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Em Moçambique, ninguém fala livremente. “Por favor, não me coloquem em risco”, ouve-se cada vez que o Observador fala com algum português emigrado neste país africano. Nos últimos dias, Moçambique tem sido palco de revoltas, com a população a ir para a rua manifestar-se contra os resultados eleitorais de dia 9 de outubro, alegando fraude eleitoral e exigindo a queda do partido que não desiste do poder. Para conter os protestos, a polícia tem disparado contra os manifestantes e usado gás lacrimogéneo. A revolta tem-se alastrado a vários pontos do país e os pontos de contestação “ganham cada vez mais gás”, conta um dos portugueses.
Nas próximas horas prevê-se um corte total de todas comunicações — sendo que a internet móvel já tinha sido cortada — e há quem já faça contas à vida. Não querem deixar Moçambique (pelo menos até ao momento), mas pedem ao Governo português que dê um sinal de que está atento à situação e pronto a agir em caso de necessidade. “Sentimo-nos um pouco sozinhos”, dizem, enquanto aguardam ansiosamente por quinta-feira, dia em que se prevê que Maputo seja palco de uma grande manifestação. Para já, o Ministério dos Negócios Estrangeiros garante que, se for necessário, o plano de retirada de cidadãos portugueses está pronto a avançar.
Para chegar ao contacto com quem está neste momento em Moçambique é necessário recorrer ao WhatsApp. E do outro lado só será possível receber e atender a chamada se a pessoa tiver o telemóvel ligado ao wi-fi ou tiver uma VPN devidamente instalada. “Estou a falar porque tenho uma VPN, senão, não conseguia, e só consigo até ser descoberta. Fazem isto para calar as pessoas”, diz Ana, emigrada em Moçambique. O nome é fictício; a mulher tem medo de poder vir a sofrer represálias caso se manifeste abertamente contra o governo e a Frelimo, o partido no poder que alega ter vencido as últimas eleições presidenciais.
Ana vive o conflito moçambicano com outros olhos: “Tenho ascendência portuguesa e nasci em África. Tenho um amor muito grande a esta terra, vivo isto como moçambicana e não como portuguesa.” A empresária emociona-se a falar do país de que foi expulsa em 1975, juntamente com os pais, obrigando-a na altura a voltar a Portugal. “Agora, desisti de ter medo, publico no Facebook o que quero. Desta vez não vou fugir daqui, morrerei por Moçambique”, garante.
Cerca de quinze dias depois das eleições moçambicanas, a Comissão Nacional de Eleições (CNE) deu a vitória ao candidato da Frelimo, Daniel Chapo, na eleição para Presidente da República. O opositor Venâncio Mondlane, apoiado pelo Podemos, ficou em segundo lugar, mas não reconheceu os resultados. Ao invés, apelou a uma greve geral e manifestações durante uma semana (entre 31 de outubro e 7 de novembro). Nos últimos dias, disse o responsável da Associação Médica de Moçambique (AMM), pelo menos 16 pessoas morreram devido aos episódios de violência que se seguiram às eleições e outras 108 foram baleadas.
Sair do país é a “ideia mais segura”
“Não é o povo que está mal, nem estas manifestações. É o outro lado. O que estamos a ver é um povo revoltado, que só quer liberdade, que o governo caia e que o seu voto seja validado. Estas manifestações mostram que não querem guerra, porque se não tinham saído com catanas e azagaias e destruído tudo”, diz Ana. A luso-moçambicana sente “que vai haver uma viragem e uma mudança se o Mondlane conseguir levar para a frente a sua vontade de fazer de Moçambique um país livre”, mas não acredita “que vá ser fácil”. “Antes de melhorar vai piorar muito… Não estou com medo do povo, estou com medo da polícia, deste governo e desta corrupção.”
Apesar de se sentir confortável em Moçambique e de se recusar a deixar o país, Ana conta que os portugueses com quem tem falado “se sentem completamente abandonados pelas instâncias portuguesas, porque não há uma palavra da embaixada”. A queixa é comum a alguns outros portugueses no país que o Observador ouviu. Uma dessas pessoas — que vive em Moçambique há 12 anos — diz que estas tensões são diferentes de todas as outras que já testemunhou.
Ao Observador, diz que se nota um ambiente diferente e que “as coisas estão a ganhar gás”. Considera que o país está a chegar ao culminar de uma situação que era “previsível há pelo menos duas semanas”, já que, desde que a contestação dos resultados eleitorais se foi fazendo notar, cada vez mais pessoas se foram juntando aos protestos. Nas últimas noites, em vários prédios residenciais da cidade de Maputo, manifestantes têm ido à janela bater em panelas, provocando um som intenso que ecoa por toda a rua — um movimento que já foi batizado de “panelaço”. Nas redes sociais, têm sido divulgados alguns vídeos desses momento.
“Notamos que as coisas estão a crescer e temos algum receio de como pode terminar”, diz um dos portugueses ouvidos pelo Observador. Nos planos deste emigrante não está a ideia de um regresso a Portugal, mas a hipótese não está completamente excluída: “A ideia mais segura é sair, é algo que está sempre presente, mas que depende do que se passar nos próximos dias.”
Para já, garante que não tem “medo de ir à rua”, mas assume que tem “algum receio”. “Felizmente, onde vivemos podemos dizer que está calmo, mas aqui a calmaria pode dar uma sensação falsa de segurança. Há receio face à incerteza”, diz.
Médicos marcharam em Maputo com um pedido: “Parem de matar o nosso povo”
Comércio fechado e blackout de comunicações: como se alterou o dia a dia?
Alguns dos portugueses ouvidos pelo Observador dizem que nos últimos dias houve algumas alterações à rotina do dia a dia, apesar de, ainda assim, conseguirem manter alguma normalidade.
Uma dos emigrantes — que também pede anonimato — conta que tratou “atempadamente” de rechear a despensa, prevenindo-se para qualquer escassez de produtos nos supermercados. Na área onde este português vive, até ao momento não se notou a falta de nenhum alimento (sendo que a única diferença que se nota é o horário de funcionamento). Contudo, esta não é a realidade de toda a cidade: há portugueses que dizem que esta terça-feira já se notava uma quebra nos produtos hortícolas disponíveis nas prateleiras.
A nível de comércio, a maioria dos estabelecimentos estão encerrados — cerca de 90%, diz um dos portugueses ouvidos pelo Observador. Isto deve-se essencialmente ao facto de não existirem transportes que garantam a deslocação dos funcionários de casa até aos locais de trabalho, consequência dos níveis de adesão à greve.
Outra das alterações que mais se fez notar foi o corte dos dados móveis, sendo que nos próximos dias é esperado que a situação se agrave: apesar de não haver ainda informações oficiais, têm circulado informações de que haverá um blackout total, ou seja, todas as comunicações serão desligadas. “Isto assusta um pouco”, admite um dos portugueses, que acrescenta que nos últimos dias tem trabalhado a partir de casa.
Há ainda um controlo de toda a informação que é transmitida na comunicação social. Os portugueses ouvidos pelo Observador relatam que, por vezes, no noticiário é dito que uma determinada estrada foi reaberta. Contudo, não só a população não estava a par de que aquele troço tinha sido encerrado, como não também não são partilhados detalhes sobre o motivo para que o bloqueio tivesse ocorrido. “Nas notícias, os assuntos são outros”, diz um dos portugueses.
MNE: “Há uma estrutura pensada”, caso seja necessário retirar portugueses
Neste momento, para quem está em Moçambique, tudo se resume ao dia 7 de novembro. “Quinta-feira será quase como que a prova dos nove. Veremos como será a reação”, diz um dos emigrantes ouvidos pelo Observador. Em causa está uma grande manifestação que está prevista para Maputo.
Foi marcada pelo líder da oposição, Venâncio Mondlane, para assinalar o fim de sete dias de greve, e deverá alastrar-se pelas avenidas centrais da cidade. Até ao momento, não se sabe como tudo está a ser organizado pelo partido Podemos, mas os portugueses em Moçambique estão “na expetativa”. Um deles admite mesmo que, caso as tensões cresçam de tal forma que coloquem o exército a lutar em peso contra os manifestantes (iniciando uma guerra civil), não pensará duas vezes em deixar o país.
“Acreditamos que não será necessário sair, mas temos de deixar sempre a porta aberta, porque a incerteza existe”, diz outro português em Moçambique, acrescentando que confia que o Governo português irá intervir caso seja necessário.
A 30 de outubro, o Ministério dos Negócios Estrangeiros português publicou no site uma nota informativa onde recomendava aos portugueses em Moçambique que “evitem ajuntamentos populares e mantenham cuidados de segurança redobrados”, tomando “as medidas de precaução adequadas”.
Além disso, não houve qualquer outra comunicação, posição que tem gerado críticas por parte dos emigrantes em Moçambique: “Sentimo-nos aqui um pouco sozinhos. Até este momento não sentimos que esteja a ser preparado ou equacionado nenhum plano de evacuação. A tomada de medidas tem de ser individual e com networking local… Parece que ninguém pensou que isto pode correr mal”.
Questionado pelo Observador, o MNE garante que “há sempre uma estrutura pensada para este ou outros países para responder a eventuais necessidades de evacuação, mas neste momento não se justificam”. E acrescenta que, até ao momento, não foram feitos quaisquer pedidos de ajuda de portugueses residentes em Moçambique (nem de familiares residentes em território nacional).
Na passada segunda-feira já o ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, dizia que Portugal estava “a acompanhar a situação muito de perto”. “Temos feito, através da nossa embaixada, alguns contactos”, disse, acrescentando a garantia de que a situação no país estava a ser acompanhada “com uma grande vontade que as coisas corram bem, que os resultados e atas eleitorais apareçam e sejam todas publicadas”.
A cerca de dois dias da manifestação prevista em Maputo, Ana, que reside em Moçambique há 15 anos, recusa-se a dizer se vai participar no protesto: “Vontade não me falta de ir para a rua na quinta-feira, mas já sofri muitas represálias e recebi muitas ameaças. Vivemos aqui um turbilhão de emoções. Emoções suicidas: somos capazes de dar o corpo por uma causa que também é nossa”.
Na passada segunda-feira a responsável pelos Negócios Estrangeiros de Moçambique reuniu-se com diplomatas para pedir colaboração para pôr termo às manifestações nas ruas do país. Contudo, até ao momento, isso não aconteceu — pelo contrário, a adesão aos protestos tem-se mantido e tem até dado sinais de estar em crescendo. Ao mesmo tempo, o governo moçambicano continua sem dar sinais concretos de que como planeia agir para acalmar as tensões das últimas semanas.