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Napoleão Mira assumiu o microfone para contar, em modo rima, o advento do puto Samuel, seu filho, messias do hip-hop tuga. Samuel surgiu alguns versos depois, vestido de branco, com uns quilos a mais em relação àquela distante passagem por Paredes de Coura em 2002.
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Napoleão Mira assumiu o microfone para contar, em modo rima, o advento do puto Samuel, seu filho, messias do hip-hop tuga. Samuel surgiu alguns versos depois, vestido de branco, com uns quilos a mais em relação àquela distante passagem por Paredes de Coura em 2002.

Napoleão Mira assumiu o microfone para contar, em modo rima, o advento do puto Samuel, seu filho, messias do hip-hop tuga. Samuel surgiu alguns versos depois, vestido de branco, com uns quilos a mais em relação àquela distante passagem por Paredes de Coura em 2002.

No carrossel do dia nacional, Rita Vian falou-nos a partir do seu quarto e Sam The Kid fez do seu hip-hop história sinfónica

A 28ª edição do Vodafone Paredes de Coura arrancou com um dia inteiramente dedicado à música portuguesa. A enchente fez com que esta terça-feira, 16 de agosto, entrasse para a história do festival.

Quem vive em Paredes de Coura diz incrédula: “nunca vi nada assim”. A confidência chega-nos já na reta final do dia e corrobora aquilo que os olhos, postos no recinto lotado, testemunham com espanto. A terça-feira vestiu-se de sábado, encheu-se de tal modo que qualquer extraterrestre caído do céu acharia que estaríamos em modo de fim de festa.

Para quem já não se recorda, esta data não constava dos planos iniciais do festival. Foi anunciada em março deste ano como bónus extra totalmente dedicado à música nacional. Um gesto simbólico do Vodafone Paredes de Coura, dizendo que se queria reerguer de dois anos de pandemia ao lado dos artistas portugueses.

A celebração da vida e da música começou bem cedo, às 14h. Lamentavelmente não conseguimos apanhar nem Pluto nem Club Makumba, mas lá que havia dedo místico neste dia, em que o sol se gladiou como bravo romano com a chuva, não temos dúvidas. Entre chinelos e galochas, carreiros de lama a escorregar para o palco e relva fofa lá atrás, Benjamim entrou com a morrinha, batiam as cinco horas no sino da vila.

O músico de 36 anos sabia que estava a balançar numa autêntica tensão meteorológica. “Ainda bem que não está a chover” soltou já depois de ter arrancado com “Domingo” e “Ângulo Morto”. Ele sabia que se o dilúvio das primeiras horas da tarde tivesse continuado (o mesmo dilúvio que levou a que os concertos da noite anterior do Festival Sobe à Vila tivessem sido cancelados), porventura a colina não estaria tão cheia. Porventura não haveria tantas crianças de mãos dadas com os pais nem tantos braços levantados nas primeiras filas para saudar o músico que desde meados deste ano assumiu as rédeas da sua própria editora, a Discos Submarinos.

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O concerto manteve-se à tona do início ao fim. Convenhamos, de um ponto ao outro a viagem não foi longa. Um punhado de canções era tudo quanto Benjamim nos podia dar, porque o dia estava “cheio de música portuguesa”. “Estávamos a precisar disto, obrigada Paredes”, agradeceu. Em meia hora saltitou entre a frente do palco, com guitarra na mão, e o fundo, dedos a brincar no sintetizador, para acabar sentado a acariciar o teclado com a sua “Vias de Extinção”, “a melhor canção que já escrevi”.

É “fixe” apoiar bandas portuguesas

É realmente louvável que a música portuguesa tenha sido chamada em força para um dos festivais mais antigos do País (o mais antigo em edições consecutivas) e não é de espantar que a comoção tenha sido tal que até aos bombeiros da vila os Twist Connection agradeceram. “Sobrevivemos”.

O ambiente num "Couraíso" molhado

Porém, 20 bandas num dia tem os seus inconvenientes. Enquanto gesto, é bonito, enquanto espetáculo, fica a impressão de que caímos numa mostra de variedades na qual cada concerto é apenas uma pequena fatia de algo maior. Provámos de tudo deste buffet farto, mas nunca chegámos a recostarmo-nos à mesa. Pelo menos até chegarem os concertos da noite. É preciso tempo e espaço para que o prazer se instale nos nossos corpos e se faça memória, mas com slots tão efémeros e correrias entre palcos, isso tornou-se quase impossível.

Para a posterioridade ficará o gesto da organização (com algumas polémicas à mistura, já lá vamos) e a resiliência do público que, mesmo com o temporal novamente à espreita se manteve firme a aplaudir bandas que certamente não seriam difíceis de apanhar no conforto de outras salas. Cruzámo-nos inclusivamente com quem apenas tinha comprado bilhete para esta terça-feira. “É fixe vir aqui apoiar as bandas portuguesas”. Quiçá de um gesto simbólico saia um ritual para os próximos anos.

Coura tem uma relação de amor peculiar com o seu público que faz com que os seus passos, dos mais ousados aos seguros, sejam amparados e amplificados pelos seus seguidores. Não há chuva que abale este sentimento romântico, já lá vão 28 anos de história com muita lama entranhada nos pés. Veem-se adolescentes e jovens que estão agora a despertar para os encantos do “couraíso” e quarentões que, embora largando as tendas de outros tempos, não largaram o prazer de picar o ponto neste recinto durante quatro dias por ano (cinco, neste caso). As gerações renovam-se e isso é visível a olho nu.

Samuel Úria frisa isso mesmo em palco, puxando dos anos 90, de um tempo em que, diz ele, teve que procurar um sofrimento estranho à sua pele para se fazer contador de canções. “Muitos de vocês não deviam ser nascidos”, constata, pousando os olhos “no mar de gente” que se foi aconchegando na plateia. Mostra-se encantado e feliz: “Estamos em Paredes de Coura”, solta ao microfone como rugido de leão há muito contido, tal como contido está o choro do homem que mantém o “Lenço Enxuto”, canção que faz acender algumas lanternas no ar e engrossar lágrimas nos olhos. Fecha o concerto com “É preciso que eu diminua” e toda a gente a repetir-lhe os versos, “eu só sei crescer” e com “Forasteiro”, canção alegre e festiva para dar esperança, realça. “Sejam felizes estes dias”.

Cai a noite, chega Rita Vian e Linda Martini

Enquanto ainda se gritava “só mais uma” nas grades do palco de Úria, já um fundo azul e uma batida ambiente envolvia o palco secundário. Assim se anunciava Rita Vian, a única artista feminina dos 20 nomes nacionais deste dia. A exceção, neste caso, não denota coisa boa e faz-nos recordar as palavras que há sensivelmente um ano Aline Frazão escrevia na sua conta pessoal do Facebook: “no fundo toda a mulher música é, ou tem de ser, maiúscula e valente num meio ainda tão masculino, masculinizado e, digamos francamente, machista. Não olhes, senão vês. Está em todo o lado.” Está aqui no cartaz deste dia, esperemos que não esteja num próximo.

Rita Vian

A chuva, como querendo tomar posição, fez-se cair grossa, ora lamentando o triste descuido curatorial, ora ajudando a que a aura do concerto se tornasse mais profunda, como as letras e a interpretação de Vian pedem. Ela veio a Paredes de Coura, onde já teve muitos “amores e desamores”, para apresentar o seu EP “CAOS’A”, rendilhado de cinco canções lançado em 2021 e produzidas por Branko. Nele, Rita mostrou ao mundo os seus trinados vindos do fado, vindos da herança árabe, vindos de uma ancestralidade medieval que se cola à nossa identidade e se reinventa com subtil delicadeza na voz desta música que não se esquece do tempo em que escrevia canções atrás da porta do quarto. Foi assim que nasceu “Sereia”, conta, incentivando-nos a expressar as nossas ideias, como ela fez, para que elas não morram no anonimato dos nossos lençóis.

Num concerto bonito – e aqui leia-se “bonito” com toda a nobreza que o sentimento comporta – Rita ofereceu-nos a sua intimidade, como ostra que se abre para mostrar a sua pérola. O canto que entoou a cappella, “vindo de casa” e da memória dos seus avós, falando do Zé da Beira, da tua Maria e dos olhos que não podem viver um sem o outro, foi das mais polidas cartas de amor que este recinto testemunhou. Fechado o concerto com Amália Rodrigues, Vian esfumou-se do palco. O breu instalou-se em definitivo e as árvores, no anfiteatro principal, iluminaram-se para receber os Linda Martini.

O contraste não poderia ter sido maior. Se Rita Vian contém o lamento para que ele expluda no nosso âmago, os Linda Martini rasgam tudo ao primeiro ataque, esventrando o relvado com os seus riffs e com versos em repeat. Os fãs da fila da frente não se ensaiaram para abrir mosh pits e para entoarem com André Henriques frases tornadas hinos ao longo de mais de 20 anos de carreira.

Linda Martini

Ouviu-se O chão que pisas sou eu, de “Amor Combate”, Foder é perto de te amar, de “Cem Metros Sereia” ou Quero Tudo ao Mesmo Tempo, de “Boca de Sal”. Houve ainda tempo para visitar o novo álbum, “Errôr”, registo gravado este ano com Pedro Geraldes na guitarra, mas que, saído o membro fundador, passou a ser apresentado em palco por Rui Carvalho, conhecido por nos arrepiar em acústico como Filho da Mãe. O registo hardcore também lhe assenta bem, ou não tivesse vindo ele dessa sonoridade suja.

Foram poucas as palavras que dirigiram ao público e, na verdade, não são necessários floreados quando este quarteto entra em cena. Hélio Morais ainda cuspiu, “foram dois anos de merda”, mas agora ali estavam eles, negro vestido, celebrando a música, os erros e as dores com o seu clã indefetível. Foi luta livre, de coração aberto, do início ao fim.

Isto é poesia, não é só fachada

Gostávamos de ter tido tempo para respirar, mas Bruno Pernadas já se estava a acomodar no palco secundário com a sua big band. Não nos deixou margem de manobra nem para abocanharmos um mero enchido minhoto – e que bem nos teria sabido. A noite não estava claramente virada para desabafos gastronómicos, havia que saltar de palco em palco como tartaruga ninja para não perder pitada dos concertos, coisa que em Bruno Pernadas se mostrou tarefa ingrata.

“Está muito denso”, vociferava alguém ao nosso lado, que atracou na barraca da cerveja e de lá não mais saiu. Nós prosseguimos, com confiança e encontrões vários e mergulhámos de cabeça na festa exótica que Pernadas montou em noite fria e húmida. Os corpos vinham ainda petrificados do concerto anterior, no qual Adolfo Luxúria Canibal, porta voz dos Mão Morta, convocou o gelo e a invasão bélica naquela sua voz cavernosa para nos pôr o sangue a correr no inverno da vida. Este foi um dia feito de estações opostas, onde os contrastes foram assumidos pelos programadores como força artística e manifesto do que de mais plural e intergeracional se faz em Portugal. A polifonia está bem presente por estas terras e recomenda-se.

Retomemos então Pernadas e o seu jazz psicadélico de estrutura clássica, a beliscar a eletrónica, o rock, a pop, África e o Oriente, a beliscar Coura no hipotálamo, que lhe respondeu ondulando os corpos, dançando de cósmico contentamento, por vezes até fechando os olhos para se deixar levar nesta viagem espacial. Tão líquida e fluída foi a linguagem do músico lisboeta que, quando demos por ela, já Margarida Campelo arrastava os versos Long ago, long ago, long ago de “Ya Ya Breathe” até ao infinito e mais além. Quantos minutos terá durado isto? Não fosse o relógio, esse ditador das horas, não saberíamos responder. Bruno Pernadas contornou de tal forma a matéria, o tempo e o espaço, que a chuva se quedou suspensa no céu até ao obrigado final. Só nesse momento desabou sobre nós e nos mandou de volta para o palco principal, onde nos esperava uma orquestra conduzida pelo maestro Pedro Moreira.

Mão Morta

Há pouco falávamos de gerações, não é assim? Pois bem, Napoleão Mira assumiu o microfone para contar, em modo rima, o advento do puto Samuel, seu filho, messias do hip-hop tuga. Samuel surgiu alguns versos depois, vestido de branco, com uns quilos a mais em relação àquela distante passagem por Paredes de Coura em 2002, mas com a língua desenvolta para revisitar 20 anos de história. Convocou o avô em “Sangue”, ele que fazia puzzles na sala enquanto Sam escrevia no quarto. “Ele nunca esteve num concerto meu”, diz-nos, mas será que é mesmo verdade? Talvez ele estivesse naquela colina, naquele preciso momento, a abraçar Sam The Kid juntamente com a multidão que parecia não querer acabar.

O concerto serviu para que miúdos e graúdos conhecessem melhor a caminhada do rapper de Chelas, que ali se fez acompanhar dos Orelha Negra. Tudo em família, portanto. Mundo Segundo apareceria também em palco para cantar “Tu Não Sabes”. O “mano” Nuno, GQ Barbosa, foi lembrado em “Poetas de Karaoke”, ele que morreu em 2012 num acidente de mota, tendo deixado escrito as linhas que o Alto Minho cantou com devoção esta terça-feira, Eu pratico praticando a nossa língua outra vez. Nesta noite, “inesquecível” para Samuel, celebrou-se a retrospetiva de um amor profundo. Sam The Kid continua a ser o jovem que só veio para ficar com interrogações, fazer alguns poemas e algumas partes com refrãos e, sendo assim, a cena sai sem pressões. Alguém suspirou atrás de nós, “tanta gente boa”. Não diríamos melhor.

No final do primeiro dia – e que longo foi – ainda houve tempo para Corona mafiar bairro adentro. “Esta merda é Paredes de Coura não é o Sol da Caparica”, disparou David Bruno, entusiasmou-se a plateia. Afinal, estes filhotes de Gaia dizem tótil, não dizem bué e isso cai que nem sopa no mel em terras do Norte. Aqui eles jogam em casa, ganham limpinho como o Paços de Ferreira ganhou ao Tottenham em 2021, na Mata Real (e uma camisola dos castores a voar para o palco); oferecem hidromel à primeira fila, cordialidade do homem do robe; gritam por Gondomar, rezam um Pai Nosso, anunciam “Mãe Birei Gandim”, fazem o que lhes dá na real gana. Enfim, dão um chino no olho de Coura para deleite das almas que aqui se amontoaram e que terminaram a noite a dançar com Moullinex e a cantarolar com o Conjunto Cuca Monga. Hoje há mais, venham daí os BADBADNOTGOOD, os Idles e os Beach House.

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