Sob o olhar atento de um retrato de José Eduardo dos Santos, Carla Dias Santos tornou-se empresária em Angola. Era 16 de julho de 2014 e concretizava então algo que já desejava e planeava há algum tempo: expandir o seu negócio de clínicas e lojas oftalmológicas para o El Dorado angolano. Isso e outra coisa: estar ombro a ombro com a elite angolana.
Olhando para aquela sala, rapidamente se perceberia que esse segundo objetivo também tinha sido amplamente atingido. Afinal, a cerimónia acabava de ser dirigida pela presidente da Agência Nacional do Investimento Privado (ANIP), Maria Luísa Abrantes, mais conhecida por ser a segunda mulher de José Eduardo dos Santos e mãe de dois dos seus filhos. Além dela, também estava presente a sócia com quem Carla Dias Santos acabava de abrir negócio.
Tratava-se de N’Vula Van-Dúnem Camacho, jovem empresária angolana. Filha de gente com poder e bem colocada tendo em conta o negócio que ali começava: a mãe é Sílvia Van-Dúnem, à altura diretora do serviço de oftalmologia do maior hospital do país; o pai é José Vieira Dias Van-Dúnem, membro do Comité Central do MPLA desde 2003 e, mais importante ainda, ministro da Saúde na altura.
Naquela sala escura, com as paredes forradas a madeira e com uma bandeira portuguesa e outra angolana a adornarem a mesa, as três mulheres desfaziam-se em sorrisos enquanto cada uma segurava uma capa com o contrato de investimento acordado entre as empresárias e a ANIP. Nele, podia ler-se um número chorudo: 2 137 420 dólares, então equivalente a quase 1,6 milhões de euros, de investimento total. E, não muito longe, podia ler-se o nome da empresa que ali começava: VDDS. Isto é, a junção das iniciais Van-Dúnem e Dias Santos.
Na altura, a sigla era para Carla Dias Santos um sinal de prosperidade anunciada num país com um crescimento (aparentemente) imparável. Hoje, aquelas quatro letras são a sua maior dor de cabeça. A empresária portuguesa queixa-se de ter perdido mais de 800 mil euros e acusa a sócia angolana de lhe ter “roubado” o negócio. As acusações que faz a N’Vula Van-Dúnem não são leves — começam no desrespeito dos estatutos da empresa, passam pelo uso de bens do Ministério da Saúde para uso da empresa e chegam até a uma possível fuga ao fisco. Além disso, garante que foram usados meios do Ministério da Saúde no dia-a-dia das Ópticas Popular.
Ao Observador, N’Vula Van-Dúnem Camacho acusa Carla Dias Santos de “querer criar algo que é absolutamente absurdo” e garante que a sócia portuguesa a deixou “com a batata quente”. “Nós, os nacionais, é que tivemos de encarar as dívidas e ouvir os insultos todos”, disse ao Observador. Quando lhe pedimos provas destas acusações, remeteu para a sua advogada, Irina Neves Ferrreira, do escritório MLGTS. Porém, após várias tentativas de contacto frustradas, a assessoria de imprensa daquela sociedade de advogados disse que N’Vula Van-Dúnem Camacho já não era sua cliente. Esta, por sua vez, não aceitou os vários pedidos do Observador para novo esclarecimento. “Agradecia que terminássemos por aqui”, respondeu por SMS.
Um salto para Angola depois de um tropeção em Portugal
A ida de Carla Dias Santos para Angola aconteceu numa altura em que o seu negócio em Portugal, as Ópticas Lince, sofreu um abalo público que se arrastou desde 2011 até aos anos que se seguiram. A história anda à volta do marido da empresária: Manuel Dias Santos, diretor do serviço de oftalmologia da Unidade Local de Saúde da Guarda.
Em julho de 2011, o então coordenador do Bloco de Esquerda, João Semedo, denunciou na Assembleia da República o alegado esquema de que Manuel Dias Santos se terá servido para canalizar doentes do Serviço Nacional de Saúde para as suas clínicas privadas. A denúncia foi reforçada num texto publicado em agosto do mesmo ano, onde João Semedo escrevia: “Quem decide o rastreio e quem o realiza, quem prescreve os óculos e quem os vende, é tudo da mesma família. Só não vê quem não quer ver”.
Apesar da exposição pública, o caso ficou a marinar durante dois anos. Depois, em 2013, uma queixa anónima motivou um pedido de esclarecimento da Inspeção Geral das Atividades em Saúde (IGAS). Após analisar as tabelas de produtividade do médico, que foram facultadas pela administração do hospital, o IGAS referiu que “houve um decréscimo acentuado” no número de consultas externas efetuadas por Manuel Dias Santos — de 3226 em 2010 para 2661 em 2012 — e de intervenções — de 98 em 2010 para 76 em 2012. Assim, formaram-se suspeitas de que Manuel Dias Santos poderia estar a favorecer as suas clínicas privadas em detrimento do serviço público que dirigia.
Perante isto, o IGAS contactou o hospital da Guarda a 10 de julho de 2013, instando-o a tomar uma decisão — que poderia passar por um processo disciplinar — e comunicá-la num prazo de 30 dias. Mas isso não aconteceu. Só 693 dias depois, a 27 de maio de 2015, quando o IGAS pediu para conhecer o “progresso” do caso, é que a administração do hospital voltou a tocar no assunto. A resposta foi simples: Manuel Dias Santos estava reformado desde 1 de maio de 2015. Como tal, quatro anos depois da primeira denúncia pública, o IGAS arquivou o processo.
Nos anos em que este caso se arrastou na volta do correio entre Lisboa e a Guarda, Carla Dias Santos preparava a expansão do negócio para Angola. Em 2012, por intermédio de uma das suas filhas, a empresária participou num jantar em Lisboa onde, entre várias pessoas, estava um homem bem colocado na hierarquia militar angolana — tanto que hoje é general. “Foi uma situação muito social, de brincadeira”, recorda Carla Dias Santos ao Observador. “Estávamos a falar das nossas profissões, eu expliquei o que fazia e mais à frente disse que gostava muito de investir em Angola”, recorda. “Mas não tenho contactos nenhuns…”, lamentou-se a empresária.
Ao receber este sinal, o futuro general ofereceu-lhe ajuda. Referindo que em breve iria haver uma festa de aniversário de um outro general (em funções então e ainda hoje) onde poderia fazer os contactos necessários. E assim foi: semanas depois, Carla Dias Santos estava numa das festas mais cobiçadas de Luanda, rodeada da elite angolana.
“Fiquei sentada numa mesa onde estava gente muito poderosa”, diz, para depois mostrar como uma revista de jet-set angolana chegou a publicar uma fotografia sua naquele evento. Depois daquele dia, surgiram mais convites, mais amizades e, claro, a agenda de contactos da empresária portuguesa engrossou. “É uma elite muito fechada, com quem eu convivia de forma muito agradável e espontânea. Foi um privilégio a rede de contactos que mantive nessa altura.”
O reencontro de Dias Santos com os Van-Dúnem
Mas havia um contacto em Luanda que Carla Dias Santos tinha há mais tempo. Perto do ano 2000, a empresária foi com o marido a um congresso de oftalmologia em Cabo Verde. Lá, conheceram José Vieira Dias Van-Dúnem, à altura vice-ministro da Saúde para a Área de Saúde Pública, e a sua mulher, a oftalmologista Sílvia Van-Dúnem. Por isso, quando chegou a Angola em 2012, Carla Dias Santos ligou-lhes para reatarem laços.
“Logo na minha primeira visita a Angola, liguei-lhe [a Sílvia Van-Dúnem] para a cumprimentar e para dizer que estava em busca de montar um negócio de clínicas de oftalmologia em Luanda. Expliquei-lhe o meu projeto”, recorda a empresária portuguesa.
Nesta altura, o casal Van-Dúnem já tinha subido uns quantos degraus na escada da administração pública angolana. De vice-ministro, José Vieira Dias Van-Dúnem passou a ministro da Saúde em 2008, cargo que desempenhou até 2016. De médica oftalmologia, Sílvia Van-Dúnem passou a diretora do serviço de oftalmologia do Hospital Josina Machel, o maior de Luanda e de Angola. Na prática, era a maior autoridade na área da oftalmologia em todo o país.
No final de setembro de 2013, quando Carla Dias Santos já tinha visitado várias vezes Luanda, recebeu uma chamada de Sílvia Van-Dúnem. Queria convidá-la para um jantar, para falar de “uma coisa mais séria”. Encontraram-se no restaurante Pimm’s, um dos mais exclusivos de Luanda. A empresária portuguesa fez-se acompanhar de uma das suas filhas. A médica angolana trouxe a filha N’Vula.
“Porque é que não fazemos as duas o projeto?”, Sílvia Van-Dúnem terá então proposto a Carla Dias Santos, segundo esta recorda. “Eu confio em ti e sabes que comigo tens as portas mais abertas. Abro portas a ti, abro portas ao teu marido.”
Naquela noite, Sílvia Van-Dúnem propôs sociedade a Carla Dias Santos, num regime de 50-50. Havia apenas uma questão. “Para não dar o meu nome, por causa do meu marido, queria que fizesses a empresa com a minha filha”, terá dito a mulher do então ministro, referindo-se à sua filha N’Vula. Mas, como conta a empresária portuguesa, Sílvia Van-Dúnem garantiu que estaria sempre “na sombra”, a ajudar e a “abrir portas”.
Para Carla Dias Santos a proposta era tentadora. “Percebi que com ajuda deles ia poder abrir portas que de outra maneira não se iam abrir.” A empresária portuguesa, que até então queria fazer o negócio sozinha, acabou por mudar de ideias e seguiu o ditado angolano que diz: “Quem quer ir depressa vai sozinho, quem quer ir longe vai acompanhado”.
“O negócio só foi para a frente porque eu me mexi”
Do luxuoso restaurante Pimm’s à circunspecta sala da ANIP, onde as duas sócias firmaram o contrato de investimento, passaram-se mais de nove meses. Daí para a frente, seguiram-se outros tantos em que, aos poucos, a VDDS foi erguendo as lojas que iriam formar as Ópticas Popular. Durante esse tempo, foram várias as visitas que Carla Dias Santos fez a Angola, por vezes acompanhada do marido. Eram ambos recebidos por Sofia Van-Dúnem.
Quem estava ausente era N’Vula Van-Dúnem Camacho, que saiu de Angola nos últimos meses de 2015. Nessa altura, a jovem empresária ficou grávida e decidiu passar os últimos seis meses da gestação nos EUA. Também Sílvia Van-Dúnem se ausentou do país — primeiro em maio, para acompanhar o parto da sua filha; e de seguida para fazer o mesmo por uma nora.
No entanto, o negócio continuou a mover-se. Na ausência da sócia angolana, Carla Dias Santos abria a primeira loja das Ópticas Popular no Mercado Asa Branca, no município de Cazenga. Em junho, inaugurou a segunda loja, em Maianga. Por fim, abriu uma terceira no bairro de Hoji-ya-Henda, também em Cazenga. “O negócio só foi para a frente porque eu me mexi”, sublinha a empresária portuguesa.
Apesar dos primeiros sobressaltos, dos quais constam atrasos nas obras das lojas e também na execução do investimento por parte da sócia angolana, as Ópticas Popular começaram a levantar voo. Segundo o relatório de prestação de contas entregue à ANIP no final de 2015, as três lojas das Ópticas Popular faturaram um total de 98 257 243 kwanzas — o que, à taxa de câmbio da altura, correspondia a quase 670 mil euros. O melhor mês foi em outubro, com uma faturação total de 16 818 972 kwanzas, à altura 114 185 euros.
“Eu acreditei na doutora Carla no começo”
Em setembro, meses depois de ter tido o filho nos EUA, N’Vula Van-Dúnem Camacho regressou a Angola. Quando chegou, os números da empresa eram positivos — mas a sócia angolana começou a duvidar da gestão de Carla Dias Santos.
“Eu acreditei na doutora Carla no começo”, disse ao Observador, na única vez que aceitou ser entrevistada. “Eu não sabia muito daquele negócio e acreditei. Vi uma senhora mais velha e pensei: ‘Porque é que ela me haveria de mentir?’” Mas, depois, assim que regressou a Angola em setembro de 2015, diz que foi “investigar”. E, nesse processo, chegou a uma conclusão: “Eles super faturaram os preços”.
Para entender esta acusação, convém ter algum contexto. No Memorando de Entendimento assinado entre as duas sócias, ficou estabelecido que, “preferencialmente”, o inventário das lojas angolanas seria comprado numa fase inicial pelas Ópticas Lince, em Portugal. Esta, por sua vez, venderia os produtos às Ópticas Popular sem margem de lucro. Naquele documento, este método era referido como uma forma de “maximizar o melhor preço, os melhores descontos, garantir melhores margens e gerar maior rentabilidade”.
Segundo N’Vula Van-Dúnem Camacho, Carla Dias Santos e a Ópticas Lince estariam a sobrevalorizar as lentes que compravam, para depois vender à empresa angolana, tirando daí um rendimento adicional. “Isso é crime”, sublinhou ao Observador. Porém, N’Vula Van-Dúnem Camacho não apresentou nenhuma prova para sustentar a sua acusação, que a empresária portuguesa nega. Segundo Carla Dias Santos, os materiais eram vendidos às óticas de Angola “praticamente com os preços de custo”.
Acreditando que estava a ser “enganada”, N’Vula Van-Dúnem Camacho terá decidido tomar as rédeas do negócio que fundou com Carla Dias Santos. Para tal, teria de afastá-la. Junto de um ex-trabalhador, o Observador soube que a sócia angolana convocou uma reunião com os funcionários das lojas, onde comunicou alterações no funcionamento das mesmas, que passaram por uma reorganização do pessoal. Além disso, N’Vula Van-Dúnem terá deixado claro aos funcionários que, a partir daquele momento, a gestão das Ópticas Popular iria passar sobretudo por ela.
Este episódio coincidiu com uma quebra abrupta nas receitas da empresa. Após o pico registado no mês de outubro (com receitas de 16 818 972 kwanzas ou 114 185 euros), os números caíram vertiginosamente nos meses seguintes. Em fevereiro, as receitas já só eram de 8 783 925 kwanzas, então equivalente a 50 028 euros. Em kwanzas, era uma queda de 48% em apenas quatro meses. Em euros, era uma baixa de 56%. Com estes números, os problemas entre as duas sócias, até à altura escondidos, começaram a vir à tona.
Carla Dias Santos só se apercebeu de que estava perante uma situação potencialmente irreversível quando chegou para a sua visita mensal a Luanda. De manhã, ligou ao motorista da empresa a pedir-lhe que a fosse buscar hotel. “Desculpe, mas tenho ordens superiores para não a ir buscar”, terá ouvido do outro lado do telemóvel. “Foi aqui que elas me deram a golpada”, diz Carla Dias Santos.
A anatomia de uma “golpada”
Quando recebe o Observador na sua loja de Matosinhos, Carla Dias Santos já leva mais de um ano sem viajar para Angola, embora tenha visto privilegiado. Garante que não o faz porque não se sente em segurança. Mesmo assim, à distância, lança várias acusações a N’Vula Van-Dúnem Camacho e à família desta — o Observador contactou Sílvia Van-Dúnem e o ex-ministro José Vieira Dias Van-Dúnem, mas apesar da insistência nenhum se demonstrou disponível para uma entrevista. “Elas viram que o negócio dava dinheiro e acharam que conseguiam continuar assim sem mim”, acusa.
As acusações de Carla Dias Santos são várias e algumas podem constituir crime à luz da lei angolana. É o caso que remete para um jipe utilizado para o transporte dos trabalhadores desde o local onde estavam alojados até às lojas onde trabalhavam. Em maio de 2015, Sílvia Van-Dúnem terá arranjado, por intermédio do seu marido, um Toyota Land Cruiser para fazer o transporte dos trabalhadores da VDDS (a maior parte portugueses que tinham sido funcionários das Ópticas Lince) desde a casa onde estavam alojados até às lojas onde trabalhavam.
Ao Observador, Carla Dias Santos conta que só mais tarde, quando o carro já estava ao serviço da empresa há alguns meses, olhou para o Título de Registo de Propriedade Automóvel daquele veículo. Naquele cartão, a empresária portuguesa entendeu que o jipe não era um simples empréstimo da parte de José Vieira Dias Van-Dúnem. Afinal, aquele jipe de matrícula LD-11-85-AY seria antes propriedade do Ministério da Saúde e estaria destinado para servir o Programa Nacional de Medicamentos Essenciais. Ao Observador, Carla Dias Santos diz que se apercebeu desta questão entre junho e agosto de 2015. Porém, só em novembro é que terá pedido esclarecimentos à sócia angolana.
N’Vula Van-Dúnem Camacho rejeita qualquer ilegalidade e refere que havia apenas um atraso na documentação do carro, embora confirme que se tratava de um carro que foi do Estado. “Fomos pagar a taxa de circulação e só aí é que demos conta de que o carro continuava em nome do ministério”, justificou-se ao Observador.
Carla Dias Santos conta ainda como a sócia angolana lhe terá tentado vender o carro que pertenceria ao Ministério da Saúde. A proposta surgiu quando a sócia portuguesa a confrontou com um atraso na sua parte do investimento no valor de quase 300 mil dólares — segundo as contas do diretor financeiro das Ópticas Lince, N’Vula Van-Dúnem Camacho estaria em atraso com 277 894 dólares no mês de julho de 2015. Depois de rejeitar essa oferta, a sócia angolana fez-lhe uma nova proposta. Esta chegou sob a forma de uma fatura proforma, onde eram cobrados 9 084 600 kwanzas (à altura, o equivalente a 59 018 euros) por seis meses de aluguer e seguro. Aluguer e seguro do quê? O documento não diz, mas Carla Dias Santos garante que diz respeito ao carro.
Outra das queixas de Carla Dias Santos diz respeito aos movimentos feitos por N’Vula Van-Dúnem Camacho, alegadamente à sua revelia. No estatutos da empresa, publicados em Diário da República a 13 de novembro de 2014, ficou estabelecido que seriam necessárias duas assinaturas — isto é, de cada uma das sócias — para “realizar quaisquer operações comerciais e bancárias que interessem à sociedade, nomeadamente a assinatura de cheques, letras, livranças e aceites bancários”.
Perante a ausência de N’Vula Van-Dúnem Camacho no final de 2014 (quando foi ter o bebé aos EUA) e de Sílvia Van-Dúnem em maio de 2015 (em quem a filha delegou funções através de uma procuração), essa regra teve de ser alterada para que Carla Dias Santos pudesse, sozinha, dar seguimento às operações da empresa. Para resolver esta limitação, ambas as partes aprovaram um documento onde se dizia que cada sócia poderia movimentar até 20 mil dólares sem necessidade de uma segunda assinatura.
Essa exceção continuou em vigor já bem depois de N’Vula Van-Dúnem Camacho ter regressado a Angola. Porém, em fevereiro de 2016, já em litígio com a sócia angolana, Carla Dias Santos enviou uma carta aos dois bancos onde a empresa VDDS tinha contas, o BIC de a Angola e o BPA, onde revogava essa cláusula. Assim, pedia que voltasse a “ser aplicada a previsão estatutária que determina que a sociedade se obriga com a assinatura de duas sócias gerentes”.
No BPA, a ordem foi acatada. No BIC, a conta continuou a registar saídas de dinheiro à revelia de Carla Dias Santos, acusa a empresária. Como terá conseguido N’Vula Van-Dúnem Camacho passar por cima da ordem da empresária portuguesa que obrigava a duas assinaturas para movimentar dinheiro? Ao Observador, a sócia angolana não chegou a responder a esta pergunta. Da parte portuguesa, o diretor financeiro das Ópticas Lince, Sérgio Silva, assegura: “Soubemos por diligência que a Dr.ª N’Vula conseguiu junto da alta esfera do BIC e do respetivo departamento jurídico desbloquear a situação”.
A empresária portuguesa refere ainda que, apesar das suspeitas levantadas por N’Vula Van-Dúnem Camacho em relação ao valor das encomendas logo no mês de outubro de 2015, continuou a enviar materiais pagos pelas Ópticas Lince para as óticas angolanas. No entanto, queixa-se de nunca ter recebido nenhum reembolso por aquelas lentes, armações e outros artigos. “Nunca recebi nada das lentes de outubro de 2015 a fevereiro de 2016”, sublinha.
Há ainda outra dúvida relativa às compras da empresa. Ao Observador, N’Vula Van-Dúnem Camacho disse que, após romper com a central de compras da Ópticas Lince, começou a procurar lentes mais baratas e noutros mercados. “Nós tivemos um abalo do ponto de vista económico, houve uma recessão muito grande no país e tivemos de abraçar as lentes de qualidade média”, referiu, acrescentando depois que passou a lidar com o mercado sul-africano e chinês, sem referir marcas.
Porém, nos extratos bancários da VDDS, a que o Observador teve acesso por via da sócia portuguesa, não há nenhuma referência a compras desse tipo. “Se comprasse no exterior e os pagamentos seguissem o decurso normal e legal, então teria de haver transferências na conta e não as há”, sublinha Sérgio Silva. “Ou então, a sócia [N’Vula Van-Dúnem Camacho] fica com o produto das vendas da empresa e deposita em sua conta e gere a partir daí” sugere o diretor financeiro.
Também a situação fiscal da empresa preocupa Carla Dias Santos. Referindo que desde o último trimestre de 2015 a VDDS é gerida de forma “unilateral” por N’Vula Van-Dúnem Camacho, a sócia portuguesa aponta para um relatório da empresa responsável pela contabilidade daquela sociedade, a F3M. Naquele documento, que é assinado em fevereiro de 2017 mas que diz só respeito até novembro de 2016, é referido que “existe muita informação em falta”, incluindo no que diz respeito ao pagamento de impostos. A suspeita de incumprimento fiscal por parte da empresa avoluma-se ainda mais num e-mail enviado a 26 de abril de 2017 a Carla Dias Santos por Irina Neves Ferreira, que à altura ainda era advogada de N’Vula Van-Dúnem Camacho. Naquela mensagem, Irina Neves Ferreira reconhece que “até ao mês de setembro de 2016 foram cumpridas todas as obrigações fiscais”. Ao Observador, a sócia angolana recusou esclarecer a situação fiscal da VDDS.
Em maio de 2017, N’Vula Van-Dúnem Camacho dispensou os serviços de contabilidade da F3M — agindo alegadamente mais uma vez contra os estatutos da empresa, que requer a aprovação das duas sócias — e anunciou que ia contratar um novo contabilista. Para Carla Dias dos Santos, esta contratação é a mais recente, e possivelmente a maior preocupação que lhe chega de Angola. “Não sei quem é a pessoa que trata da contabilidade agora, não sei que intenções tem, qual é a sua formação, nem porque é que foi contratada”, diz. “Não sabemos se vai forjar documentos. O mais certo é fazer tudo o que a N’Vula lhe mandar fazer.”
A 22 de agosto de 2017, Carla Dias Santos, depois de nenhuma das partes ter conseguido chegar a acordo para rescindir a empresa, enviou uma carta para a sede da VDDS a comunicar a sua “renúncia ao cargo de gerente (…) por razões de discordância total e absoluta sobre a condução unilateral da sociedade desde o último trimestre de 2015 pela Gerente Dr.ª N’Vula Van-Dúnem Camacho”.
Para já, ainda não teve resposta.
Um vai-vem de incompatibilidades?
Carla Dias dos Santos refere ao Observador que tinha um duplo objetivo com a sua ida para Angola: prestar um “serviço público” e ao mesmo tempo “ganhar dinheiro”. “Eu sou empreendedora e empresária, por isso quero fazer dinheiro, mas como tenho formação de assistente social também vi que havia ali muita gente a precisar de ajuda”, diz. Assim, refere que a missão era ajudar a “descentralizar” os serviços de oftalmologia em Luanda através de uma rede de clínicas em municípios limítrofes da região da capital de Angola, mais próxima de clientes e pacientes que vivessem longe do centro da cidade.
Fazer tudo isto sozinha seria uma coisa. Fazer tudo isto com a filha da maior autoridade oftalmológica do país e do ministro da Saúde seria outra completamente diferente.
As semelhanças desta história com o episódio do seu marido na Unidade Local de Saúde da Guarda podem ser óbvias. No entanto, quando lhe perguntamos se, enquanto empresária, tentou repetir em Angola as alegadas práticas que colocaram o seu marido sob suspeita em Portugal, Carla Dias dos Santos nega essa ideia. “Não, não queríamos fazer o mesmo em Luanda”, disse. “Não pensei nisso.”
Questionada sobre se tentou estabelecer convénios com o sistema público de saúde angolano, Carla Dias dos Santos respondeu negativamente. N’Vula Van-Dúnem Camacho desmente-a. “A doutora Carla aconselhava-me a fazer convénios, mas eu não fiz por orientação da minha mãe”, garante.
N’Vula Van-Dúnem Camacho refere-se à mãe como sua “conselheira”, mas também podia chamá-la de “financiadora”. Isto porque, a 7 de maio, uma semana antes de abrir a primeira loja, a VDDS recebeu uma transferência de 28 250 000 kwanzas — à altura quase 230 mil euros. No Contrato de Investimento Privado que deu início à empresa, é exigido à sócia angolana que o investimento feito em seu nome parta de “fundos próprios”. Algo que, no que diz respeito a pelo menos estes 28 milhões de kwanzas, não aconteceu. N’Vula Van-Dúnem Camacho admite mesmo isso. “Muitas vezes, vai ver o nome da minha mãe a entrar com dinheiro”, disse ao Observador.
Há ainda outras dúvidas que se levantam quando analisado outro documento — a Lei da Probidade Pública — e quando se olha para outro elemento da família Van-Dúnem. Não a filha, não a mãe, mas sim o pai, José Vieira Dias Van-Dúnem, ministro da Saúde entre 2008 e 2016. Ao confirmar-se que o Toyota Land Cruiser utilizado para transportar os trabalhadores da empresa pertencia ao Ministério da Saúde na altura em que foi “emprestado” à VDDS, a lei estaria a ser desrespeitada.
Segundo a legislação aprovada em março de 2010, “permitir que se utilize, em obra ou serviço particular, veículos (…) de propriedade ou à disposição de qualquer entidade pública” constitui um ato de improbidade pública. A sanção prevista pode levar à “suspensão dos direitos políticos” num período que pode ir de cinco a dez anos.
Posto tudo isto, Carla Dias dos Santos diz que existe aqui, “de facto”, um caso de possível incompatibilidade da parte do casal Van-Dúnem. Porém, isso é algo que reconhece apenas agora e não quando, sob a promessa de portas abertas, aceitou fazer negócios com aquela família da elite angolana. “Por isso é que ela [Sílvia Van-Dúnem] quis pôr o nome da filha, porque isso podia trazer problemas para o marido. Eu aceitei, mas sabia que a sócia era ela. Nem fui ver o que a lei dizia.”
Os aspetos legais e deontológicos, reconhece agora, não lhe tiraram o sono. “Admito que não valorizei, porque estava em África e lá é assim com todas as negociatas”, diz. “África é África, Portugal é Portugal.”
Assim, perguntamos-lhe se guarda algum arrependimento da sua incursão pelo mundo dos negócios em Angola e pelos meandros da elite daquele país, um dos mais corruptos do mundo. A resposta é só uma: “Não ter feito o negócio sozinha”.