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Passaram dez anos desde que Mário Cesariny de Vasconcelos — poeta, pintor, surrealista “porque tinha de ser” — morreu. Entre os amigos mais chegados, a sua presença continua tão forte quanto antes. Como naqueles tempos passados em redor de uma mesa de café a falar de literatura, de política, de arte, de tudo. Sempre certeiro, Cesariny chegava e com uma palavra era capaz de mudar a temperatura de uma sala, sobretudo de pensar fora da caixa porque ele nunca soube o que era estar dentro dela.
Isso — essa ânsia de liberdade noutro Portugal — trouxe-lhe muitos problemas, mas também fez com que se tornasse autor de uma das obras mais importantes do modernismo português. E não só literário, mas também pictórico. Porque a poesia e a pintura andaram sempre de mãos dadas com Cesariny — faziam parte dele. E assim diz quem o conheceu.
Apesar de ser como “um desses astros mortos que continuam a iluminar a nossa noite”, como o descreveu José Manuel dos Santos (citando sem aspas Proust), o livros que escreveu desapareceram das prateleiras das livrarias. Será que esqueceram Mário Cesariny? Quem está ligado à publicação e divulgação das suas obras garante que não, que continua tão vivo como antes. Só que agora já não é ele quem procura — vão à procura dele. E ele, “escondido a um canto disfarçado de gato”, como especula Perfecto E. Cuadrado, observa tudo. Porque um homem como Mário Cesariny não morre — é uma “voz que ainda ecoa e que vai ecoar durante muito tempo”.
Welcome to Elsinore
Mário Cesariny de Vasconcelos nasceu a 9 de agosto de 1923 na Vila Edith, na Estrada da Damaia. Foi um nascimento inesperado. Os pais, de férias, não contavam que Mário, o mais novo de quatro irmãos (tinha duas irmãs mais velhas — Henriette, Carmo e Luísa), nascesse longe da casa da família em Lisboa. Mas assim foi. O pai, Viriato de Vasconcelos, era ourives (com uma oficina na Rua da Palma) e a mãe, María de las Mercedes Cesariny, parisiense (de ascendência espanhola) e professora de francês.
Dos tempos de infância, Mário Cesariny recordava sobretudo as férias de verão passadas junto à praia, na Póvoa de Varzim, com os quatro primos. Para ele, era o “paraíso”. As coisas em casa não eram fáceis. O casamento entre Viriato e María de las Mercedes não tinha sido feliz e as discussões eram recorrentes. A imagem que ficou para sempre gravada na cabeça de Cesariny foi a do pai, de um lado, “ameaçando tudo e mais alguma coisa”, e a mãe do outro, com os quatro filhos encolhidos atrás dela.
Depois do ensino básico, Cesariny frequentou o Liceu Gil Vicente. Não para seguir “carreira”, mas para o pai saber se “era estúpido ou não, se tinha boas notas”. Seguiu-se o curso de cinzelagem da Escola de Artes Decorativas António Arroio por influência do pai, que o queria ourives. Foi ali que conheceu Artur do Cruzeiro Seixas e Fernando José Francisco, surrealistas como ele. Frequentou ainda o curso Arquitetura na Escola Superior de Belas Artes de Lisboa, que abandonou ao fim de um ano.
Naquela altura, Cesariny não sabia o que queria — mas sabia o que não queria. Não queria ser ourives nem banqueiro, como o pai sonhava. Preferia as tertúlias dos cafés, que tinha então começado a frequentar com assiduidade. É que Mário Cesariny adorava cafés. Talvez por serem “o lugar que mais rua” tinha. “Cafés que resumiam o seu entendimento da vida”, como escreveu o amigo José Manuel dos Santos num artigo publicado no jornal Público em dezembro de 2006. “Café-manicómio, cafés-convés, café-asilo, café-escritório, café-quase salão e, pois claro!, café-de-engate.” Mas, apesar de ser viciado em cafés, nunca ninguém o viu pedir um para beber. “Pedia uma água mineral.”
“É-se surrealista porque se é surrealista!”
O que é o Surrealismo?
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De um modo geral, o Surrealismo rejeitava o consciente, preferindo o mundo dos sonhos e das ilusões. Segundo os princípios surrealistas, os artistas deviam procurar “extravasar as suas fantasias de forma livre”, encontrando “na profundeza da alma e do espírito a realidade objetiva”.
O movimento nasceu em Paris na década de 1920 e, mais “oficialmente”, em 1924 com a publicação do Manifest du Surréalisme, de André Breton. Aí, Breton, poeta e crítico, define-o da seguinte forma:
“Automatismo psíquico puro, pelo qual se pretende exprimir, verbalmente ou por escrito, ou de qualquer outra maneira o funcionamento real do pensamento.”
Mas o Surrealismo foi muito mais do que escrita (apesar de o poema ser a forma favorita dos surrealistas). Foi pintura, foi colagem e até fotografia. Pretendeu ser uma revolução artística que queria chegar à vida e mexer com ela.
O Surrealismo encontrou-se com Mário Cesariny “por volta de 1945 ou 1946”. “Eu e o [Alexandre] O’Neill descobrimos um livro que a censura das fronteiras deixou passar não sei bem porquê. Chamava-se História do Surrealismo, de Maurice Nadeau”, contou em 2004 ao Jornal de Letras.
“Abismados com o sopro de liberdade, de poesia”, Cesariny e O’Neill recusaram-se a acreditar nas palavras de Nadeau, que dava o Surrealismo morto e enterrado desde a Segunda Guerra Mundial. Não podia ser. Então, tomaram uma decisão — “tornámo-nos surrealistas” porque essa corrente artística “representava a realização total do nosso estado de espírito, a defesa do amor, da liberdade e da poesia”, como disse ao Expresso, numas das últimas entrevistas, repetindo a frase que foi também o seu lema de vida — “Amor, Liberdade, Poesia”.
Ao contrário de muitos, Cesariny não se tornou surrealista por querer ser surrealista — ele era surrealista. Apenas calhou que a sua forma de ser coincidisse com as diretrizes do movimento que — para si — era “a luta desesperada pelo amor, pela liberdade e pela poesia”. “Parece que é uma trindade que vem substituir a Liberdade, Igualdade, Fraternidade: Liberdade, Amor, Poesia – é viver isso. É um bocado complicado, não é?”, questionou em entrevista ao desaparecido Mil Folhas, o suplemento literário do Público, em 2002.
Parece complicado, mas para Cesariny não era. Era fácil. E foi por isso que em 1947 enganou o pai dizendo-lhe que ia para Paris para arranjar emprego. “Mas não havia emprego nenhum, estive lá a contactar os surrealistas”, revelou ao Jornal de Letras. Foi durante essa viagem que André Breton, líder do movimento surrealista e autor do Manifest du Surréalisme (1924), entrou na sua vida. Visitou-o em sua casa e conversou com ele num café. No ar ficou a ideia de criar uma “pequena revista surrealista”, mas apenas o Grupo Surrealista de Lisboa andaria para a frente.
Esse nasceu nesse mesmo ano, em 1947, formado em parte por antigos alunos da António Arroio que desde meados dos anos 40 se encontravam em cafés (sobretudo no Hermínus) para falar de arte e literatura. Além de Cesariny, integravam-no António Pedro (um dos primeiros a dedicar-se à divulgação do Surrealismo em Portugal), Alexandre O’Neill, José-Augusto França, Cândido Costa Pinto, Marcelino Vespeira e João Moniz Pereira. Mas o grupo nunca chegou a afirmar-se de forma coesa e depressa surgiram as primeiras discussões. O que era o Surrealismo, afinal? Cada um parecia ter o seu. Descontente, Cesariny acabou por abandonar o grupo no ano seguinte, em agosto, formando o Grupo Surrealista Dissidente. Ou simplesmente, “Os Surrealistas”.
Dizem os livros de história que o movimento morreu passado pouco tempo, depois da exposição do Grupo Surrealista, em 49, e de algumas ações isoladas dos Surrealistas. Até pode ser verdade, mas o Surrealismo não morreu ali — continuou vivo dentro daqueles que o fizeram. Continuou vivo em Mário Cesariny.
Cesariny escrevia, pintava e desenhava com regularidade desde os 19 anos. Exatamente por essa ordem, porque a poesia veio primeiro e só depois chegou a pintura, que acabaria por engolir tudo. Publicou o primeiro livro, Corpo Visível, em 1950, um ano depois de ter formado “Os Surrealistas”. O seu editor era Luiz Pacheco, o libertino, com quem acabaria por se desentender. Seguiram-se outros, muitos outros, a maioria publicada antes do 25 de Abril — Discurso sobre a Reabilitação do Real Quotidiano (1952), Louvor e Simplificação de Álvaro de Campos (1953), Manual de Prestidigitação (1956) e um dos melhores, Pena Capital (1957), entre outros. Livros escritos à mesa dos cafés de que gostava tanto.
Liberto, como um gato
Durante toda a sua vida, Cesariny gabou-se de nunca ter escrito uma linha em casa. Sabia de cor todos os poemas, que ia construido dentro da sua cabeça enquanto cruzava as ruas lisboetas e que só depois passava para o papel. Era o que costumava dizer a José Manuel dos Santos, um dos seus amigos mais próximos.
Foi antes do 25 de Abril que os dois se conheceram, por intermédio de José Belchior Viegas, empresário de Amália Rodrigues. A amizade foi-se estreitando, e José tornou-se num dos amigos mais próximos do poeta-pintor. “Fui amigo dele durante 30 e não sei quantos anos”, admitiu o atual diretor artístico da Fundação EDP ao Observador, e a ternura na voz sentia-se do outro lado do telefone. “As memórias são tantas… Encontrei-me com ele todas as noites durante uns 18, 20 anos.”
Quando havia o hábito de as pessoas irem ao café depois de jantar, José encontrava-se com Cesariny e conversavam. Sobre quê? “Sobre tudo. Sobre o que ele estava a fazer, sobre a política. Sempre com uma graça! Ele tinha um sentimento trágico-cómico da vida.” Mas, ao mesmo tempo, havia uma certa “gravidade” na forma como encarava o dia-a-dia, até “pela sua biografia e por tudo o que se tinha passado com ele”.
“Houve um filósofo que disse que a ética é estarmos à altura do que nos acontece. Acho que ele esteve sempre à altura, e às vezes isso exigiu um esforço terrível da parte dele. Ele escrevia à [Maria Helena] Vieira [da Silva] a dizer que ‘o ar aqui acabou, preciso de ir aí, a Paris, para respirar’. Depois, ela mandava-lhe um guache e ele vendia para conseguir estar com ela. Porque às vezes a situação aqui tornava-se asfixiante para ele. Mas, ao mesmo tempo, isso levava-o a perceber o que é que havia de cómico na maior parte das situações.”
Quem o conhecia, como José Manuel dos Santos, gaba-lhe a originalidade. Acima de tudo. “O Cesariny tinha uma originalidade e uma capacidade de criar tão grande… Nunca o ouvi dizer um lugar-comum. Sobre política, sobre um debate, sobre um filme. Fosse do que fosse. Havia sempre um ponto de vista nele que era inteligente e original. Agora, toda a gente diz que é preciso pensar fora da caixa, sendo que isso é um bocado difícil quando está dentro dela. Ele estava verdadeiramente fora da caixa.”
Apesar do carácter transgressor dos seus poemas, Cesariny nunca chegou a ver os seus livros apreendidos pela censura. Tinha sorte. “Apesar de tudo, tínhamos uma vantagem, porque os pequenos livros de poesia que eu fazia, assim como outros, tinham de ir à censura”, contou ao Jornal de Letras. “Ao contrário das obras mais caras, com muitas páginas, que os editores não arriscavam a publicar sem passar pela censura.”
Os livros podiam passar despercebidos mas Mário, o homem, não passava. Antes do fim da ditadura, esteve detido em várias ocasiões por suspeitas de vagabundagem, “um termo que se aplicava a pessoas assim um bocado esquisitas” — os anarquistas, videntes, blasfemos e revoltosos, de que Cesariny gostava. E homossexuais, como ele. Apesar de ter sido “muito chateado” pela polícia, o poeta-pintor voltava sempre à vida de antes — aos hábitos desobedientes e livres que não escondia de ninguém. Como um gato, Mário Cesariny gostava da liberdade da rua. Acima de qualquer outra coisa.
Apesar da perseguição de que foi alvo, o artista nunca se considerou “um mártir” ou “um herói da luta anti-fascista”. Até porque passar os dias na cadeia nunca foi uma ambição — Cesariny acreditava noutro tipo de luta, na luta de guerrilha. “Havia uma glória em Portugal, que era ser mártir, ser preso e ser torturado pelo regime. Nós não achávamos que isso fosse uma coisa interessante”, admitiu em entrevista ao Mil Folhas. “As nossas intervenções eram um bocado aparecer, dizer, sair logo e aparecer noutro lado: uma guerrilha. Como não podíamos fazer uma revolução — e não fizemos, claro –, a nossa revolução foi uma espécie de implosão, foi cá dentro que explodiu. Para fora não podia sair, que a censura não deixava, foi por dentro.”
As cinzas da poesia que já não deixavam voar, voar
A partir dos anos 60, Mário Cesariny começou a desenvolver a sua faceta de ensaísta, publicando textos sobre a teoria e prática do Surrealismo (alguns deles reunidos em As Mãos na Água a Cabeça no Mar). Em 1964, editou ainda a sua única peça de teatro, Um Auto para Jerusalém, pastice de um conto de Luiz Pacheco. Colaborou com o Jornal de Letras e Artes e para os Cadernos do Meio-Dia. Nos anos 80, quando a sua obra poética foi reeditada por Manuel Hermínio Monteiro na Assírio & Alvim, ganhou uma nova geração de leitores.
Contudo, a atenção que Cesariny dava à escrita era cada vez menor. A pouco e pouco, foi deixando de escrever. Dizia que a musa lhe tinha postos os cornos. Nas últimas entrevistas que deu, foram muitos os jornalistas que lhe perguntaram por que razão tinha pousado de vez a caneta.
“Não foi uma escolha, aconteceu assim”, afirmou ao Jornal de Letras. “Ainda me lembro das tardes e noites sozinho pela Avenida da Liberdade, a dizer versos. E escrever era como voar, voar, voar. Para uma interpretação simpática e pretensiosa, pode dizer-se que o fogo era tal… Que me consumiu. Ficaram só as cinzas, e com as cinzas não se faz poesia. Não sou capaz de escrever sem a tal luzinha que vem, nos salva e faz voar. E com a pintura está a passar-se o mesmo.”
“Perguntei-lhe muitas vezes porque é que ele deixou de escrever poesia tão cedo”, contou Perfecto E. Cuadrado, especialista em Surrealismo português e amigo de Cesariny, ao Observador. “Além da brincadeira da ‘musa que me pôs os cornos’, existiam duas razões fundamentais — quase com um ar trágico, dizia-me: ‘cansei-me de evocar o santo. Como o santo não aparecia, deixei de o evocar’. Queria reabilitar a sociedade através da poesia e a sociedade não mudava. Ele dizia-me: ‘não te esqueças, Perfecto, a realidade como queremos existe mas a puta da realidade existe, existe, existe’. Essa era uma das razões. A outra é que as palavras são candeias, e as palavras deixam-te encadeado. Chegou a um ponto em que essa pressão das palavras era insuportável.”
Sem poesia, dedicou-se por inteiro à pintura. Até porque, como ele próprio afirmou, se não pintasse “rebentava”. Ao Jornal de Letras, explicou que “tinha de fazer qualquer coisa” e que então tinha passado a “pintar mais”. “Os benevolentes diziam que era porque a pintura dava dinheiro e a poesia não. É mentira, não é por isso. Não há dinheiro que se compare ao prazer de sentir os raios virem animar-te.”
Mário Cesariny pintou até ao fim. “O sítio onde vivia era cada vez mais o seu ateliê”, contou Manuel Rosa, seu editor. “Trabalhava e vivia no mesmo sítio. A casa era uma instalação permanente e em permanente mudança. Chegavam amigos, levavam-lhe coisas, saía à rua e encontrava coisas na rua que recuperava. Coisas perdidas a que ele dava um novo destino e colava nas paredes.”
José Manuel dos Santos garante que o amigo não perdeu a inspiração, o problema não era esse. “Obviamente que tinha talento para continuar a picar o ponto e, de dois em dois anos, sair um livrinho. Mas ele achava que não era digno da poesia fazer isso apenas por esses motivos”, explicou ao Observador. “Quando precisava de dizer que amava alguém e que esse alguém não o amava a ele, quando andava atrás desse alguém e o perdia e entrava essa pessoa o tempo todo — era para isso que lhe servia.”
O pintor que era poeta e o poeta que era pintor
Para falar da obra pictórica de Mário Cesariny, é preciso falar de muitas coisas que nem sempre encaixam no que normalmente se chama de pintura. Carlos Cabral Nunes, da Casa da Liberdade — Mário Cesariny, considera mesmo que falar de pintura no caso de Cesariny não é o mais correto. “Temos de falar de poemas-objeto”, afirmou ao Observador. Isto porque a sua obra pictórica é composta essencialmente por colagem, poemas-objeto. Porque tudo nele estava interligado. Cesariny partia muitas vezes de poemas para criar quadros, e de um quadro para criar um poema — era como um círculo.
Reconhecido desde sempre como um grande poeta, Mário Cesariny nem sempre recebeu o reconhecimento que merecia enquanto artista plástico. Para José Manuel dos Santos, uma das razões é a “zanga muito grande” que teve com o primeiro grupo surrealista. “Foram algumas daquelas pessoas que definiram o cânone artístico. Essa zanga teve uma espécie de consequência no Cesariny enquanto artista”, disse ao Observador.
Manuel Rosa, editor de Mário Cesariny, considera que isso aconteceu porque o poeta nunca teve a preocupação de fazer carreira enquanto pintor. “Durante anos nem sequer tinha registo fotográfico das pinturas”, contou. “Quando recebeu o Grande Prémio da EDP e fizeram a exposição [retrospetiva] no Museu da Cidade, ele ficou num entusiasmo enorme porque viu obras que não via há anos. Não tinha registo delas e estavam dispersas. Os mais novos só conheciam as obras mais recentes, dos anos 70, que tinham ficado registadas nos catálogos das galerias. O Cesariny era conhecido apenas como poeta, mas como artista plástico tem uma posição notável no panorama português.”
Foi quando o Museu da Cidade de Lisboa organizou essa exposição retrospetiva que muitos sentiram que a justiça tinha sido finalmente reposta. Depois de ter sido, durante muito tempo, secundarizado e menosprezado, “veio-se a ver com essa exposição que ele era também um grande pintor”. Que a sua obra pictórica era “tão extraordinária quanto a obra poética”. “Isso tem a ver com a personalidade artística” de Mário Cesariny, considerou o diretor artístico da Fundação EDP. “Não é um grande desenhador — não desenha à maneira de Rafael –, mas a pintura do final dos anos 40 e início dos anos 50 é de um enorme pioneirismo em Portugal. Tem uma originalidade que é surrealista mas sem ter os clichés da escola surrealista.”
Para José Manuel dos Santos, o grande feito de Cesariny era esse — “era ele próprio”. “Era surrealista porque coincidia. Ele quando precisava de se afastar, afastava-se. Quando precisava de criticar, criticava. Tomou o partido pelo [Antonin] Artaud porque achou que ele não tinha sido bem tratado. Houve sempre um olhar livre e uma coincidência que o levou a defender até ao fim os grandes princípios inspiradores e ideais do movimento surrealista expressos nos manifestos e nas práticas artistas e poéticas. Aquela ideia da trilogia continuou a ser sua até ao fim.”
Talvez tenha sido por essa liberdade artística que Mário Cesariny “influenciou uma série de gente”, como considera Carlos Cabral Nunes. “Ainda hoje. No outro dia, estive numa exposição de um autor que, aparentemente, está nos antípodas de Cesariny — mais virado para o conceito, mais desvinculado de movimentos artísticos. Apresentaram-mo e ele fez-me ali uma declaração de amor impressionante ao Cesariny e à obra dele. Fiquei espantado, não estava a associar. Não é que a obra dele estivesse relacionada, mas era a admiração. Podemos admirar coisas que não se relacionam com o nosso fazer artístico. E isso é bastante significativo.”
Para o curador da Casa da Liberdade, Cesariny-pintor é “transversal porque toca numa série de áreas para criar uma linguagem própria”. “Tanto na pintura como na escultura — chamemos-lhe assim –, na poesia, ele antecipou muitas das coisas que hoje conhecemos, apreciamos. Isso é um facto. Ele fez um tipo de pintura que à época, e do ponto de vista internacional, praticamente ninguém estava a fazer.” E isso foi uma “preocupação que ele manteve até ao fim da vida foi a de fazer algo único, algo em nome próprio que as pessoas pudessem identificar como sendo dele”.
“O desígnio dele era a construção de uma obra própria, com uma voz própria. E penso que ele conseguiu isso plenamente. Acho que qualquer pessoa o reconhece. Quando digo qualquer pessoa, digo qualquer pessoa com informação.” E Mário Cesariny parecia ter noção disso, de que “tinha construído algo único”.
“Ele dizia isso, mas ele achava que o tecto estava muito baixo, e como o texto estava muito baixo, a obra dele estava muito alta em comparação. Noutras épocas, em que o tecto estava mais alto, a obra dele não estaria tão alta.” E chegou a dizê-lo em entrevistas. Ao Jornal de Letras, admitiu que era “um grande poeta”, como lhe costumavam dizer, mas “numa época em que o texto está baixinho”. Mas Carlos Cabral Nunes não acha que seja bem assim.
“Cada época tem os seus paradigmas, claro. Mas se uma pessoa pensar no contexto da homossexualidade, por exemplo, ele foi para fora e quis voltar. Não quis ficar em Paris, quis voltar a Portugal. E isso é de uma coragem e de uma sensibilidade muito grandes.”
A Santa Liberdade
É dos últimos anos de vida que datam a grande parte das entrevistas que Mário Cesariny deu. Alheio às luzes da ribalta, Cesariny parece ter aceitado de bom grado a atenção que lhe foi dada nos últimos dias. Em 2004, Miguel Gonçalves Mendes realizou o documentário Autografia, onde o poeta-pintor se expôs totalmente, na mesma altura em que o Museu da Cidade de Lisboa exibiu uma retrospetiva da sua obra.
Foi em 2004 que morreu a irmã Henriette, com quem partilhou casa durante longos anos. “Amávamo-nos muito. Quando lhe morreu o marido, voltou para casa dos pais. O nosso pai, entretanto, tinha ido para o Brasil com uma amante. Eu e a Henriette vivemos muito tempo juntos, numa verdadeira irmandade”, chegou a contar. A irmã foi cremada, e Cesariny sempre disse que não queria isso para si — queria um jazigo no qual pudesse repousar.
Depois de ter recebido em 2002 o Grande Prémio EDP de Artes Plásticas, o poeta e pintor foi agraciado em 2005 com a Grã-Cruz da Ordem da Liberdade, a mais alta condecoração oficial do Estado português. Nessa altura, Mário Cesariny já estava muito doente. Anos antes, tinha sido diagnosticado com um cancro da próstata que o tinha debilitado muito. A condecoração foi, por isso, feita em sua casa pelo próprio Presidente da República, Jorge Sampaio. José Manuel dos Santos estava lá e lembra-se bem dessa noite.
“Só o consegui convencer a receber a Ordem por ser a Ordem da Liberdade”, admitiu ao Observador. “Quando fui a casa dele com o Sampaio, ele já estava doente. Quando recebeu a medalha, deu um grito: ‘Santa Liberdade!’.” No mesmo ano, o surrealista recebeu ainda o Prémio Vida Literária da Associação Portuguesa de Escritores “pelo seu percurso literário e pelo fulgor e percurso artístico que tem demonstrado até hoje”.
Mário Cesariny de Vasconcelos morreu menos de um ano depois, a 26 de novembro de 2006. A morte foi serena, mas a história que se seguiu esteve longe de o ser. Ao contrário do seu desejo, foi sepultado num gavetão do Talhão dos Artistas do Cemitério dos Prazeres, em Lisboa. Uma medida que deveria ser provisória mas que acabou por se arrastar durante dez anos.
Quando Cesariny morreu, a sua herança foi distribuída por vários herdeiros. Como não tinha descendentes, o surrealista decidiu deixar todos os seus bens a diferentes pessoas e instituições: a Manuel Rosa, seu editor, deixou os direitos de autor da sua obra literária e tornou-o seu testamenteiro; ao sobrinho, Manuel Mourão, deixou o andar na Costa da Caparica, e à Fundação Cupertino de Miranda, em Vila Nova de Famalicão, “todo o recheio artístico e literário da sua autoria ou não” que se encontrava nas casas de Lisboa e Caparica. A fundação foi ainda nomeada herdeira universal do “remanescente da sua herança”
À Casa Pia de Lisboa coube “todas as quantias” que se encontravam depositadas em “instituições bancárias”. Por esse motivo, a instituição prontificou-se a realizar o último desejo do poeta-pintor e a comprar um jazigo onde pudesse ser sepultado. Mas, ao contrário do esperado, desentendimentos vários fizeram com que a situação se arrastasse durante dez anos e Mário Cesariny permanecesse sepultado num gavetão anónimo.
Na altura em que se assinala o décimo aniversário da sua morte, a questão parece estar finalmente resolvida. O artista vai ser finalmente trasladado no dia 8 de dezembro para a sua morada final onde moram dezenas de gatos, que ele sempre admirou. “Vai ser uma grande festa”, admitiu Perfecto Cuadrado, que espera conseguir viajar até Lisboa para assistir à cerimónia. “Talvez Cesariny também esteja lá, disfarçado de gato malhado, a observar tudo.”
Em 2017, chega a primeira edição crítica
Durante dez anos, Cesariny permaneceu anónimo num gavetão do Cemitério dos Prazeres. E durante esse tempo, parecem ter-se esquecido dele. Que ele estava ali. Os seus livros de poesia são difíceis de encontrar nas livrarias e da sua pintura ninguém fala. Será que esqueceram Mário Cesariny?
Contrariamente ao que se possa pensar, José Manuel dos Santos garante que existe “um grande interesse pela obra dele da parte das pessoas mais novas que são poetas ou que têm um gosto por poesia”. Só que, nos dias que correm, “a poesia começou a ser uma coisa de seita, uma coisa esotérica”. Na altura de Cesariny, era diferente — as pessoas conheciam os seus poetas, mesmo que não os tivessem lido. “O nome tinha uma ressonância pública. Quando o Eugénio de Andrade dizia alguma coisa, ouvia-se. Quando o Cesariny dizia alguma coisa, ouvia-se. E agora, você não consegue ir aí à rua e encontrar alguém que lhe diga um nome de um poeta com menos de 40 anos. O Herberto [Hélder] foi o último que teve essa aura.”
Para o diretor artístico da Fundação EDP, a explicação está no facto de a poesia já não ter a procura que tinha antes. “A literatura foi-se tornando numa espécie de ficção, no romance realista. É isso que as pessoas que dizem que leem procuram. Revistas de poesia existem duas ou três e ninguém quer saber disso para nada. O Cesariny tem uma aura porque morreu com ela.”
Manuel Rosa parece ter mais ou menos a mesma opinião. “É cada vez mais presente, ao contrário do que possa parecer supostamente devido a uma aparente ausência nas livrarias”, afirmou, chamando a atenção para o facto de se verem cada vez menos livros de poesia nas livrarias. “Há um interesse muito manifesto de gente nova, de pessoas de todas as gerações. Percebemos pela forma como a obra do Cesariny é referida por criadores de áreas muito diversas. Há cada vez mais pessoas a dirigirem-se, por exemplo, à Sociedade Portuguesa de Autores porque querem utilizar uma frase, um poema. Ainda agora houve uma peça de teatro [O Jovem Mágico, que estava no Teatro do Bairro]. Há canções que se fazem à volta dos poemas dele e todos os anos se tem publicado um livro novo de correspondência, que é notável. Não há um ponto baixo independentemente a quem se dirige.”
Nos últimos anos, a Documenta tem-se dedicado a editar a correspondência de Mário Cesariny. O primeiro conjunto de cartas, Cartas para a Casa Pascoaes, saiu em 2012. Desde então, já foram publicados pela Documenta Cartas de Mário Cesariny para Cruzeiro Seixas (2014), Um Sol Esplandecente nas Coisas: Cartas de Mário Cesariny para Alberto Lacerda (2015) e pela Fundação Cupertino de Miranda um conjunto de missivas trocadas com Maria Helena Vieira da Silva. Para o ano, está prevista a publicação de um novo volume contendo as cartas a Frida e Laurens Vancrevel, um editor holandês, mais novo, com quem Cesariny se correspondeu durante longos anos.
Apesar do interesse literário da correspondência, esta passou praticamente despercebida. “Não houve uma nota crítica sobre isso. Passou tudo despercebido, de algum modo”, revelou Manuel Rosa. “Ele achava que em Portugal nunca se dava por aquilo que valia a pena e esta correspondência suscitou pouca importância”, afirmou por sua vez José Manuel dos Santos (que prefaciou o conjunto de cartas enviadas a Vieira da Silva), salientando o interesse dos manuscritos.
“Há poetas cujas cartas têm palavras diferentes. No caso do Cesariny, essas cartas têm uma violência que é justa e, ao mesmo tempo, uma indignação quando é preciso, graça e originalidade. Aliás, o Cesariny não fazia distinção entre géneros, entre vida e literatura. Ele detestava a chamada ‘literatura literária’ ou ‘arte artística’ porque achava que os grandes princípios eram Poesia, Amor e Liberdade, que eram uma atualização melhorada da Fraternidade, Igualdade, Fraternidade. Ele achava que a poesia servia para mudar a vida e o mundo.”
Além da obra estar mais presente, Rosa acredita que a poesia de Mário Cesariny tem tido uma influência “muito notável nos poetas mais novos”. “E esse é também um ponto de interesse. Em termos editoriais, a obra de Cesariny tem estado sempre publicada” e, por isso, acessível. Durante o próximo ano, numa iniciativa que pretende assinalar os dez anos da morte do poeta-pintos, a Assírio & Alvim vai também reeditar alguns dos títulos esgotados. De acordo com Manuel Rosa, Manual de Prestidigitação e a tradução de Iluminações / Uma Cerveja no Inferno, de Rimbaud, estarão cá fora a partir de março. Se tudo correr como planeado.
Está também programado a reedição de Primavera Autónoma das Estradas e a publicação do primeiro volume da edição crítica, que reunirá toda a poesia, organizada por Perfecto E. Cuadrado. “Ele não queria ter a poesia reunida num só volume, mas não se importava que mais tarde organizassem as coisas como quisessem”, disse Manuel Rosa. “Sentimos que deve haver as duas edições simultâneas — uma como ele queria, revista como da última vez que foram publicados, e a poesia reunida [com os poemas que ele escolheu que ficassem de fora] e tratada por alguém que conhece a obra.”
Um Surrealismo que continua a brilhar na caverna mais escura
Perfecto E. Cuadrado não tem dúvidas quando diz que “Mário Cesariny é um dos grandes vultos da cultura portuguesa e não só”. “Em círculos concêntricos, podemos dizer que é a figura central do Surrealismo, que significa da Vanguarda, da Modernidade. Em termos de presença, a influência e importância, temos de situar Mário Cesariny como uma pedrada no charco.”
“Tanto na plástica como na poesia, foi um autor absolutamente moderno, que experimentava constantemente. Insatisfeito com o seu tempo e com a literatura e arte que se faziam, teve sempre uma consciência clara de que o que fazia era um ato de múltipla intervenção sobre a realidade artística e literária, sobre a realidade política e social.” Mas sempre com o seu cunho pessoal. “Por um lado, temos o poeta lírico, mas também o poeta plástico e autor de alguns manifestos pessoais, textos de intervenção extraordinários de uma grande lucidez e de herança bretoniana”, frisou o professor e tradutor espanhol.
“É preciso nao esquecer se o Cesariny não fosse surrealista continuava a ser um grande poeta”, frisou José Manuel dos Santos. “Ao contrário de outros — que têm a importância que têm e que participaram no movimento –, percebe-se que no Cesariny há uma voz tão pessoal e tão forte que essa voz existiria independenteme de ele ter sido ou não surrealista.”
Para José Manuel dos Santos, Cesariny representa uma das “grandes ruturas na linguagem”. A primeira tinha sido Orpheu, a segunda Mário Cesariny. “Há uma criação de uma nova linguagem, em parte pela originalidade das imagens. ‘Noite como um prego a noite louca / a noite com árvores na boca’ — ninguém tinha dito isso antes do Cesariny”, afirmou, salientado que dos surrealistas “Cesariny é claramente o líder”. “Os próprios surrealistas diziam isso. O Cruzeiro Seixas diz isso. Ele tinha uma coisa que é muito rara na literatura portuguesa, na poesia — a voz da rua.”
Era o seu amor pela rua que fazia com que lançasse algumas críticas aos mais “puritanos”. Criticava Pessoa por se refugiar na poesia e fugir da vida e achava que Camões tinha engravatado a língua. Sempre irónico, escreveu O Virgem Negra e poemas à maneira dos neo-realistas. “‘A velha que vende bananas / O velho roxo de calor / O rapaz que grita bananas / Dêem-me um pouco de amor’ — é como se a rua tivesse sido trazida para o poema, mas de uma maneira brusca. Acho que isto é uma grande novidade no discurso poético”, afirmou o diretor artístico da Fundação EDP, frisando que “depois do Orpheu, são os surrealistas” os que fizeram uma rotura mais profunda.
Mas, apesar da ânsia de intervir sobre a realidade, Cesariny tinha, à semelhança de outros surrealistas, a consciência de que o Surrealismo tinha fracassado. Um dos motivos foi o de que a revolução que o Surrealismo devia iniciar, nunca aconteceu — a palavra, que devia mudar o mundo, nunca o fez. “Esse é o grande problema que Mário explora em ‘You’re Welcome to Elsinore’, [um poema] em que ele fala da distância que existe entre o que queremos dizer e o facto de as palavras não chegarem para o dizer. Esta consciência da insuficiência do verbo foi uma das razões pela qual os surrealistas sentiram um certo fracasso.”
Para Perfecto Cuadrado, “You’re Welcome to Elsinore”, poema que faz parte do livro Pena Capital, é um dos grandes poemas da modernidade juntamente com “Adeus Português” de Alexandre O’Neill. É que “a Lisboa e o Portugual de Salazar, dos finais 40 e 50, não era o país de Nadja, do romance de André Brerton”. “Não era uma cidade onde podias sair à procura do ‘obscuro objeto do dizer’. Lisboa, esse Elsinore, esse castelo do Hamlet. Elsinore onde a traição, a morte, o crime, todas as misérias do homem estão presentes.”
Apesar dos fracassos, da Elsinore das misérias humanas, Mário Cesariny continuou surrealista até ao fim. Transgressor até ao fim. “Foi um dos poucos homens livres que conheci”, admitiu Perfecto. “Viveu a liberdade criada pelos caminhos que conduzem à consumação absoluta do amor, do desejo, da poesia, da beleza, etc. Todo este sonho. Se calhar ainda anda por aí, no seu barco de espelhos, à procura do absoluto, desse lugar ‘cantante’, como ele dizia, onde nascem todas as nascentes, onde encontramos o nosso verdadeiro nome.”
Num tempo marcado pelo “totalitarismo, a mediocridade intelectual, a miséria do medo”, o Surrealismo de Mário Cesariny continua a fazer todo o sentido. “O Mário continua aí, como uma luz. Não só como aquele que procurou a luz mas também como aquele que prometeu voltar para nos trazer a luz”, garante Perfecto Cuadrado, e os ideais de “amor, de liberdade e poesia” continuam a ser importantes para combater a escuridão dos dias. “O Surrealismo permanece uma das vozes mais importantes e Mário Cesariny a voz que ainda ecoa e que vai ecoar durante muito tempo.”
E é à noite, nos cafés, que a sua voz ecoa mais forte. “É raro o dia em que eu esteja com amigos que eram amigos dele e não se fale dele e não se ria como se ele tivesse acabado de deixar a mesa do café. Quando estamos juntos, ele está verdadeiramente sentado connosco à mesa”, admitiu José Manuel dos Santos. É como se estes dez anos não tivessem passado. “Continuo a achar que sou visitado pelas palavras dele.”