Estava tudo naquele olhar. Ao longo de uma quinta-feira longa, que no fuso horário de Portugal começou pouco depois das 9h e só terminou já depois das 17h, Patrícia Sampaio teve sempre o mesmo olhar no momento em que ia entrar no tatami. Falhou a final dos -78kg do judo, mas não falhou aquilo a que se tinha proposto: conquistou a medalha de bronze e deu à comitiva portuguesa a primeira alegria dos Jogos Olímpicos de Paris.
Aos 25 anos e a atravessar a segunda participação olímpica, a judoca natural de Tomar teve o dia mais feliz de uma carreira que começou à boleia do irmão mais velho, Igor, que esta quinta-feira estava nas bancadas da La Defènse Arena a vibrar com a prestação da irmã. Mudou-se para Lisboa ainda adolescente, sozinha e para viver no Centro de Alto Rendimento do Jamor, e vai conciliando o judo com a licenciatura em Ciências da Comunicação que ainda está a tirar.
Apesar das muitas lesões que foi tendo ao longo dos anos, foi campeã europeia Sub-23 em 2021 e saltou definitivamente para a elite do judo internacional ao ganhar o Grande Prémio de Portugal no início do ano passado. Agora, e depois de vencer a japonesa Rika Takayama no combate decisivo, é medalha de bronze olímpica. E isto é só o início.
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▲ Patrícia Sampaio ficou quase incrédula depois de conquistar a medalha de bronze
AFP via Getty Images
Um amor que precisou de trabalho e a ida para Lisboa, onde os transportes chegavam atrasados
Esteve longe de ser amor à primeira vista. O que não significa que não seja o amor de uma vida inteira. A relação de Patrícia Sampaio com o judo começou através do irmão mais velho, Igor, que escolheu a modalidade quando ainda era criança. Aos sete anos, Patrícia tentou experimentar aquilo por que o irmão se tinha apaixonado, mas não sentiu o mesmo. Mais tarde, já aos nove, voltou a tentar. E aí a relação ficou séria.
Natural de Tomar, é oito anos mais nova que Igor e filha de João, que foi jogador de futebol e chegou a ser treinado por Eusébio nas camadas jovens do Benfica, e Teresa, que estudou Filosofia na Universidade Nova de Lisboa. “O meu desporto de eleição era brincar na rua e andar descalça e com os pés sujos. Não foi uma história de amor à primeira vista. Tão pouco é um romance de filme. É um relacionamento com altos e baixos, que envolve choro, tristeza, blocos operatórios, desilusões… Mas é o amor da minha vida”, disse a judoca numa entrevista recente à Judo Magazine.
Patrícia Sampaio é campeã europeia de Sub-23 nos -78kg do judo
Não esconde que o verdadeiro desporto de eleição era “brincar na rua e andar descalça e com os pés sujos” e quando teve a primeira experiência no judo, aos sete anos, nem sequer voltou para a segunda semana de treinos. Voltou aos nove em conjunto com uma amiga e não voltou a deixar o tatami, começando a treinar na Sociedade Filarmónica Gualdim Pais, ao lado do irmão. De forma natural, cresceu a ver os treinos e as competições de Igor e formatou uma competitividade que hoje em dia é uma imagem de marca.
“Quando víamos os vídeos e as fotografias do irmão, ele estava sempre focado e muito concentrado. A Patrícia acabou por ser influenciada dessa maneira. Eu queria que ela fosse para a dança ou para a natação, mas depois quando experimentou novamente o judo aos nove anos houve algo que a despertou”, contou Teresa, a mãe de ambos, ao site da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Aprendeu a ler sozinha ainda na pré-primária, no café dos pais e à boleia dos jornais que andavam pelas mesas, e não esconde que até ao Ensino Secundário não precisava de estudar muito para ter boas notas. Algo que mudou a partir do 10.º ano, quando o sucesso no judo começou a levá-la frequentemente para competições internacionais — aos 17 anos, já integrada no Projeto Olímpico e com direito a uma bolsa do Comité Olímpico de Portugal, aceitou a proposta de terminar a escolaridade obrigatória em Lisboa.
Mudou-se para a capital completamente sozinha, foi viver para o Centro de Alto Rendimento do Jamor e treinava no Judo Clube de Lisboa. Para além das saudades da família, sofreu com o tempo de espera dos transporte públicos — e com a constante preocupação da mãe, que tinha receio de que a filha mais nova sofresse com a mesma “solidão” que ela própria conheceu nos anos 80, quando deixou Tomar para estudar em Lisboa.
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▲ No início da carreira, na Sociedade Filarmónica Gualdim Pais onde começou a praticar judo
LUSA
Pelo meio do judo, Patrícia Sampaio quis ser muita coisa. “Quis ser educadora de infância, queria ser jornalista, até tinha um microfone rosa e andava a entrevistar as pessoas em casa. Quis ser fisioterapeuta, porque via os fisioterapeutas no judo e achava aquilo espetacular”, já explicou. Chegou a escolher Nutrição, mas o facto de ter sido “muito má” a Biologia nos exames nacionais levou-a a optar por Ciências da Comunicação, curso que continua a tirar na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, onde a mãe também estudou.
[Ouça aqui as declarações de Teresa Sampaio, a mãe da judoca, à Rádio Observador:]
Patrícia Sampaio nas meias finais de Judo. “Tem metamorfose de guerreira”, afirma mãe da judoca
“Sou atleta de judo a full time e estudante sempre que o tempo permite e o cansaço não vence”, já brincou a judoca de 25 anos, que atribui ao apoio e esforço dos pais grande parte da responsabilidade de ter chegado onde chegou. “Pouco na minha vida teria sido possível sem o judo, mas pouco no meu percurso no judo teria sido possível sem o sítio onde nasci. Uma família unida, honesta e trabalhadora. Que sempre me ensinou bons valores e que me deu todo o apoio necessário. Uma mãe e um pai que ficavam até ao fim do treino, que acabava para lá das 22h, para me levar de volta a casa. Que me poupam de vários esforços para eu dar 100% naquilo que escolhi para mim”, sublinha.
O exemplo do irmão e a primeira demonstração de força no Grande Prémio de Portugal
Dentro da importância de toda a família, é impossível não destacar a omnipresença do irmão Igor em todo o percurso de Patrícia Sampaio. Oito anos mais velho, é agora treinador de judo na Sociedade Filarmónica Gualdim Pais onde ambos começaram a praticar a modalidade e também cumpre a função de treinador da própria irmã desde 2013.
Antes disso, passava noites em claro e assistir aos combates de Patrícia que aconteciam em fusos horários mais distantes e chegou a ter vizinhos a tocar à campainha de madrugada devido ao barulho que fazia. “A Patrícia amadureceu muito e o que ela antes via como uma imposição minha, para alcançar determinado objetivo, agora vê que é um pedido para benefício próprio. Mas nas brincadeiras somos um pouco brutos”, contou Igor Sampaio na mesma entrevista à Universidade Nova de Lisboa.
Esta quinta-feira, em Paris, Igor Sampaio estava nas primeiras filas das bancadas da La Defènse Arena a incentivar a irmã. Uma irmã que viu rejeitar o judo, apaixonar-se pelo judo e tornar-se uma das melhores do mundo no judo, chegando a uma medalha de bronze na segunda participação olímpica da carreira. Contudo, olhando para o percurso da judoca portuguesa, o pódio alcançado nestes Jogos Olímpicos estava longe de ser inesperado.
O primeiro grande triunfo da carreira apareceu ainda em 2019, quando venceu o Grand Prix de Perth numa fase em que ainda competia nos -70kg. Foi medalha de bronze no Grand Prix de Marraquexe no mesmo ano, já em -78kg, e apurou-se para os Jogos Olímpicos de Tóquio, onde se estreou com uma vitória contra a venezuelana Karen León na primeira ronda e caiu na segunda contra a alemã Anna-Maria Wagner, que acabaria por ficar com o bronze.
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▲ A judoca portuguesa esteve pela segunda vez nos Jogos Olímpicos, depois de ter caído na segunda ronda em Tóquio 2020
AFP via Getty Images
Em 2022, foi campeã nacional e conquistou a medalha de bronze no Grand Slam de Telavive, além de ter sido 5.ª nos Europeus de Sófia. Mesmo com várias lesões pelo meio, problemas físicos que chegaram a afastá-la das competições internacionais durante meses, nunca baixou os braços. E teve uma das principais recompensas no arranque de 2023, quando venceu a ucraniana Yelyzaveta Lytvynenko na final do Grande Prémio de Portugal e carimbou aquela que até esta quinta-feira era a maior vitória da carreira e também a primeira no Circuito Mundial.
Cerca de ano e meio depois, Patrícia Sampaio subiu pela primeira vez a um pódio nos Jogos Olímpicos. E dizemos “pela primeira vez” porque, tal como ela nos ensinou, de Patrícia Sampaio só podemos esperar cada vez mais.