Quando a guerra na Ucrânia começou, há menos de um mês, Olga não imaginou o que aí vinha: perdeu o emprego, numa empresa estrangeira que abandonou a Rússia, deixou de poder receber dinheiro da mãe, que vive em Portugal, e não sabe quando a vai poder voltar a ver.
São histórias que se multiplicam por toda a Rússia, onde a guerra também se faz sentir — não com bombas, não com morte, mas ainda assim com vítimas. Há quem se revolte contra o Presidente Putin por lançar uma ofensiva militar contra o país vizinho, e há quem o apoie ainda mais desde que o conflito rebentou. Mas, estejam de que lado estiverem da barricada, os russos não saem ilesos desta guerra.
“Fazia algum trabalho freelancer para uma empresa de media ocidental, uma das que deixou a Rússia. Vou perder o freelancing que tinha com eles”, explica ao Observador. Olga era contratada por uma empresa que fazia traduções russas para um empresa de media ocidental, mas apenas em part-time. Uma doença auto-imune, de que sofre há vários anos, não permite que trabalhe a tempo inteiro, mas vivia, na Crimeia, com a ajuda da mãe, que mora em Portugal. Agora, com as sanções internacionais, em particular a exclusão da Rússia do sistema SWIFT, receber dinheiro da Europa tornou-se praticamente impossível.
A sanção “nuclear”. O que é o SWIFT e que consequências teria um bloqueio à Rússia?
“A minha mãe tentou enviar-me dinheiro pela Western Union e não funcionou. Esses sistemas de pagamento fecharam a opção de enviar dinheiro para a Rússia. Ela perguntou o que se passou e eles disseram que o sistema bancário da Rússia colapsou, o que não é verdade, mas a taxa de câmbio está muito volátil”, relata.
Olga ainda não tem um plano para resolver este problema. “Tenho muito pouco dinheiro de sobra e a minha mãe não me consegue ajudar”, lamenta. Não sabe também quando é que a mãe a vai conseguir visitar, agora que a Europa baniu os aviões russos do seu espaço aéreo e Moscovo respondeu na mesma moeda. Maneiras, diz, há sempre, mas são muito mais caras e o dinheiro não estica. “Não sabemos como é a minha mãe, que vive em Lisboa, pode cá vir. Costuma vir duas vezes por ano. Ela vinha de voo direto, mas agora não é possível. Teria de voar pela Turquia. Mas os preços subiram muito, nem sabemos quanto seria”, desabafa.
Também não é possível voar da Crimeia para Moscovo, onde Olga tem de se deslocar regularmente para tratamentos médicos. A próxima viagem será necessariamente esta primavera, mas desta vez será feita de comboio. “Agora, os aeroportos estão fechados por motivos de segurança”, explica. Uma viagem de cerca de três horas vai ter de se transformar em 30.
Olga lamenta as sanções e as suas consequências, que afetam o cidadão comum. Chama-lhes “cultura de cancelamento” contra a Rússia, e acredita que acabam por ter efeitos em todo o lado. “Vemos que muitos países na Europa são prejudicados, por exemplo, por causa do aumento dos combustíveis. Tudo está ligado, a economia é global”, diz. Apoiante do Presidente russo, lamenta a “injustiça na forma como as coisas são noticiadas” no estrangeiro. “Tudo é ao contrario. O preto é chamado de branco e o branco de preto”, critica.
A saída de empresas internacionais da Rússia também custou o emprego a Nikolay Maralev. A três dias de assinar um novo contrato, e depois de já ter anunciado a saída no emprego antigo, começa a guerra e tudo entrou em suspenso. “A empresa congelou as contratações e eu perdi o emprego. Têm muitas pessoas a trabalhar na Ucrânia, na Bielorrússia e na Rússia. Começaram a retirar as pessoas de lá e levá-las para outros lugares”, conta ao Observador.
Já o engenheiro de som Dmitry Pashkevich diz ter conseguido manter a relação laboral com empresas no estrangeiro — para quem faz trabalhos de copywriting—, mas enfrenta outro problema: não consegue aceder ao dinheiro. “Não posso transferir o dinheiro que recebo fora para a minha conta na Rússia. Deixo o dinheiro numa conta Paypal no Reino Unido. Estou ainda a tentar perceber como posso viver com isto. Continuo a trabalhar, mas não consigo aceder ao que ganho”, lamenta este opositor à invasão da Ucrânia.
Mais de 400 empresas deixaram de operar na Rússia desde que a guerra começou, de acordo com a Universidade de Yale — algumas abandonaram de vez o mercado russo, outras suspenderam temporariamente as operações. São de todas as áreas, e vão desde o McDonald’s à Unilever, Ikea, H&M, Shell, BP, Deutsche Bank, Goldman Sachs, Mastercard, Visa e American Express, Netflix, Boeing e Airbus. Segundo a Bloomberg, cerca de três milhões de russos trabalham em empresas ocidentais ou em projetos conjuntos financiados por essas empresas. Com o final das operações, perdem-se empregos, perde-se acesso a produtos e, em última instância, a um certo estilo de vida.
Mas Nikolay Maralev diz que em Moscovo a postura das pessoas mudou: no início, cada anúncio de encerramento era recebido com consternação e medo. Agora, emergiu um sentimento de revolta: “Há uma enorme onda, as pessoas começaram a ficar irritadas com isso. Quando as empresas dizem que vão sair, a reação já é de fúria, dizem ‘Vão-se lixar, não precisamos de vocês’. Quem sofre são as pessoas normais, quem não consegue comprar um carro ou uma t-shirt na Zara não é o Putin, sou eu”.
Carros ao dobro do preço, negócios a cair para metade
O aumento generalizado dos preços é a consequência mais esperada e mais direta das sanções contra a Rússia, mas os efeitos não se sentem todos por igual. O valor do rublo caiu a pique e o Banco Central Russo subiu as taxas de juro para 20%, depois de as reservas estrangeiras do país terem sido congeladas. Encontrar dólares é quase impossível e há filas enormes nas caixas multibanco — um resultado do clima geral de receio que se instalou entre a população.
A Goldman Sachs prevê que a economia russa, que se esperava vir a crescer, vá contrair 7% este ano em consequência da guerra. Este mês, a inflação chegou aos 12,5%, mas o governo já anunciou medidas para regular o mercado. Há subidas nos preços dos produtos alimentares, mas os russos entrevistados pelo Observador dizem que são aumentos ainda ligeiros, sem grande impacto na sua vida diária — ainda assim, por via das dúvidas, há quem admita ter armazenado produtos de limpeza para seis meses.
Aquilo que realmente salta à vista é o aumento do preço dos automóveis e dos produtos eletrónicos. De acordo com a Forbes, os carros estão agora 17% mais caros e as televisões 15%. Mas aquilo que os consumidores estão a ser obrigados a pagar ultrapassa as estatísticas. “Estava prestes a comprar um carro novo, ia comprar em abril ou maio. Os preços dos carros duplicaram numa semana e abandonei a ideia, vou ficar com o carro que tinha. Mesmo os carros mais baratos subiram imenso. A minha mãe comprou um novo Hyundai por dois milhões de rublos [cerca de 17 mil euros à taxa de câmbio de sexta-feira, 25 de março], dez dias antes de a guerra começar. Duas semanas mais tarde, cinco dias depois de a guerra começar, o mesmo carro custava o dobro, quatro milhões de rublos. É uma loucura”, descreve Nikolai.
Ksenia Lesyukova vive perto de Vladivostok, na costa do Mar do Japão, um região onde é habitual encontrar carros de fabrico japonês. “O Japão deixou de fornecer carros e partes sobresselentes de carros. Não sei como é que o meu marido vai conseguir trabalhar sem carro, já que demora muito tempo de transportes públicos, uma hora e meia”, comenta, já antecipando consequências futuras de uma guerra que não apoia.
Os russos entrevistados pelo Observador atribuem os aumentos não só às sanções, mas também às consequências de uma resposta da população a esse cerco internacional: o açambarcamento. “Há pânico, as pessoas querem comprar porque os preços estão a subir”, comenta Aleksei Nikitin. E as lojas, diz, aproveitam-se da situação, subindo os preços ainda mais.
Nikitin é ele próprio empresário e diz que o impacto no negócio foi enorme. Produz pequenas câmaras, que se instalam em carros para registar acidentes. Estava prestes a começar a vendê-las na Amazon quando o negócio ficou suspenso.
A empresa importa material da China, mas com o banco onde era titular de uma conta a ser expulso do sistema SWIFT, ficou com um problema em mãos. “Passei a semana toda a tentar abrir contas em pequenos bancos e finalmente ontem consegui encomendar produtos da China. Foi muito difícil transferir dinheiro”, conta ao Observador.
A empresa recorria também a publicidade no YouTube e no Google, que agora está suspensa. “Para mim, foi um grande golpe”, comenta, dizendo que também o negócio da mulher, de impressão de verniz de unhas, ficou gravemente afetado por não poder usar o Instagram como meio de promoção.
Mastercard, Visa e Apple Pay também deixaram de funcionar. Tudo junto teve um efeito devastador: “Perdemos metade do negócio. Há muita incerteza e, como empresário, isso faz com que seja difícil tomar decisões. Só não quero entrar em pânico.”
Há ainda outro fator de perturbação para o negócio de Aleksei Nikitin: dois dos seus funcionários foram detidos por participarem em “reuniões contra a guerra”. Um deles, o chefe do departamento de Marketing, esteve detido 19 dias. “Eu sofri porque eles foram detidos. Como empresário, para mim, é claro que vão ser presos todos os que participarem. É assustador, digo-lhes para não participarem”, comenta.
Nikitin não aprova este envolvimento dos seus funcionários em matérias políticas. “Perguntei-lhes: ‘Qual é a tua motivação? Queres asilo político? Estás a ser pago por alguém?’”, conta ao Observador. O empresário admite que nenhuma das duas esteja realmente na origem da participação nas reuniões: “Acho que estão sob influência das redes sociais, de jornalistas em quem acreditam. Nos telefones, vês o que queres ver.”
A guerra na Ucrânia causou grandes divisões na Rússia, e não são só políticas. Também na análise das consequências económicas do conflito há opiniões diferentes. Muitos receiam uma catástrofe, mas outros consideram que este é um momento de verdade. “Isto vai revitalizar os negócios porque vamos substituir os produtos importados por produtos locais. Em muitos aspetos, a economia vai beneficiar das sanções, a longo prazo. A longo prazo, a economia vai ser mais saudável e sustentável”, diz Ivan (nome fictício) ao Observador.
Este empresário, dono de um fundo de investimento, admite não ter sido até agora afetado pelas sanções. “Somos da classe média-alta, temos bastante riqueza, e se algo se tornar um pouco mais caro, não sentimos muito, não afeta muito o nosso orçamento doméstico”, explica. Mesmo sabendo que outras famílias estarão mais vulneráveis que a sua a abalos económicos, Ivan critica os russos que deixaram o país: “Foi um teste de QI. Os que não passaram o teste de QI, saíram; os que passaram, ficaram. Porque as oportunidades aqui são enormes. As crises são oportunidades e há imensas oportunidades de negócio agora. Os negócios ocidentais deixam o país e abrem-se nichos [para os empresários locais]”.
Nas farmácias, já se esgotam medicamentos
Os medicamentos não estão diretamente sujeitos a sanções, mas o setor acabou por também ser afetado pela perturbação das cadeias de abastecimento, até porque 70% dos medicamentos são importados.
Nas farmácia russas, já se nota a falta de stock de alguns fármacos e há filas a perder de vista — também aqui há quem tente comprar várias caixas de uma vez para acautelar o futuro. “É terrível ver os medicamentos estrangeiros a desaparecer. Os que precisam deles para sobreviver podem perder a vida num futuro próximo”, lamenta Ksenia Lesyukova.
Nikolay Maralev diz que, por enquanto, “os medicamentos mais básicos podem comprar-se sem problema”, mas outros, “mais específicos”, começam a desaparecer. “Precisava de começar uma nova terapia para alergias. Estive meses a preparar-me [para o tratamento]. Fui à farmácia e não têm esse medicamento. Verifiquei todas as farmácias de Moscovo e não existe em lado nenhum. Verifico todos os dias, porque é difícil para mim viver com estas alergias no verão”, descreve.
Aleksei Nikitin, que chegou a pensar que a longa fila para a farmácia era a fila para o banco, lembra que há sempre uma alternativa para quem não encontra o que quer nas lojas: o mercado negro, que por estes dias já não se faz tanto em caves escuras, mas em grupos na Internet. “Podes comprar dólares, tal como podes comprar droga e cocaína. No Telegram, há grupos com pessoas a vender e comprar dólares. Um medicamento que custa 10 euros, no mercado negro… bom, não sei quanto custa, mas há pessoas a vender hambúrgueres por 10 mil dólares, tubarões de peluche do Ikea por 10 mil dólares”, exemplifica.
Relatórios de pensamento no teatros de São Petersburgo
Para lá das carteiras dos russos, há outros impactos desta guerra. Nos departamentos públicos, por exemplo, há um forte controlo da opinião e mesmo a expressão artística ficou condicionada, sob o risco de fortes penalizações.
“Os teatros privados em todo o país estão a receber cartas do Ministério Púbico a ameaçar com ações judiciais em caso de qualquer mensagem anti-guerra que passe nos trabalhos artísticos ou nas redes sociais dos teatros. Toda a gente tem de ter muito cuidado”, conta ao Observador Dmitry Pashkevich, engenheiro de som, com carreira nos teatros de São Petersburgo.
Nos teatros públicos, e em todo o tipo de organismos do Estado — como escolas, universidades, museus — ainda é pior: “Há relatórios regulares sobre os funcionários e é preciso tomar uma posição política. O chefe do teatro tem de dar uma lista de funcionários com detalhes sobre os seus pensamentos sobre o que se passa”.
Ainda assim, Dmitry diz que os teatros continuam a tentar passar uma “mensagem de humanidade”, e tentam levar ao palco peças que “refletem as ideias de guerra e paz, ideias de liberdade”. Tudo recorrendo a vagas sugestões e a parábolas linguísticas — às vezes funciona, outras não.
Os artistas russos têm estado no centro da contestação à guerra. Este mês, a estrela da companhia de bailado Bolshoi, Olga Smirnova, anunciou a sua saída, numa reação à guerra na Ucrânia. “Nunca pensei que viesse a ter vergonha da Rússia (…) Podemos não estar no epicentro deste conflito militar, mas não nos podemos manter indiferentes a esta catástrofe global”, afirmou nas redes sociais, antes de partir para os Países Baixos, onde integra agora a “Dutch National Opera & Ballet”.
As críticas à posição de Moscovo e ao Presidente Vladimir Putin empurraram a banda russa Aquarium para fora das rádios e televisões do Russian Media Group, um dos maiores grupos de media do país. Foi uma resposta à forma como o vocalista Boris Grebenshchikov apelidou a guerra nas redes sociais, dizendo tratar-se de uma “loucura”.
Dmitry Pashkevich garante que, pelo menos em São Petersburgo, a maioria — artistas, mas não só — “não concorda com a política atual”, apesar de muitos dos protestos serem “silenciosos”. Dá como exemplo a letra ‘Z’, o símbolo de apoio à invasão da Ucrânia. “Podemos ver esses Z nas janelas de locais como centros de família estatais, escolas, bibliotecas. Os bombeiros tiveram de pôr esse Z nas carrinhas e equipamentos. A maioria dos trabalhadores, chefes de departamento dos bombeiros, ficaram furiosos com isso, porque entendem que são uma entidade não política, são bombeiros. Mas há ordens de cima para ser assim”, conta ao Observador. A notícia sobre o mal-estar dos bombeiros foi noticiada num jornal local que já só pode ser acedido através de VPN, tendo sido banido pelas autoridades. “Deus abençoe a tecnologia do VPN”, graceja.
“Z” de vitória. A origem do maior símbolo de apoio à guerra na Ucrânia
Dmitry não tem planos para deixar São Petersburgo, mas diz que a guerra já durou tempo suficiente para mudar a sua visão do país. Antes da pandemia, conta, levava os turistas em visitas guiadas — era um bom negócio, mas mesmo que os visitantes voltem, não acredita que possa voltar a ser o guia que era. “Não vou poder falar da história da minha cidade e do meu país da mesma forma. Esta ação, tomada pelo comandante supremo do nosso país, em meu nome, estragou o meu sentimento. Acho que não consigo criar uma narrativa credível de que a Rússia é um país com problemas, mas pacífico. Dizia sempre isso, mas o que se passa é absolutamente desnecessário”.
Em fuga para a Geórgia para contarem a história dos soldados russos
Larisa e Pavel falaram com o Observador por telefone. Ouvem com atenção as questões que lhe são lançadas — Como estão a sentir o impacto da guerra? O que pensam da decisão de Vladimir Putin de avançar com uma ofensiva militar sobre o país vizinho? — mas, depois, atropelam-se para contar o que os levou à Arménia e, a seguir, à Geórgia. São russos, têm 34 e 38 anos, e há poucas semanas perceberam que tinham de deixar o país.
Larisa: “Muitas pessoas têm medo. Se te juntaste a alguma atividade no passado estás em risco”.
Pavel: “Se publicaste alguma coisa online, estás em risco”.
Larisa: “Se chamares guerra à guerra, estás em risco”.
Os dois inscrevem-se neste perfil: ele fazia parte de uma associação que “esteve atenta a procedimentos ilegais durante as eleições”, ela pertence a uma organização de defesa de direitos humanos que tem feito campanha por eleições limpas. São os dois fortes opositores da guerra e fazem parte dos milhares de russos que deixaram o país nas últimas semanas — um economista russo, citado pela BBC, fala em 200 mil pessoas desde que a guerra começou.
Os dois amigos partiram primeiro para a Arménia, país próximo da Rússia, para onde é mais fácil transferir dinheiro, mas estão agora na Geórgia, onde alugaram um quarto de hotel — uma opção mais em conta que a alternativa — arrendar um apartamento —, tal é a procura. Estima-se que 25 mil russos tenham fugido para a Geórgia desde que a invasão da Ucrânia começou.
Larisa e Pavel conhecem muita gente na mesma situação. “Algumas acreditam que o governo vai decidir que todos os homens com mais de 18 anos vão ter de ir para a guerra. Há quem ache que o país vai voltar para a União Soviética, têm medo de que as fronteiras sejam encerradas”, conta Larisa.
Além de um receio generalizado de poderem tornar-se alvos políticos, estes dois amigos são também movidos pela vontade de desenvolver um projeto que não acreditam ser viável na Rússia. “Estamos a tentar perceber quantos soldados russos realmente foram mortos na Ucrânia”, explica Larisa. Os números são difíceis de apurar: a Ucrânia diz que são mais de 15.000, os Estados Unidos apontam para 7.000, e a última estimativa do governo russo não chegava aos 1400.
A ideia é criarem um ‘site’ que, além de números, tenha informação sobre estes soldados e entrevistas com as suas famílias. “Há muitos jovens que não estão prontos para guerra, não querem matar pessoas. Quando os ucranianos chegam, eles dizem ‘Não quero lutar, levem-me como prisioneiro’. Temos bastante certeza de que isto é verdade”, explica Larisa. Pavel diz que muitos destes jovens soldados são de zonas rurais e tiveram pouco acesso à educação. “São miúdos assustados, não se conseguem defender”, comenta. A ideia destes dois amigos é divulgar estas histórias no país, “principalmente junto das mães russas, porque isto é a pior coisa que pode acontecer a uma mãe, são miúdos a morrer por nada”, diz.
O importante é “furar a propaganda”, numa altura em que muitos russos não acreditam nos relatos de guerra que os familiares na Ucrânia lhes fazem. “A minha avó tem uma irmã na Ucrânia. Falam frequentemente ao telefone. A minha avó perguntou-lhe como iam as coisas e a irmã contou-lhe que estava a ser bombardeados. E a minha avó respondeu: ‘Estão a bombardear-se a vocês próprios, então. Isso é só propaganda’”, conta Pavel.
Os dois amigos não fazem ideia do que será o futuro daqui a um mês. Talvez mudem novamente de país, talvez a guerra acabe e possam voltar. “Neste momento, estamos a tentar não entrar em pânico, é tudo tão incerto”, diz Larisa.
“Para não discutir com eles, parei a comunicação”
Sejam contra ou a favor da guerra, todos lamentam as profundas divisões que o conflito gerou entre família e amigos na Rússia. “Isto destrói relações”, diz Ivan, para explicar por que razão pede que não seja apresentado pelo seu nome. Para este empresário, o grande impacto da guerra é o que descreve como o “sofrimento moral”, não só gerado pelas desavenças familiares, mas pelo sentimento de injustiça que o invade, quando vê as notícias.
“Se ouvirmos os media ocidentais, ouvimos que a economia russa está destruída, que as pessoas estão prestes a correr com Putin. Isso não é verdade. Quanto mais pressão o Ocidente põe em Putin, mais as pessoas o apoiam. A situação na Ucrânia não é culpa dele, é dos Estados Unidos. Eles abriram um laboratório de armas químicas [na Ucrânia]. Zelensky disse que ia ter armas nucleares em breve. É uma ameaça existencial à Rússia, se puserem armas nucleares em Kharkiv podem atingir Moscovo”, descreve, repetindo a linha do Kremlin.
Olga concorda e lembra os resultados de uma sondagem oficial que indica que cerca de 70% dos russos está satisfeito com Vladimir Putin — ainda que outros inquéritos apontem para 58,8%. “Vemo-lo como um líder sábio. Ele tem garantido a estabilidade da economia”, comenta. Apesar de Olga apoiar o Presidente russo, não é indiferente à guerra, e emociona-se várias vezes ao longo da conversa com o Observador. “Apoiamos esta decisão, apesar de nos magoar profundamente ver qualquer morte dos dois lados. Não queremos isto, mas não há outra forma”, diz, com a voz trémula. Para Olga, a invasão — a que o Moscovo chama de “operação especial” — é um imperativo moral: “Os russos entendem que há uma necessidade de ajudar os russófonos que estão lá (na Ucrânia), e de ajudar a libertar a Ucrânia do regime nazi que capturou este país”.
Como todos os russos entrevistados pelo Observador que se alinham mais com as políticas do Kremlin, Olga diz ter “minimizado discussões políticas” para não perder amizades. “Quando vi que punham bandeiras ucranianas e apoiavam a visão ocidental e a visão de Kiev, e não a versão verdadeira, partiu-me o coração. Para não discutir com eles, parei a comunicação”, conta.
Nikolay Maralev diz ter uma posição moderada: é contra a guerra. Mas, agora que está a acontecer, acredita que o melhor é manter, o máximo possível, a paz social. Não aprova a realização de protestos nas ruas por recear uma revolução que “destrua o país todo”. Isso, diz, seria “pior que a guerra”.
Mas essa postura intermédia já lhe trouxe dissabores. “Ao fim de cinco dias [de guerra], saí de todos os grupos de WhatsApp e Telegram que tinha com os meus amigos. As pessoas enlouqueceram. Comecei a ficar muito nervoso”, relata. Nikolay garante que há muitas mensagens agressivas por parte de ucranianos, que incentivam os russos a sair à rua em protesto. “Há um tipo que conheço bem, ótima pessoa, cheia de amor, mas a certa altura ele escreve: ‘Morram, russos, morram’. Éramos amigos. Ele repetiu isto em todos as publicações nas redes sociais”, recorda.
Para manter a paz, Nikolay optou pelo silêncio: deixou de falar e faz por não ouvir. É uma forma de encontrar paz de espírito em tempo de guerra: “Sou contra essas agressões loucas. Se disser para terem calma, eles dizem: ‘Não percebes, nós estamos a morrer aqui, vocês também têm de morrer’. É muito doloroso.”