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Frances Haugen denunciou o Facebook, agora Meta, em 2021. Acusou a empresa de dar prioridade ao lucro em detrimento da segurança dos utilizadores

Bloomberg via Getty Images

Frances Haugen denunciou o Facebook, agora Meta, em 2021. Acusou a empresa de dar prioridade ao lucro em detrimento da segurança dos utilizadores

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“Não odeio Zuckerberg, tenho pena dele”, diz denunciante. “Estamos a ver o comboio descarrilar em vez de prevenir mais um desastre”

Frances Haugen, whistleblower do Facebook, teme a inteligência artificial nas redes sociais e pede medidas a tempo das eleições. Caso contrário, haverá uma repetição dos problemas de 2016.

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“Queria ser capaz de dormir à noite”, justificou Frances Haugen em 2021, quando revelou que era “Sean”, a pessoa que partilhou milhares de documentos internos do Facebook com o Wall Street Journal. O escândalo rebentou e ficou conhecido como “Facebook Files”. A norte-americana do Iowa, que passou uma parte da adolescência a competir em clubes de debate e em concursos de matemática e álgebra, já não conseguia conviver com as ações da big tech.

A história de como uma gestora de produto se rebelou contra a, agora, Meta, a tecnológica dona das maiores redes sociais do mundo, é descrita de forma pormenorizada no livro “A Verdade sobre o Facebook — porque me tornei delatora e quis contar toda a verdade”, lançado esta semana em Portugal, pela Casa das Letras. Embora Haugen não goste de ser o centro das atenções, denunciou a tecnológica por considerar que a segurança dos utilizadores foi menosprezada em detrimento do lucro.

A vida sossegada em Porto Rico, território dos EUA, para onde se mudou durante a pandemia para escapar da atribulada São Francisco, foi substituída pelo interesse da imprensa internacional, de governos em vários pontos do mundo e pelos circuitos de conferências de tecnologia.

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Em entrevista ao Observador brinca que, para a rede social de Zuckeberg, é como Voldemort, o vilão da saga Harry Potter. “Se as pessoas fazem perguntas sobre mim em conferências, não usam o meu nome.” Continua a ter uma conta na rede social que denunciou por questões práticas, mas desconfia que tem acesso a uma experiência mais cor-de-rosa do que outros utilizadores, só para que “não se possa queixar”.

Dois anos e meio depois de se assumir como denunciante, a relação com a empresa é a de “não existência pacífica”, admite, mas considera que é preciso “resolver os problemas” da empresa. “Na verdade, não temos outra opção.” 

Algumas coisas mudaram depois da denúncia, mas lamenta que o mundo “mude muito devagar”. Alerta para o risco de uma inteligência artificial (IA) capaz de contornar os filtros automatizados e pede que se comece a reparar em padrões de utilização nas redes sociais em vez de se olhar só para o conteúdo. Caso não se atue, teme que se repita 2016, quando houve interferência externa nas eleições norte-americanas através das redes sociais. “É frustrante porque estamos a ver o comboio descarrilar em vez de prevenir mais um desastre.”

“Acho que estão só a fingir que um dia vou desaparecer”

Quero começar por perguntar-lhe se ainda tem uma conta no Facebook.
Tecnicamente ainda tenho, uso-a para aceder a outros serviços, ainda tenho a minha conta do Spotify ligada ao Facebook, mas nunca lá vou. Na verdade, acho que me dão uma experiência diferente daquela que é apresentada à maioria das pessoas, porque nunca recebo outro conteúdo sem ser o dos meus amigos. E sei que não é essa a experiência típica. Para a maioria das pessoas só uma parte muito pequena do seu feed é que é de publicações de amigos.

Portanto, quando entra no Facebook não vê nada político ou anúncios, nada disso?
Tenho quase a certeza de que vejo anúncios e conteúdo político partilhado pelos meus amigos. Mas reparei que não me aparecia nada de aleatório, qualquer publicação que via era de um amigo. E quando trabalhava no Facebook e, da última vez que olhei para aqueles números, que foi em 2019, 60% de todo o conteúdo nos EUA era de grupos. Se se é membro de um megagrupo, que tem 100 mil pessoas, esse grupo vai produzir centenas de conteúdos todos os dias e é preciso ter um algoritmo a analisar toda essa informação e a apresentar só alguns desses conteúdos por dia.

Mas se houver algum enviesamento no algoritmo, esse megagrupo vai amplificá-lo. E isso é uma parte-chave da minha queixa contra os algoritmos ou sobre as experiências que fizeram. “Ah, desligámos o algoritmo.” Ok, mas ainda têm megagrupos, implementaram funcionalidades devido ao algoritmo e não se pensa noutras formas de fazer esses grupos. Desligar o algoritmo por si só não vai ajudar. Suspeito que me apresentam uma versão mais simpática do Facebook para não poder tirar capturas de ecrã ou queixar-me deles.

Depois dos “Facebook Files” depreendo que a sua relação com o Facebook seja complexa, mas já tentou contactá-los, mesmo através da Whistleblower Aid [organização que a ajudou durante o processo de denúncia], para confirmar essas suspeitas?
Temos uma espécie de acordo de não existência pacífica. Do género, se as pessoas fazem perguntas sobre mim em conferências, não usam o meu nome. É bastante engraçado, costumo fazer a piada de que sou o Voldemort para eles. Não fazem comentários diretos porque se queimaram, disseram uma série de coisas no início que agora soa mal. Por isso acho que agora estão só a fingir que um dia vou desaparecer.

Featured Speaker: Frances Haugen - 2022 SXSW Conference and Festivals

Depois de denúncia, Frances Haugen participa em várias conferências e tem estado em contacto com governos a alertar para os riscos de redes sociais

Getty Images for SXSW

O que é que faz atualmente, além de dar entrevistas para promover este livro? Continua a acompanhar o que acontece na indústria da tecnologia?
Bem, o mundo muda muito devagar. E uma das coisas que definitivamente não antecipava há dois anos e meio é a lógica de ter de explicar as ideias novas repetidamente para se conseguir divulgá-las. Por exemplo, para explicar aos governos quais são as suas opções, é preciso educar muitas áreas diferentes de um governo. E às vezes é preciso ter muitas conversas semelhantes, muitas vezes até com as mesmas pessoas. Por agora, os dois pontos do mundo com os quais estou mais entusiasmada, porque acho que são os próximos a avançar na responsabilização online, são o Canadá e a Austrália.

O Canadá tem um novo projeto-lei de perigos online. Sou fellow em McGill [universidade em Montreal, onde ajuda o centro de investigação em temas como segurança online e privacidade] há cerca de um ano, porque acredito verdadeiramente no procedimento que estão promover. Fazem várias rondas de assembleias de cidadãos, incluindo com adolescentes, consultam painéis de especialistas — já fiz parte de um — e, portanto, estou a focar-lhe muita atenção para ajudar na aprovação desse projeto-lei. Vou ao Canadá dentro de duas semanas e vou ter uma série de reuniões em Otava para responder a questões.

Depois, a Austrália está atualmente a rever o seu projeto-lei de segurança online, que deverá estar terminado em outubro. Queria fazer mais e tenho trabalhado mais com a Austrália a alertar para estas questões e a consciencializar de que é possível resolver estes problemas e de que existem soluções. A questão é se os incentivos que existem que nos permitem atingir essas soluções motivam as empresas a usar as ferramentas. E esse processo tem sido lento. Estou esperançosa, mas o mundo só muda se o mudarmos.

Lei dos Serviços Digitais europeia “tem muito potencial”, mas é preciso mais

Em relação à União Europeia, onde já existe a Lei dos Serviços Digitais (DSA, na sigla da terminologia anglo-saxónica), considera que é suficiente?
Estou muito entusiasmada para ver como é implementada. É um bom projeto, tem muito potencial e acho que, basicamente, é o melhor entre a legislação que já foi aprovada. Há muitas pessoas que estão a ajudar no lado da implementação. Acredito realmente que o problema central das redes sociais é o de não ter havido pessoas suficientes sentadas à mesa quando as decisões foram tomadas, não foram ouvidas vozes suficientes. E, embora o DSA seja incrível para dar às pessoas da Europa substancialmente mais, como uma voz muito maior, ainda há muitas outras pessoas no mundo, também, e acho que vamos chegar à melhor forma que podemos alcançar de uma rede social se garantirmos que há pessoas suficientes na mesa além da Europa e dos EUA.

Na sua opinião o que será essa visão da melhor rede social possível?
Uma das coisas que gosto de relembrar sempre é que, quando pensam nas partes boas das redes sociais, é frequente falar sobre a Primavera Árabe ou de como eram as redes sociais quando começaram a usá-las. Ou talvez em 2010, uma altura em que não havia algoritmos no feed de notícias, não havia megagrupos a entupir [a rede social], ligávamo-nos a pessoas que conhecíamos e com as quais nos preocupamos. Acho que uma boa rede social é a de uma escala humana, não tem um feed infinito, porque não se recebe um conteúdo infinito, mas onde é possível descobrir novas comunidades.

Digo sempre que, a um nível mais simples, sabemos como ter conversas quando há dez pessoas numa sala, é o equivalente a um jantar em casa. Temos jantares desses há milhares de anos e ninguém diz que são esses jantares que estragam a democracia. Ou sabemos como ter conversas com algumas centenas, como numa igreja ou numa congregação — e ninguém diz que as igrejas estão a arruinar a democracia. Sabemos como ter conversas a um determinado nível com alguns milhares de pessoas ou algumas dezenas de milhares, algo como uma conferência ou uma universidade. Sabemos como ter comunidades a uma escala humana e as comunidades online a uma escala humana são incrivelmente poderosas e não têm de ser policiadas da maneira como tentamos policiar hoje as redes sociais. Permitem às pessoas ter uma voz maior na forma como estes sistemas são geridos e maior ligação às pessoas que conhecem. E há muitas conversas sobre as coisas que eram maravilhosas na internet, que estão lentamente a desaparecer. E muito disso acontece porque chegámos a uma escala, facilitada pelos algoritmos, em que não nos ligamos às mesmas pessoas várias vezes, já não há um sentimento de comunidade, há um feed. E acho que voltar à lógica da comunidade é algo realmente poderoso e provavelmente mais seguro para o mundo também.

Em relação ao livro, como é que foi a experiência de escrita? Foi algo agradável?
Achei um processo incrivelmente útil. Quando se escreve tem de se ser realmente conciso. Felizmente escrevo bastante rápido, por isso não foi um problema. Para algumas pessoas pode ser uma experiência realmente torturante, quase que têm de lutar para ter cada palavra nas páginas. Não tive essa experiência. Mas o que resultou deste processo é que me deparei uma série de questões que se tornaram muito mais claras quando tive de as explicar.

Uma das perguntas que tenho andado a matutar um pouco é: “se fosse escrever outro livro, sobre o que é que escreveria?” É algo que é super tentador para mim, embora esteja muito ocupada, mas que me forçaria a ser mais disciplinada. A próxima grande questão que me tem preocupado muito é que não é suficiente debatermos sobre se os miúdos não deviam ter smartphones até terem 14 anos. Isso não é suficiente. Precisamos de debater o facto de haver muitos miúdos para quem o ambiente social mudou nos últimos dez anos. Como é que garantimos que têm as mesmas oportunidades de se ligarem pessoalmente? Como é que garantimos que disponibilizamos formas de complementar as competências sociais para que se possa começar a reconstruir as comunidades para os nossos miúdos? Acho que não tenho respostas para essas questões, mas a parte engraçada de se escrever um livro é que é preciso sentares-te e começar a lutar com as ideias. Mas acho que, tendo em conta a utilidade que este livro teve para mim, imagino que fosse útil voltá-lo a fazer novamente.

Quanto tempo é que demorou o processo para ter este livro, alguns meses?
Demorou um pouco mais do que isso, porque andava muito em viagens. Se não fosse isso, se me tivesse sentado e escrito, acho que conseguiria [fazê-lo] em cerca de dois meses. Mas na altura estava a manter várias bolas no ar ao mesmo tempo, por isso demorou mais.

epa09545698 Facebook whistleblower Frances Haugen (C) leaves the Houses of Parliament in London, Britain 25 October 2021. Frances Haugen was giving evidence to members of the UK parliament on the Joint Committee on the draft Online Safety Bill.  EPA/FACUNDO ARRIZABALAGA

Frances Haugen foi ouvida, ainda em 2021, no parlamento britânico. Hoje em dia, relata o entusiasmo com os esforços do Canadá e da Austrália para regular as empresas de redes sociais

FACUNDO ARRIZABALAGA/EPA

“É realmente desolador ver todas as oportunidades que tiveram para proteger as crianças e escolheram não o fazer por questões de negócio”

Denunciou o Facebook em 2021. O que é que considera que evoluiu de forma positiva e que pontos é que não foram ainda suficientemente trabalhados?
Aconteceram algumas coisas. A Lei dos Serviços Digitais [DSA] é um excelente exemplo de uma mudança e estou agradecida que o mundo tenha ouvido, percebido a seriedade do que estava na informação [dos documentos] e agido. O DSA mudou as expectativas para os governos de todo o mundo sobre o que pode ser feito para exigir uma relação diferente com as redes sociais. A Europa também aprovou as suas primeiras leis para denunciantes, o que é um grande passo.

Numa altura em que passamos para uma economia que é gerida por inteligência artificial e por sistemas intangíveis, que não podemos facilmente inspecionar e que gerem mais e mais da nossa economia, os whistleblowers só se vão tornar cada vez mais importantes. Estou muito agradecida pela informação que divulguei ter ajudado a União Europeia a compreender a necessidade de proteger os denunciantes.

Ao mesmo tempo, os EUA que tem um governo com dificuldade em financiar-se, quanto mais aprovar leis. Progredimos menos nos EUA do que eu gostaria. Mas uma das coisas que me deixa super, super orgulhosa é os 44 estados que processaram a Meta por ter mentido sobre a segurança das crianças. A documentação desse processo refere um caso que começou com informação revelada por um denunciante em setembro/outubro de 2021 — dados que revelei através dos “Facebook Files”. É um bom exemplo de como os denunciantes são importantes quando estamos a falar de sistemas intangíveis, porque é importante haver alguém a espreitar por detrás da cortina e dizer “não estão a fazer as perguntas certas” e aqui estão provas suficientes para conseguirem descobrir algo, e terem as condições para pedir documentos sobre o funcionamento interno de uma empresa. Nunca tiveram as condições para conseguirem forçar o Facebook a divulgar o que sabe.

Facebook “pôs lucros astronómicos à frente das pessoas”. A audiência da denunciante no Congresso

E quando se analisa essas provas é realmente desolador ver todas as oportunidades que eles [Facebook] tiveram para proteger as crianças e escolheram não o fazer por questões de negócio. Por isso, o DSA, as leis de denunciantes, a documentação apresentada pelos procuradores-gerais nos EUA e o aviso do cirurgião-geral dos EUA, no ano passado [a autoridade de saúde norte-americana alertou para o “profundo risco de perigo” das redes sociais na saúde mental e bem-estar das crianças]… E agora outra questão é o projeto para desinvestimento do TikTok — fico muito irritada quando dizem que é uma proibição do TikTok, porque não estão a tentar proibir, estão a forçar uma venda.

"(...) Os EUA ainda tem um governo que tem dificuldade em financiar-se, quanto mais aprovar leis. Progredimos menos nos EUA do que eu gostaria."

TikTok: “Queremos ter uma eleição onde podem escolher que candidato é que tem maior distribuição na sua plataforma?”

Como vê essa questão do TikTok?
Quando, em 2021, revelei-me, as pessoas perguntavam-me sobre o TikTok e sempre disse que achava uma loucura de como um governo estrangeiro tinha tanta influência no nosso ambiente de informação. Tenho estado a acompanhar o que está a acontecer e o Congresso deve ter tido algum briefing [reunião] de segurança nacional horrível, porque, em geral, nunca conseguimos estar de acordo em nada neste país e, de alguma forma, conseguimos aprovar a obrigação de venda. Vamos ver como é que corre.

Mas isso já era um tema de conversa em 2020 e, quatro anos depois, o TikTok só se tornou ainda maior…
Sim, temos uma relação muito diferente com as redes sociais hoje em dia. Levamos isto a sério de uma forma que não acontecia em 2021. Não sei a quanto dessa mudança posso atribuir o crédito dos “Facebook Files”, mas o mundo é muito, muito diferente, do que era nessa altura.

TikTok sob ultimato: ou corta laços com a China ou será proibido nos EUA. O que vai acontecer?

Alguns políticos já fazem campanha no TikTok, que já se tornou uma máquina de campanha relevante. Como é que se pode atingir um equilíbrio em relação ao TikTok, se por um lado se quer limitar algo, mas também há políticos e governantes que usam essa rede social? 
Os políticos podem estar no TikTok. A questão do TikTok, para mim, é que sabemos, através de outros denunciantes, que o TikTok consegue escolher o que se torna viral. E, quando pensamos por um segundo numa vulnerabilidade de segurança nacional: por exemplo suponhamos que a China invade Taiwan… Acha que vamos ver qualquer conteúdo de apoio a Taiwan ou que vai ser impulsionado conteúdo a justificar as razões da China? Está a dar-se uma enorme quantidade de poder a outro governo. O TikTok adora dizer “mas o nosso CEO está em Singapura, é de Singapura, não é chinês”. E depois há informações de que não é ele que toma as decisões da empresa, que são as pessoas em Pequim.

Além das implicações na privacidade de ter uma empresa que tem de cumprir com informações solicitadas pelo governo chinês…. Queremos ter uma eleição onde podem escolher que candidato é que tem maior distribuição na sua plataforma? E, para deixar isto claro, temos um precedente nos EUA, já aconteceu com o Grindr, que é uma aplicação de encontros para a comunidade LGBTQ+, que também tiveram de vender. Nem toda a gente assume a sua sexualidade e, ao terem informação sobre as pessoas e dados que podem ser potencialmente usados para extorsão… É uma questão de segurança nacional. E não fecharam o Grindr, ainda hoje existe, mas tem uma estrutura de controlo diferente e encerrou-se a questão da vulnerabilidade de segurança nacional.

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"A questão do TikTok, para mim, é que sabemos através de outros denunciantes que o TikTok consegue escolher o que é que se torna viral"

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O alerta para os riscos da IA adversarial e o “precedente perigoso” aberto por Musk

Como é que vê os desenvolvimentos da IA generativa e todos os avisos que estão a ser feitos sobre a segurança das eleições? Há eleições na Europa, nos EUA… São conhecidos os problemas de desinformação nas big tech, a IA generativa é a etapa seguinte?
Se recuarmos a 2016, culpam-se os russos pela interferência nas eleições, mas na realidade houve uma influência muito maior das fábricas de desinformação da Macedónia. Havia muitas, mesmo muitas, a trabalhar no duro e a criar estratégias inovadoras. Depois da eleição [de 2016], o Facebook teve muitos problemas pelo nível de negligência.

A forma correta de lidar com temas como a IA generativa é fazer perguntas sobre “como e quem distribuiu isto?”. Por exemplo, se quiser interferir numa eleição divulgando uma gravação ou um vídeo realmente escandalosos, mesmo antes de uma eleição — como é que vou tentar disseminar essa informação? Há informação sobre a operação que foi usada e como foi feita essa divulgação? Ou foi feita de uma forma mais descentralizada? Como é que foi o processo? Quando olhamos para a desinformação, há que perceber que é mais perigosa quando é divulgada de uma forma coordenada. Quando olhamos para o surgimento de novas técnicas, vamos perder a capacidade para manter os sistemas seguros através de conteúdo a partir deste ano. E não é só a IA generativa, há algo chamado IA adversarial, que não é suficientemente falada, e que é um tema que me deixa estupefacta.

Porquê?
A IA adversarial é um pouco como a IA generativa, em que há um sistema de IA a fazer ligeiras mudanças em imagens. Quando um humano olha para um imagem, vemos a coisa de uma forma Gestalt [princípio da psicologia que dita que o todo é maior do que as partes]. Se mudar uns pixéis aqui e ali, não é possível perceber que as imagens são diferentes. Está a ver como há formatos diferentes de imagens, como JPEG ou PNG? As imagens não são idênticas em cada um desses formatos, mas os nossos cérebros olham e pensam “são a mesma coisa”. Com a IA adversarial, treina-se uma IA com base em informação que já foi retirada anteriormente e produz-se uma imagem que é muito semelhante para um humano, mas que tem um aspeto completamente diferente para uma IA. E já há cerca de dez anos de investigação nesta área, por isso é que não percebo como é que não há mais pessoas a falar sobre isto. Não é difícil enganar a IA e a razão pela qual isso importa é que, quando nos focamos em conteúdo em vez de nos focarmos no comportamento… É possível, de forma muito fácil, mudar o conteúdo para ser ligeiramente diferente e os sistemas de moderação de conteúdos de que o Facebook adora falar, para manter as pessoas seguras, não vão ser capazes de encontrar a diferença.

Então se um humano não consegue detetar essa manipulação, se um sistema de IA também não consegue, o que é que consegue?
Vamos imaginar um desses deepfakes. Podemos gerar uma série de versões muito semelhantes e que, mesmo que seja removido um elemento, os outros não são detetados. Então a alternativa passa a ser focar no comportamento. Isso significa compreender coisas como as contas estarem sempre a publicar nos mesmos locais ou publicam todas ao mesmo tempo? Falam dos mesmos temas ao mesmo tempo? Ou seja, sinais de comportamento. E à medida que se passa a ter IA que soa como um humano, a única coisa para apanhar maus agentes é o comportamento.

Está a monitorizar-se a forma como as pessoas escrevem: é como um humano? Ou estão só a copiar e a colar informação diretamente para uma caixa de texto? Fazem mais coisas além de publicar? Usam o chat, com que frequência? Todas estas coisas são muito mais difíceis do que falsear uma imagem ou é muito mais difícil contornar os sistemas de segurança quando são ajustados. O problema é desenvolver  ferramentas,Ç^ isso implica que haja humanos a trabalhar no tema.

A questão é que, sem ser o TikTok — ironicamente, porque têm medo de ser regulados — todas as empresas de redes sociais reduziram as suas equipas de segurança. É uma das questões em que Elon Musk realmente abriu um precedente perigoso ao reduzir as suas equipas de segurança na janela temporal antes de o DSA entrar em vigor. Não reduziu só as equipas de segurança, como também reduziu as ferramentas que permitem às pessoas perceber se há ou não problemas. E porque não houve consequências suficientes quando o fez, o Facebook também está a cortar as suas ferramentas de transparência. A CrowdTangle [plataforma de monitorização da Meta] vai ser encerrada dentro de alguns meses, acho que é em agosto. Mesmo a tempo das eleições dos EUA, vão encerrar a única ferramenta para monitorizar as eleições… que oportuno! Acho que estamos num ponto muito mais precário, muito mais frágeis do que estávamos em 2020 e antecipo que vão acontecer danos bastante sérios nestas plataformas. Vai ser uma repetição de 2017. As eleições descarrilaram em 2016 e toda a gente se sentou em 2017 a debater “como é que não voltamos a fazer isto?” E é frustrante porque estamos a ver o comboio descarrilar em vez de prevenir mais um desastre. Estamos a ver isso a acontecer em câmara lenta.

"Acho que estamos num ponto muito mais precário, muito mais frágeis do que estávamos em 2020 e antecipo que vão acontecer danos bastante sérios nestas plataformas."

Mas infelizmente é isto que os humanos fazem, não é? Quando se inventam as tecnologias, normalmente não intervimos para corrigir a rota antes de as consequências acontecerem. E infelizmente é esse o estado em que estamos agora. Este mês alguns grupos disseram numa carta aberta que queriam saber o que estas empresas estão a fazer em relação às eleições, tendo em conta declarações públicas e informação revelada por denunciantes.

E essa carta foi enviada para a Meta, Google…?
Foi enviada também para o TikTok, Discord, Snapchat, as principais empresas de redes sociais.

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Mark Zuckerberg pediu, em janeiro, desculpas às famílias de crianças e jovens que foram vítimas das redes sociais

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A “pena” de Zuckerberg e as críticas a Nick Clegg

Voltaria a trabalhar para uma grande tecnológica ou mesmo para a Meta?
Digo isto desde que saí e desde que me tornei uma denunciante: se pudesse, 100%, voltaria a trabalhar para o Facebook. Os produtos da Meta são a internet e são alguns milhares de milhões de pessoas em todo o mundo. Chegaram a locais muito frágeis, países africanos, no sudeste da Ásia e de uma forma muito intencional subsidiaram o uso dos seus produtos para se tornarem a internet. A Meta é tão importante nesses locais e vai ser tão importante para ver como é que o futuro se desenrola. Vamos ter outra Etiópia? 600 mil pessoas morreram na Etiópia devido ao conflito em Tigray [em 2023, a Amnistia Internacional acusou o algoritmo do Facebook de ter “alavancado a disseminação de retórica perigosa” durante o conflito]. Se temos ou não outro caso como o da Etiópia vai depender de tornarmos o Facebook seguro para pessoas que falam outros idiomas sem ser as principais 20 línguas do mundo. Por isso concordaria a 100% voltar à Meta se pudesse, porque temos de continuar a lutar para salvar a Meta. Na verdade, não temos outra opção.

Voltaria com algumas condições?
Acho engraçado, porque não acho que me voltassem a contratar, faria demasiadas perguntas. “Porque é que não estamos a fazer mais?” ou “podemos fazer isto”. Mas é uma daquelas coisas em que temos de ter boas pessoas nestas empresas, porque precisamos de pessoas que prestam atenção, precisamos de pessoas que têm os olhos abertos para explicar as coisas ao mundo. Não podemos desistir de resolver os problemas da Meta, porque vai continuar a estar aí num futuro próximo.

O Facebook faz 20 anos. Como um site de encontros para universitários se tornou no “império romano” das redes sociais

E acha que a empresa tem as tais pessoas boas? Tem Nick Clegg [presidente de temas globais da Meta e ex-político do Reino Unido] que tem muita experiência política, é um perfil muito específico, acha que isso tem impacto na forma como comunica publicamente?
Acho que o Nick Clegg é um caso especial, porque ele causa muitos danos. Mas, em defesa do Nick Clegg, costumo dizer que não odeio Mark Zuckerberg, mas que tenho pena dele e me preocupo com ele. Mas o Nick Clegg devia saber melhor, ele divulga mentiras e não o devia fazer, induz as pessoas em erro. Há uma série de coisas que o Nick Clegg faz e que devia saber que não se faz. Mas se se olhar para os documentos dos estados a processar a Meta pela influência em crianças, Nick Clegg enviou uma série de emails a Mark Zuckerberg que não devia sequer ter enviado. Quando se é uma grande empresa, há certos emails que não se escrevem — vai-se ao escritório da pessoa e fala-se pessoalmente, porque não se quer que aquele email acabe na primeira página do New York Times. E o Nick Clegg escreveu esses emails, uma boa parte do caso é que disse diretamente a Mark Zuckerberg “vamos dizer que estamos a fazer as seguintes coisas para proteger as crianças e não o estamos a fazer. São precisos mais funcionários, mais cientistas de dados, uma série de engenheiros, designers, para estarmos em conformidade com o que estamos a dizer ao público, mas não o estamos a fazer.”

Se estes processos forem capazes de gerar mudanças significativas para o Facebook, o Nick Clegg, e odeio dizer isto, terá desempenhado um pequeno papel em trazer alguma justiça ao mundo. Por isso, quem sabe, nunca é tarde para se ganhar uma consciência. É o meu pequeno pedaço de otimismo. Não sei se viu a audição judicial do Senado, em janeiro, essa foi muito poderosa, foi aquela em que o Zuckerberg testemunhou.

Aquela em que Mark Zuckerberg pediu desculpas às famílias de crianças e adolescentes.
Sim. O ponto que achei realmente significativo é que, quando eu testemunhei, fui ao Comité de Proteção do Consumidor, enquanto eles testemunharam perante o Comité Judicial. E uma boa parte do processo dos procuradores-gerais está ligado a mentir ao público e ao governo, mentir ao Congresso. Há uma série de afirmações que foram feitas no Congresso que acho que a documentação faz um excelente trabalho a demonstrar que não são verdade.

Coisas como dizerem que sempre que encontram alguém com menos de 13 anos essas contas são eliminadas. E em vários momentos há registos de milhões de contas de miúdos, só nos EUA, que já tinham sido sinalizadas por terem menos de 13 anos. Os pais tinham sinalizado ou alguém tinha reportado, seja o que for, mas estavam ali à espera da análise de um humano para analisar e eliminar a conta. Foi uma afirmação muito, muito explícita a enganar o Congresso. É fascinante ver como é que a maré está a mudar. E acho que, quando se olhar para 2025, talvez já no fim de 2024, vamos estar a olhar para um mundo diferente.

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