Sandro Bernardo começou com uma pergunta para os juízes: “O que é que os senhores querem saber?”. A companheira, Márcia Monteiro, com uma afirmação: “Eu quero dizer a verdade”. Entre a aparente indiferença de um e a determinação de outro, descobrir a verdade pode ter passado a ser uma tarefa ainda mais difícil. É que nenhum deles admite que matou Valentina, em maio do ano passado, na sua casa na Atouguia da Baleia. O pai diz que foi a madrasta a agredir a criança de nove anos até à morte, mas madrasta diz o inverso. Versões contraditórias que a distância a que estavam sentados no banco dos arguidos — bem maior do que aquela que a pandemia de Covid-19 exige — parecia antever.
Mas num aspeto houve concordância. Embora não se tenham assumido como autores das agressões que levaram à morte de Valentina, ambos admitiram que pouco ou nada fizeram para as evitar. Num discurso pouco coerente e que se resumiu a respostas de “sim” e “não”, Sandro disse-se “arrependido” e garantiu ao tribunal que tentou afastar a madrasta da sua filha, quando esta a estava supostamente a agredir, mas acrescentou também que “tinha muito respeito pela Márcia”. A justificação levou uma das duas juízas do tribunal a fazer uma pergunta que ficou sem resposta: “Fez tudo por respeito à sua senhora e por desrespeito à sua filha? Tem de admitir que é estranho. Mas é a sua versão”.
Já Márcia, ainda que entre lágrimas, conseguiu contar uma versão da história mais pormenorizada e de forma mais fluida — a versão de que foi Sandro a provocar a morte da enteada e que viria depois a ser corroborada pelas declarações do seu filho, Raul Monteiro, ouvidas mais tarde. Também ela disse que tentou afastar o companheiro da criança de nove anos — “a minha menina”, chamou-lhe —, só que não conseguiu. E explicou que não pediu ajuda porque foi ameaçada por ele e teve “medo”: “Achei que ele ia fazer mal aos meus filhos”.
Confrontados com versões em grande parte incompatíveis daquilo que aconteceu a 6 de maio de 2020, os juízes quiseram ir por outro lado naquela que foi a primeira sessão do julgamento do homicídio de Valentina: o de explorar melhor por que razão nenhum deles fez nada para evitar a morte de uma criança de nove anos que aconteceu à sua frente — independentemente de quem a provocou. Sandro explicou que, quando acordou naquele dia, “Márcia já estava com a Valentina dentro de água quente”. “Quando cheguei, ela já estava a tremer, agarrei-a pelos ombros. Estava a ter espasmos. Não parava de ter espasmos. Levei-a para a cozinha, para baixo da janela”, afirmou.
À medida que o juiz-presidente António Marques foi lendo a acusação que lhe é imputada, o arguido foi respondendo com poucas palavras: “Não fui eu, foi a Márcia”, ia repetindo num tom monocórdico. No banco dos arguidos, a mulher a quem apontava responsabilidades ia negando com a cabeça.
— Ela também lhe deu murros na cara? Nas costas? Foi ela que fez isso tudo?
— Sim, sim…
Só que Sandro acabaria por dizer também, pelo meio do discurso já de si incoerente, que afinal Márcia tinha agredido Valentina cerca de dois dias antes da morte — levando o juiz a recordá-lo de que a autópsia revelava que as agressões aconteceram no dia em que a filha morreu: “Se quer contar a sua versão, que seja uma que faça sentido”, advertiu-o. De acordo com essa sua versão, Sandro apenas deu “umas palmadas” à filha, mas cinco dias antes do homicídio: “Simplesmente ralhei com ela e ficou de castigo”. Negou quaisquer agressões com um chinelo, uma colher de pau, a pancada na cabeça que a fez cair na banheira, e a asfixia que lhe terá provocado ao apertar-lhe o pescoço, que constam da acusação . “Quando cheguei à casa de banho, ela já estava deitada dentro da banheira. Antes disso, não sei”, afirmou.
Face ao discurso parco em detalhes, o juiz continuou a ler a acusação do Ministério Público. Sandro foi confirmando o que lá estava escrito: que colocaram Valentina no sofá da sala e a deixaram ali até às 22h00 da noite e que durante a tarde foi à farmácia e à lavandaria enquanto a menina ali ficou. “Viu a sua filha ali a morrer e não fez nada?”, perguntou o magistrado. “Estou muito arrependido. A Márcia começou a dizer coisas, a encher-me a cabeça. Começou a perguntar-me o que ia ser das nossas meninas“.
Questionado pela Procuradora da República, Sandro explicou que, a dada altura, deixou de “sentir a pulsação” de Valentina, mas não sabe precisar quando — sabe que foi depois de voltar da lavandaria. “Nem assim se lembrou de ir buscar socorro?“, perguntou o juiz. “Não”, disse apenas. Sandro confirmou que, por volta das 23h00 de 6 de maio, levou o corpo da filha, ao colo, até ao carro. Depois, dirigiu-se, com Márcia, a uma zona de mato na Serra d’El-Rei onde deixou o cadáver — mas diz que a ideia de simular o desaparecimento da criança foi da sua companheira. “Na sua versão, quem causou todas estas coisas foi a arguida Márcia?“, rematou o juiz. “Certo”, respondeu. Certo não é para Márcia Monteiro que prestou declarações logo depois do companheiro.
Num discurso estruturado e mais organizado cronologicamente, a arguida começou por contar que tudo começou quando recebeu uma chamada da ama a dizer que Valentina tinha uns “papelinhos” de natureza sexual — a ama da criança, ouvida também em tribunal, confirmou que falou com a madrasta sobre estes papéis, mas “nunca” os viu. No dia 1 de maio, “ele [Sandro] confrontou a menina, a menina confirmou e ele começou a bater-lhe”. “Disse para ele parar e que não era assim que se resolviam as coisas. Ele pediu para eu falar com a menina e ela confirmou tudo”, disse, acrescentando que Valentina contou uma história que indiciava que estaria a ser abusada sexualmente pelo padrinho.
Márcia acrescentou depois que acordou no dia 6 de maio para preparar o leite para a filha mais nova e, enquanto o fazia, disse a Valentina para fazer os trabalhos de casa. “Ele foi ter com ela à cozinha e disse que ela era uma mal comportada e que só tinha esperteza para fazer o que não devia. Depois começou a bater à menina novamente”. Chorosa, a madrasta garantiu que esteve sempre a tentar “proteger a sua menina”, mas Sandro ter-lhe-á dito “para parar porque a filha era dele”.
Enquanto saiu para ir dar o leite à filha bebé, ouviu os gritos de Valentina e foi encontrá-la com o pai já na casa de banho: ela, dentro da banheira, a ser molhada com água quente — o que a levou a fechar o chuveiro. “O Sandro bateu-lhe muitas vezes e com muita força. Quando eu o empurrava, ele dizia que a filha era dele”, continou a descrever. Quando se apercebeu que Valentina não estava bem, começou a falar com ela e “a bater-lhe para ver se ela respondia”. “Ela tinha os olhos abertos, mas não me respondia”, disse. Mas a versão de Márcia também deixou os juízes reticentes:
— A senhora tem telemóvel não tem? Estava a funcionar?
— Sim
— Porque não chamou ajuda?
— Não liguei porque o Sandro começou a ameaçar-me com os meus filhos. Achei que ele ia fazer mal aos meus filhos.
— Mas ele prendeu-lhe as mãos? Apertou-lhe o pescoço?
— Não.
Márcia ainda insistiu que apenas fez “tudo o que ele me mandava fazer”. “Já percebemos que ambos têm muito respeito um pelo outro. Nenhum é culpado e ficamos assim”, afirmou o juiz-presidente.
Assim não ficam. O julgamento tem de chegar ao fim com uma decisão: condenar ou não condenar Sandro e Márcia pela morte de Valentina e qual a pena que lhes será aplicada. Na próxima sessão, a 24 de março, vão ser ouvidas as declarações que os arguidos prestaram logo em maio — para verem se batem ou não certo com o que disseram esta quarta-feira.
E continuarão a ser ouvidas testemunhas — nesta sessão já foram ouvidas oito. A primeira foi Sónia Fonseca, mãe de Valentina. Depois de explicar o tipo de relação que a filha tinha com o pai, disse que a criança vinha sempre ”muito feliz, muito contente” da casa dele. “Falava da ‘minha Márcia’. Dizia que tinha duas mães”, contou, acrescentando que ela nunca se queixou de qualquer comportamento de Sandro ou da madrasta. No banco dos arguidos, Márcia ia chorando.
Sandro, Sónia e Valentina. A história da família que nunca existiu
Sónia explicou ainda que só falou com a filha uma vez por telefone durante os quase dois meses em que esta esteve na casa do pai. Os juízes quiseram saber porquê. “Porque ela não gostava de falar ao telefone”, respondeu a mãe de Valentina, garantindo que trocava mensagens semanalmente com Márcia. Falou com a filha no dia da mãe, 2 de maio — segundo a acusação, a menina teria sido agredida pela primeira vez no dia anterior. Valentina estava “bem disposta, alegre”. Sónia lembra-se da últimas palavras: “Xau, beijinhos. És uma chata, gosto muito de ti”.
O primeiro dia terminou depois com a audição das declarações gravadas para memória futura de Raul Monteiro, filho da arguida, de 13 anos — um depoimento que acrescenta alguma credibilidade à versão contada pela sua mãe. Numa gravação de quase duas horas, ouve-se Raul a dizer que acordou no dia 6 de maio com “Valentina a gritar” e com o barulho de “estalos” e que viu Sandro a dar umas “dez bofetadas” à criança (Raul é só filho de Márcia, tal como Valentina era só filha de Sandro, sendo que o casal tinha uma filha bebé em comum), que lhe ia pedindo para parar. “A minha mãe chorava a dizer para ele [Sandro] parar quieto”, contou, acrescentando que, quando Valentina caiu na banheira, Márcia “disse para chamar o INEM e ele disse não, que a filha era dele”. Raul foi relatando e reforçando que a mãe esteve sempre a chorar e estava “nervosa”, mas que foi impedida de chamar ajuda por causa de Sandro.
Nesse dia, também o jovem de 13 anos, “começou a chorar” porque ficou “nervoso com aquela situação toda”. Nesse dia, dormiu “pouco”. “Olhava para o sofá e via a Valentina ali”, desabafou.