Uma onda que nos enrola sem que nos consigamos libertar dela. Uma jangada que avança no rio espesso, no meio da selva, com zumbidos de bichos de mil e um feitios a lançar a sua melodia no ar. Um bailado de amor. Em Habitat, os episódios sucedem-se sem a pretensão de nos contarem uma história. Estão ali e pronto. São compostos por Angélica Salvi como se a sua harpa fosse uma tela e os seus dedos a pegada impressionista que transforma uma emoção, um momento fugaz numa obra perene.
“Estas peças são uma série de memórias sensoriais, que têm muito a ver com a água, com o ar, com a rotina e com tudo o que me rodeia”, explica Angélica Salvi, que recebeu o Observador no seu estúdio no Porto, uma garagem onde antes da pandemia se realizavam pequenos concertos, eventos íntimos abertos a todos os curiosos que gostam de ser surpreendidos pela interseção de disciplinas, pela delicadeza da arte.
Angélica faz parte de uma geração de artistas que, nascidos ou elegendo o Porto como sua casa, descobriram na cidade uma força agregadora capaz de os contaminar criativamente. Uns e outros deixam-se contagiar sem reservas, bebendo de inspiração mútua, expandindo assim o potencial das suas linguagens individuais.
“Uma coisa que eu gosto muito nesta cidade é que os grupos colaboram muito e estão a colaborar cada vez mais”, diz a harpista espanhola, que desde que chegou ao Porto em 2011 assinou composições para o Balleteatro, trabalhou com a Orquestra Sinfónica da Casa da Música e colaborou, entre outros projetos, com os Três Tristes Tigres, com a performer Ece Canli ou com o percussionista João Pais Filipe. Até ao final do ano, promete um novo álbum com André Gonçalves, músico, artista visual e performer com quem atuou em Serralves, a ser lançado pela editora de música eletrónica Crónica. E em breve levará a palco um projeto com várias artistas femininas portuguesas. “Mas isso ainda é surpresa.”
[“MOL”, de Angélica Salvi:]
Voltemos então ao passado recente e ao modo como a Sonoscopia, espaço onde vários artistas relacionados com a música experimental, improvisada e eletroacústica cruzam ideias e desenvolvem os seus trabalhos, lhe abriu as portas da cidade: “Quando cheguei aqui, não conhecia nada, não conhecia ninguém e foi o Gustavo [Costa] que me convidou para tocar com outros músicos. Foi assim que conheci muitas pessoas”.
O nome do fundador deste coletivo portuense tinha-lhe sido sugerido em Haia por um rapaz do Porto com quem Angélica se cruzou no Conservatório de Música. Lá, lembra, era natural a confluência de diferentes projetos. “Havia compositores, improvisadores, gente da eletrónica, mas também artistas visuais e alunos de Belas Artes que trabalhavam com som”. E isso marcou-lhe a sua abordagem à harpa, uma abordagem que procura continuamente novas formas de se expressar.
Composição em tempo real
A estreia de Angélica Salvi nos trabalhos em nome próprio aconteceu em 2019, com a edição de Phantone. Nesse álbum, de ambiente mais encorpado, a harpista deu espaço à improvisação. “Aí havia uma estrutura mais flexível”, diz, onde as composições foram desenhadas à priori e só depois foram adicionados os efeitos de som.
Em “Habitat”, tudo foi feito de uma forma mais focada. Há um minimalismo transversal ao álbum que se explica pelo gosto da música de 41 anos por autores como Ryuichi Sakamoto, John Cage, Hans Otte ou Brian Eno. Paralelamente, Salvi preocupou-se em explorar em tempo real questões como as preparações para harpa, o processamento do som e a integração dos efeitos na composição.
Isso resultou numa abertura do leque cromático do som da harpista, ao ponto de quase duvidarmos de que os sons escutados venham todos do mesmo instrumento. “A piada está em cada pessoa encontrar os sons com que se sente identificada e perceber até que ponto a harpa consegue manter a sua identidade. Às vezes é mais óbvio, outras menos, mas todos os sons que saem são de uma harpa”.
É assim em “Ismos”, tema cheio de zumbidos que, ficamos a saber, foram fabricados por uma ventoinha, ou em “Lolong”, para a qual Angélica colou bostik nas cordas, dando a impressão de estarmos a ouvir um gamelão e não uma harpa. “Também utilizei outras técnicas, com um slide entre as cordas na ‘Fumo’, ou um arco de violino nas partes agudas de ‘Ismos’”, refere.
O mundo sem fim dos pedais
Para quem já se faz acompanhar da harpa desde os 11 anos, é natural que a exploração seja vital para o constante aperfeiçoamento e renovação de linguagens. Angélica não quer estagnar nas suas próprias técnicas de composição, ela que até foi parar à harpa sem pensar muito no assunto: “A harpa caiu-me assim, de repente. Quando era miúda havia um piano lá em casa onde eu tocava muitas vezes. A minha mãe levou-me então ao Conservatório, mas não havia vagas de piano.” Havia-as, porém, em harpa, que, se ajustarmos o foco, até tem parecenças com o piano: “Os pianos de cauda grandes são harpas por dentro”.
Já nos Estados Unidos, onde estudou jazz na Universidade do Arizona e principalmente na Holanda, onde realizou dois mestrados em música contemporânea e experimental no Conservatório de Haia, Angélica foi desbravando aos poucos a improvisação e o imenso mundo dos pedais. “Os pedais, hoje em dia, fazem milhões de reverbs e de delays, fazem cada vez mais coisas. Uma pessoa pode ficar perdida”.
Para se encontrar, Salvi contou com a ajuda de um engenheiro de som, João Carvalho, que lhe mostrou todas as possibilidades que melhor concretizavam aquilo que lhe ia na cabeça. “Eu dizia-lhe, ‘gostava de fazer nesta parte um efeito granular ou de borbulhas’ ou então ‘imagino aqui um efeito mais atmosférico, fantástico, de nevoeiro’ e juntos chegávamos lá.”
É desta forma que, por exemplo, nos sentimos embrulhados numa onda em “Mare”, enquanto os acordes se repetem em eco e se afundam uns nos outros. “’Mare’, de facto, é sobre cair nas ondas e ser levada sem conseguirmos sair. Foi uma coisa que me aconteceu quando era miúda e que aconteceu também à minha mãe, quando estava grávida de mim. É uma sensação que tenho muito presente”.
“Quanto mais conhecimento temos, mais livres somos”
Já “Arpa” faz lembrar um bailado cândido, algo palaciano, convocando uma visão mais clássica do instrumento, a lembrar Henriette Renié ou Carlos Salzedo, o compositor que escreveu o primeiro livro de técnicas estendidas para harpa, no início do século XX. Ambos são inspirações para Angélica Salvi, que os considera vanguardistas para o seu tempo, bem como Ravel e Debussy. Tudo, lembra a também professora do Conservatório de Música do Porto, vem do clássico, mensagem que não se cansa de passar aos seus alunos: “Quanto mais conhecimento temos, mais fácil é e mais livres somos”.
“Arpa”, dizíamos nós, foi a única faixa que a música natural de Salamanca não escreveu. Foi-lhe oferecida durante a sua passagem pela Holanda por um amigo pianista de longa data, musicalmente conhecido como T-Klass, formalmente batizado de Alberto Álvarez. “Foi uma peça um pouco conflituosa, no sentido em que o Alberto apresentou-a ao departamento de composição e eles não gostaram nada. Isso deve ter acontecido em 2008 ou 2009”.
A peça, nota, tem-na acompanhado desde aí, “faz parte de mim, do meu percurso”, mas para a gravar, Angélica Salvi sentiu que precisava de lhe dar uma “refrescadela”. “Foi aí que convidei o Alexandre Soares [Três Tristes Tigres], que foi o produtor no meu primeiro disco. Temos uma boa sintonia e eu gosto muito do trabalho dele. Tem muito bom gosto”.
[ouça “Habitat” na íntegra através do Spotify:]
Alexandre não estará em palco com Angélica, nem nenhum outro músico. Será apenas ela, os seus pedais e a sua harpa. “Estive a trabalhar muito a parte da espacialização, por exemplo, de como estar num espaço com duas colunas e controlar o som ao vivo, para ter os efeitos de lado e a harpa ao centro, como se fossem três harpas”. Nada que nos surpreenda em Angélica Salvi: nos seus dedos, quais ramos de uma árvore prestes a florir, há tantas harpas quantas emoções uma memória nos consegue despertar. Que cada um de nós viaje a seu jeito, seja no dia 17 de novembro, no B.Leza, em Lisboa (22h, €10), ou a 19, no CCOP, no Porto (21h, €10).