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"Pessoalmente não gostaria de continuar a usá-la, mas às vezes gosto de a ter por saber que as pessoas não conseguem ver as minhas reações, sinto-me protegida", diz Letícia, de 15 anos
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"Pessoalmente não gostaria de continuar a usá-la, mas às vezes gosto de a ter por saber que as pessoas não conseguem ver as minhas reações, sinto-me protegida", diz Letícia, de 15 anos

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

"Pessoalmente não gostaria de continuar a usá-la, mas às vezes gosto de a ter por saber que as pessoas não conseguem ver as minhas reações, sinto-me protegida", diz Letícia, de 15 anos

ANA MARTINGO/OBSERVADOR

"Não gosto da minha cara." Os adolescentes que não querem deixar cair a máscara

Para esconder imperfeições no rosto ou ocultar reações mais emotivas, máscara ganhou outras funções além de nos proteger contra a Covid-19. Para alguns, menos máscaras pode trazer maior ansiedade.

Primeiro veio o medo do vírus invisível, mas também a rejeição das máscaras estranhas e desconfortáveis. Agora que a normalidade está progressivamente de regresso, os sentimentos são ambíguos entre os mais novos: se por um lado o adeus definitivo às máscaras nas escolas traz uma sensação de liberdade, por outro, há receio em voltar a mostrar os rostos na íntegra depois de dois anos de pandemia — em Espanha fala-se até do “síndrome da cara vazia”.

“Eles estão felizes por as coisas estarem finalmente a abrir, mas a relação com a máscara é um pouco estranha”, assinala Ana Ribeiro. A professora de inglês na Escola Básica dos 2.º e 3.º Ciclos Cego do Maio, na Póvoa de Varzim, é também coordenadora do Projeto Eramus daquele agrupamento. “Verifiquei isso no encontro que tivemos há pouco tempo na República Checa onde já não era obrigatório o uso de máscaras e eles tiveram alguma dificuldade em aceitar isso. Alguns puxavam a gola da camisola para cima e tapavam um pouco a cara com os dedos na hora de tirar fotografias“, conta ao Observador. Ribeiro refere-se a alunos que acompanha há três anos e fala de uma passagem da infância para a adolescência em plena pandemia, quando a norma era cobrir o rosto.

Já não é só por medo de apanhar Covid-19 que alguns dos alunos teimam em esconder a cara, até porque a maior parte deles, diz a professora, já antes estiveram infetados. “Não noto que seja tanto o receio da doença, mas sim problemas de autoestima próprios da idade.” Diogo, de 14 anos, encaixa-se nessa descrição quando ao Observador comenta que prefere “andar sempre de máscara” porque se sente “inseguro” ao mostrar o rosto. “Acho que me sinto mais confortável sem a máscara, mas eu não gosto da minha cara”. Rodeado de pessoas desconhecidas opta por ter o rosto coberto, admite, “por causa das inseguranças”. Já na companhia de colegas a realidade é outra, ainda assim, preferia que cobrir ou não a cara na escola fosse uma questão de escolha — Diogo tem o cabelo bastante longo, quase sempre a tapar os olhos, e manteve a máscara durante a entrevista feita ao ar livre, junto ao mar, e ao telefone.

Testemunho semelhante é o da amiga Letícia, de 15 anos, que se sente mais segura a usar a máscara dependendo do local em que está. “Pessoalmente não gostaria de continuar a usá-la, mas às vezes gosto de a ter por saber que as pessoas não conseguem ver as minhas reações, sinto-me protegida.” Acontece sobretudo quando fica “com raiva” e os outros não conseguem ler as suas expressões, mas também quando o acne nas bochechas piora e quando na sala de aula tem de falar perante a turma — nesses dias prefere ter apenas a linha dos olhos a descoberto.

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"Verifiquei isso no encontro que tivemos há pouco tempo na República Checa onde já não era obrigatório o uso de máscaras e eles tiveram alguma dificuldade em aceitar isso. Alguns puxavam a gola da camisola para cima e tapavam um pouco a cara com os dedos na hora de tirar fotografias."
Ana Ribeiro, professora de inglês

A falsa sensação de “proteção e segurança” nas interações sociais e o esconder das imperfeições

No Agrupamento de Escolas do Alto do Lumiar, que reúne alunos dos 3 aos 18 anos, desde o início da pandemia que o desafio foi convencer os mais novos a não pôr de lado a máscara como sinal de rebeldia. Talvez o contrário acontecesse, diz a docente Maria Caldeira, se usá-la fosse considerado “um ato menos lícito”. A recente alteração da lei não será, por isso, um problema.

Prognóstico diferente é o de Rui Cardoso, diretor da Escola EB 2/3 do Viso, no Porto, que especula que deixar cair a máscara não será, para alguns dos alunos, uma decisão fácil. Quando já era permitido deixar o rosto a descoberto no exterior, “nenhum aluno o fez, continuaram a usá-la como se a regra se mantivesse”. “Eles sentem-se seguros com a máscara”, diz, pelo que não estranha a possibilidade de alguns adolescentes continuarem a andar de rosto tapado sem que o motivo seja o medo do contágio. “É bem capaz de isso acontecer num número residual”, até porque há quem ainda mantenha a distância social por uma questão de conforto.

Alguns adolescentes encontraram na máscara uma sensação de “proteção e segurança” tendo em conta a “exposição” decorrente das interações sociais.

vejaa/iStockphoto

Olhando pelo espelho retrovisor, os jovens tiveram alguma facilidade na adaptação à utilização da máscara logo no início da pandemia. Na generalidade, tendo em conta os dados recolhidos, esta faixa etária exibiu um comportamento “saudável” e serviu “de referência para os outros grupos populacionais”, garante Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses (OPP). Mas apesar do arranque otimista, o prolongamento da crise sanitária gerou “consequências a todos os níveis”: não é por isso de estranhar que os adolescentes também tenham encontrado na máscara uma sensação de “proteção e segurança” tendo em conta a “exposição” decorrente das interações sociais.

"As máscaras passaram a ser uma espécie de ansiolítico para questões da relação social. Elas permitem que uma pessoa não se revele na totalidade."
Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses

“As máscaras passaram a ser uma espécie de ansiolítico para as questões da relação social”, diz a psicóloga. “Elas permitem que uma pessoa não se revele na totalidade”, além de “cobrirem imperfeições” como acne ou aparelhos dentários, por exemplo, e de ocultarem determinadas reações emocionais. Mas não é só uma questão de esconder expressões, é também não conseguir verdadeiramente compreender e interpretar o outro dado que não se tem acesso “a todo o código de linguagem”, o que pode gerar problemas de comunicação, conflitos e discussões, e criar situações de menor empatia.

Neste contexto, Sofia Ramalho destaca dois possíveis perfis de adolescentes mais propensos a encontrar esta falsa segurança através da máscara: um mais inibido, contido, inseguro, ansioso e introspetivo, “que não gosta de se expor”; e aquele que tende a ser “mais agressivo”, que usa a máscara como “uma possibilidade de mascarar expressões de agressividade”. As máscaras podem até funcionar como uma espécie de avatar digital: “A lógica é mais ou menos a mesma. Quanto mais cobrimos o nosso rosto e quanto mais nos afastamos das presenças físicas para aquelas virtuais, mais probabilidade temos de estar a esconder aquilo que é verdadeiro”.

O fenómeno, lembra, não é exclusivo da adolescência, embora ganhe outra importância nesta fase da vida marcada pela “construção da identidade”, o que acontece também através da “dimensão social”. “Isto pode interferir com processos de desenvolvimento e ter um impacto na vida adulta”, uma vez que o adolescente precisa do confronto com o outro nas situações de interação presencial e na negociação de conflitos. “O uso da máscara inibe essa necessidade de nos termos de confrontar socialmente com o outro, o que num primeiro momento pode parecer positivo para o adolescente mas, na verdade, ele não está a fazer a etapa de desenvolvimento natural no sentido de se construir enquanto adulto capaz de resolver problemas e negociar.”

"O uso da máscara inibe essa necessidade de nos termos de confrontar socialmente com o outro, o que num primeiro momento pode parecer positivo para o adolescente mas, na verdade, ele não está a fazer a etapa de desenvolvimento natural no sentido de se construir enquanto adulto capaz de resolver problemas e negociar."
Sofia Ramalho, vice-presidente da Ordem dos Psicólogos Portugueses

Num artigo dedicado ao mesma tema, o norte-americano The New York Times salienta com a falta de máscara pode, em alguns casos, traduzir-se em maior ansiedade, com adolescentes a temerem serem percecionados como menos atraentes e com receio de serem julgados ao fim de dois anos a mostrar metade da cara — afinal, a adolescência sempre foi definida por inseguranças em relação à imagem corporal, mas também por pressões sociais e questões de identidade. Tirar a máscara pode, por isso, ser visto como uma transição social num período em que os jovens são hiperseníveis ao que os outros pensam deles, com a psicóloga clínica Sophia Choukas-Bradley — diretora do Teen and Young Adult Lab, na Universidade de Delaware — a falar numa “audiência imaginária” que faz com que os adolescentes sintam que há um constante holofote sobre eles e as suas falhas.

Assim como tivemos de nos habituar de forma progressiva ao uso de máscara, teremos de nos habituar à falta dela, e os adolescentes “precisam de ter esse espaço” de manobra, acrescenta Sofia Ramalho. Se por um lado é preciso respeitar que não haja vontade em aderir à norma de um dia para o outro, por outro, não se deve fomentar a manutenção da máscara durante muito tempo, aconselha. Perante uma maior dificuldade de adaptação, há sinais a ter em conta: o apoio psicológico pode ser necessário quando em causa estão marcas de maior isolamento e/ou de conflito com os colegas, sintomas de ansiedade, problemas em dormir ou comer, ou ainda perda de interesse no contexto escolar.

Margarida Gaspar de Matos, professora Catedrática da Universidade de Lisboa na Faculdade de Motricidade Humana, fala do "desconforto das relações" dado o distanciamento social e o uso da máscara

AntonioGuillem/Istock

“Por um lado terei sempre aquele receio, por outro, vou sentir mais liberdade”

Ana Rita, Inês e Avina têm 18 anos e são colegas de turma no 12.º ano. Nenhuma delas usa a máscara na tentativa de esconder imperfeições ou como forma de escudo na interações com os outros, mas, de uma maneira geral, conseguem perceber quem o faça. A primeira diz que se sente segura de máscara e que ainda é “um pouco cedo” para deixá-la cair — na conversa, que aconteceu no dia anterior a ser conhecida a nova medida, previu “ficar com medo” quando a altura chegasse, não só por causa da Covid-19, mas também pelas “outras doenças, como a gripe”. Já Inês imagina-se “livre e verdadeiramente feliz” sem a máscara, mesmo que admita que já deu jeito para esconder uma borbulha “ao pé do nariz ou da boca” ou das vezes em que foi mais expressiva — já aconteceu pensar “Ufa, ainda bem que estou de máscara”. Avina fala em “mixed feelings”: “Por um lado terei sempre aquele receio dos casos de Covid-19 aumentarem, por outro, vou sentir mais liberdade sem ela”.

As repercussões a médio e longo prazo da pandemia na saúde mental dos jovens, tendo em conta as restrições impostas, ainda estão a ser desenhadas e vão depender em grande parte dos ambientes (família, escola e comunidade) “favoráveis e apoiantes”, salienta a psicóloga clínica e da saúde Margarida Gaspar de Matos. A também autora do recente livro “Adolescentes”, da editora Oficina do Livro e com prefácio de Daniel Sampaio, salienta como os adolescentes vítimas de bullying e com sintomas de ansiedade social poderão ter tido “tréguas” durante a época da máscara — são os mesmos que poderão “agora ter de ser acompanhados por um profissional de saúde mental neste regresso”.

"Houve também casos pontuais de adolescentes a referir que a máscara os/as ajudava a expressar a ira, quando se zangavam, explicando que às vezes se irritavam com colegas, pais ou professores e podiam 'fazer caretas ou deitar a língua de fora', sem dar nas vistas e sem ter consequências."
Margarida Gaspar de Matos, professora Catedrática da Universidade de Lisboa na Faculdade de Motricidade Humana

Margarida Gaspar de Matos, professora Catedrática da Universidade de Lisboa na Faculdade de Motricidade Humana, dá conta de “casos pontuais” de adolescentes a referir que a máscara os “ajudava a expressar a ira quando se zangavam, explicando que às vezes se irritavam com colegas, pais ou professores e podiam ‘fazer caretas ou deitar a língua de fora’ sem dar nas vistas e sem ter consequências”. Fala ainda no “desconforto das relações” dado o distanciamento social e as máscaras que dificultam “a comunicação verbal e não verbal” — as exceções serão adolescentes “pouco satisfeitos com a sua anatomia dental, labial ou facial, que em geral encontraram na máscara um ‘escudo'” e outros que sofram de ansiedade social e cuja máscara ofereceu uma sensação de proteção. “Mas são casos atípicos, eventualmente a precisar de apoio psicológico.”

O The New York Times dá conta do fenómeno “mask fishing”, a ideia de que alguém possa estar a esconder falhas faciais debaixo da máscara. Surgiu pela primeira vez nas aplicações de namoro e tornou-se uma tendência do TikTok no final de 2021. Nesta rede social, a hashtag com o mesmo nome acumula cerca de 352 milhões de visualizações, onde se incluem vídeos feitos em contexto escolar em que diferentes alunos são confrontados com a seguinte pergunta: “São mais ou menos atraentes com a máscara?”, o que pode suscitar constrangimento ou humilhação entre os mais novos. O termo surge de “catfishing”, que remete para uma identidade falsa num registo online. Já o Los Angeles Times destaca estudos científicos que mostram que as pessoas são entendidas como sendo mais atraentes quando usam máscaras ao invés de deixar o rosto completamente a descoberto.

As mudanças corporais na adolescência são muitas e muito rápidas, lembra ainda vice-presidente da OPP, pelo que ver o rosto por inteiro de um colega ao fim de dois anos de pandemia pode ser um choque grande e “aumentar a ansiedade da exposição face ao outro”. Afinal, na presença da máscara imaginamos o que está por detrás — a forma como completamos a cara do outro tem que ver com o significado que essa pessoa tem para nós e com o que guardamos dela na nossa memória.

Se Ana Rita comenta que praticamente não conhece os seus professores sem máscara, Inês, que mudou de escola a meio da pandemia, diz que conheceu colegas já com máscara: “Às vezes ainda é difícil imaginar como é a cara deles”. Já Avina fala num sentimento agridoce ao voltar ao ensino presencial por não poder ver o rosto dos amigos e fala de como só semanas depois viu a cara de um colega novo — “Quando finalmente vi o rosto dele apercebi-me que tinha uma ideia completamente diferente de como ele era. Até comentei com ele e rimo-nos.”

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