acesso ao financiamento se baseie num crescimento que exija muito capital e que não esteja a produzir um cash flow substancial enfrentará tempos mais difíceis do que aqueles do dinheiro fácil, que permitiram que as firmas parecessem estar a ter sucesso”. Quanto ao ecossistema internacional de inovação e empreendedorismo, mostra não ter dúvidas de que “perdeu muito do seu apelo porque muitas pessoas perderam muito dinheiro”.