Ao ser vacinado, Roberto lembrou-se de quem já viu morrer. José fala de um novo capítulo no livro desta pandemia. Cristina quer dar o exemplo à comunidade. Gisélia emociona-se quando pensa na sua vez. Fábio diz que hoje regressa a casa mais descansado.
O dia prometia ser agitado e até inédito, mas, fora do edifício do Hospital de São João, no Porto, era impossível desconfiar que ali dentro arrancava a tão aguardada campanha de vacinação contra a Covid-19 em Portugal. O ambiente calmo na entrada e o olhar sereno dos seguranças não faziam adivinhar o momento simbólico que estava prestes a acontecer numa das salas do centro de ambulatório, que este domingo se encheu de gente pela primeira vez.
Passam poucos minutos das 10h quando António Sarmento, de 65 anos, diretor do serviço de infecciologia do hospital, se torna o primeiro vacinado do país. O aparato é grande e merece a presença de Marta Temido, ministra da Saúde, e alguns aplausos após a primeira dose administrada pela enfermeira Ana Isabel Ribeiro.
Fez-se história — e tudo graças ao que Rui Carneiro transportava, segundos antes, numa mala térmica azul. O assistente operacional é, este domingo, responsável pela preparação das vacinas nos serviços farmacêuticos e pelo seu transporte até aos 25 gabinetes onde começaram a ser administradas no braço de 2.000 profissionais de saúde. “São cerca de três minutos a pé, a mala é pouco pesada, normalmente leva entre 50 a 100 vacinas já prontas a utilizar, tudo depende do número de marcações”, explica ao Observador, enquanto inicia a sua quinta viagem do dia, um dia que arrancou às 8h e “não tem horas para acabar”. O profissional não faz parte da lista de inscritos nesta fase, mas espera, no futuro, ter a oportunidade de ser vacinado. “Gostava de tomar a vacina, já me mostrei disponível para a receber, espero que isso aconteça.”
“Quando entrei no gabinete para ser vacinado, pensei no ano duro que passou. Vi muito doentes a morrer”
Roberto Roncon, o coordenador do centro de referência de ECMO no S. João, não estava a trabalhar este domingo, mas dirigiu-se ao hospital para ser vacinado. Pelas 16h, entrou num dos gabinetes disponíveis e fez aquilo que diz ser “um ato de generosidade”. “Quando entrei no gabinete para ser vacinado, pensei no ano duro que passou. Vi muitos doentes a morrer, lido com os doentes mais graves e mesmo os que sobreviveram tiveram de passar por uma via sacra, ou seja, uma recuperação de reabilitação muito exigente”, explica ao Observador, já depois de cumprir os 30 minutos de recobro que se seguem à vacinação.
Ao longo dos últimos nove meses, o médico intensivista esteve na linha da frente da pandemia naquele que é o maior hospital do norte do país e há um caso que o marcou especialmente. “O Mário Rui tem 54 anos, era perfeitamente saudável e esteve três meses em ECMO, aliás foi o doente no mundo que mais dias esteve em ECMO. Sobreviveu, está bem ao nível cognitivo e pulmonar, mas a passar um processo de reabilitação para voltar a andar. Foi e é um exemplo.”
Roberto Roncon está mais do que habituado a agulhas e seringas, já que todos os anos é vacinado contra a gripe. “Notei que esta vacina provocou uma reação local menor que a da gripe.” Apesar de ter “toda a confiança na base sólida cientifica” da vacina da Pfizer, o especialista sublinha que ela não muda radicalmente a forma como olha para a Covid-19. “As pessoas não podem pensar que, ao serem vacinadas, podem depois abraçar o avô ou dar beijinhos à mãe. Continuamos a ser potenciais transmissores, ainda que o risco seja menor. Temos de continuar a adotar as medidas comportamentais recomendadas.”
Uma visão partilhada por José Artur Paiva, diretor do serviço de medicina intensiva do hospital, vacinado 30 minutos após Roberto Roncon. “Temos de ter consciência que todos juntos estamos a escrever um livro, o livro desta pandemia, que tem ainda muitas páginas em branco, pois não conhecemos tudo sobre ela. O novo capítulo que estamos hoje a escrever, sobre a vacinação, é relevante, pois ajuda a reduzir a duração da pandemia ao caminharmos para a imunidade grupo. As páginas seguintes vão determinar a grossura deste livro.”
Segundo José Artur Paiva, o país encontra-se neste momento “numa encruzilhada” para decidir se vai “correr uma maratona de 40 ou de 20 quilómetros”. Defende que a vacina “não pode ser um descanso ou relaxamento das medidas comportamentais” e sublinha que “cada um só está seguro quando todos estiverem seguros”. “Acredito que exista um aumento de número de casos nos próximos 15 dias, fruto do desconfinamento nas últimas semanas, mas tudo depende do comportamento das pessoas.” Sobre os que ainda têm receio de serem vacinados, explica que as dúvidas que existem sobre a vacina “são exatamente iguais às dúvidas que existem sobre a própria doença”, por isso, diz, “não há razão para a evitar”.
Cristina Marujo é diretora do serviço de urgência e está a aguardar que terminem os 30 minutos de recobro para voltar ao trabalho. “É importante estar aqui hoje, temos de conseguir controlar isto em comunidade, não é apenas uma questão individual. Claro que me vou sentir mais protegida, mas há uma comunidade inteira que temos de proteger e faz parte do nosso dever cívico fazê-lo.”
A médica garante que não sentiu qualquer ponta de nervosismo durante a injeção. “Em 2009, fui a primeira a fazer a vacina da gripe A neste hospital, portanto é uma coisa normal. É uma pica, nada de especial.” Ainda que sem dor e sem medo associados, o momento tem um significado grande. “É mais um passo no controlo desta situação. Espero que seja o princípio do fim, que sirva para podermos ir voltando aos poucos à normalidade. Evidentemente que não voltaremos à normalidade agora, nem amanhã, mas, aos poucos, vamos poder fazê-lo.”
Se em março era difícil gerir a parte emocional e a condição de estar longe da família, hoje o mais exigente é mesmo lidar com o cansaço da equipa. No entanto, Cristina Marujo garante que o pensamento positivo nunca pode faltar. “O otimismo tem de cá estar, não podemos sair derrotados, muito menos nesta fase. Esta vacina dá-nos algum alento, tranquiliza-nos de alguma forma. Aliás, tenho toda a família desejosa de ser vacinada.”
Para a diretora do serviço de urgência, a vacina “chegou na altura certa”, porque “provavelmente não poderia vir mais cedo”. Ainda assim, esclarece que ela não irá mudar a sua rotina. “Neste momento ainda não muda nada, vou continuar a contactar com doentes positivos e vou estar mais protegida, mas o risco de ser uma fonte de contágio ainda existe.” Para os mais resistentes ao plano de vacinação, a médica deixa uma mensagem. “Estou aqui, sou um exemplo. É importante as pessoas perceberem que quem está no meio do furacão não tem receio e vem. Acreditem que quem faz estas coisas não as faz a brincar, há muito trabalho envolvido, esta não foi uma vacina cozinhada à pressa.”
Reencontros, telefonemas à família e um segundo pequeno-almoço
Uma hora depois do arranque, eram já muitos os profissionais de saúde que aguardavam pela sua vez, sentados ou de pé, distribuídos pelos corredores e pelas salas de espera. Se uns aproveitavam o momento para descontrair com jogos no telemóvel, outros preferiam telefonar à família ou pôr a conversa em dia com os colegas com quem habitualmente não se cruzam. Alguns profissionais apresentaram-se equipados com batas, sinal de que estavam a trabalhar e fizeram uma pausa para tomarem a vacina, outros apareceram vestidos à civil porque foram ao hospital excecionalmente este domingo “por uma boa causa”. A distância social recomendada nem sempre foi cumprida e o burburinho era tanto que o aviso sonoro das senhas nos televisores era difícil de identificar.
Vestido de azul, sentado numa das cadeiras da sala de espera, de senha numa mão e telemóvel na outra, está Fábio Vieira, enfermeiro na unidade de cuidados intermédios no S. João há 13 anos. Soube no início desta semana que poderia ser um dos primeiros a tomar a vacina da Pfizer e não pensou duas vezes sobre o assunto. “Acreditamos que isto nos pode dar alguma imunidade, podemos pelo menos ir para casa mais descansados. Não baixaremos a guarda, mas conseguiremos tratar os doentes mais seguros, esperamos nós.” O profissional tem um filho de um ano e outro com nove em casa e encara este momento como “um sinal de esperança e de tranquilidade” na hora de regressar ao seu núcleo familiar mais próximo. Fábio Vieira não teme os efeitos secundários e, após o recobro, está pronto para as três horas de trabalho que ainda lhe restam até terminar o turno.
Visivelmente atarefado no meio de um corredor, onde a sua voz ecoa em alguns momentos, está Rui Dias, coordenador de enfermagem nas consultas externas. Este domingo é responsável por orientar os profissionais sobre todos os passos que devem seguir. “Abordo toda a gente para tirarem a senha naquela parede, depois para validarem os seus dados no check-in, indico onde são as salas de espera e a sala de recobro, onde terão que fazer a vigilância recomendada após a vacina”, explica ao Observador, atento a tudo o que o rodeia. Nas mãos tem um monte de folhas que distribui a quem passa. “São informações sobre a vacina e um questionário que todos devem preencher. Depois também dou um cartão, onde devem fazer o registo da vacina e da data da segunda toma.”
Na sala em frente, a maior de todas, estão todos os que já foram vacinados. É aqui que, durante 30 minutos, são vigiados por uma equipa médica, caso surjam reações adversas — só depois desta etapa é que podem ter alta. No centro desta sala de recobro está o voluntário Hermínio Rodrigues atrás de uma banca recheada de bolachas, fatias de bolo, garrafas térmicas com chá e café. Trabalha no S. João há 16 anos, está habituado a acompanhar doentes para as consultas e a ajudar nos registos, mas, este domingo, tem uma função diferente: “Dar o segundo pequeno-almoço a quem foi vacinado”.
“Sinto as pessoas um pouco nervosas e apreensivas, mas acho que, no geral, estão a reagir bem. Até agora ainda não vi ninguém a sentir-se mal, isso é o mais importante”, diz ao Observador. Hermínio confessa que gostava de ser vacinado contra a Covid-19, mas, apesar do cabelo já grisalho, sinal da idade avançada, ainda não integra o grupo prioritário. “Não sei quando chegará a minha vez, mas, quando chegar, vou aproveitar.”
30 segundos de administração, um sistema informático lento e lágrimas nos olhos de emoção
À porta do gabinete número cinco, o enfermeiro Arnaldo Dias aguarda que chamem o nome do próximo profissional de saúde a quem irá administrar a vacina. “Há nomes que conheço, outros não, mas todos são bem vindos.” Já perdeu a conta de quantos já recebeu esta manhã. Em cima da sua secretária estão agora cinco vacinas prontas a utilizar. Só tem de verificar a dose de 0,3 mililitros, número visível na seringa graduada. “Até agora, está a correr tudo muito bem, não têm havido complicações. O único problema é o sistema informático que, neste momento, está sobrecarregado e demoramos mais nos registos.”
O enfermeiro garante que esta ação não requer um cuidado especial e o processo é o habitual. “Usa-se um antisséptico no braço e deixa-se secar, administra-se a vacina, fazemos uma ligeira pressão e depois colocamos um penso rápido. É algo que demora 30 segundos, depois só temos de registar, partilhar os possíveis efeitos secundários e informar que a segunda toma é a 17 de janeiro.”
Arnaldo Dias admite que alguns chegam ao seu gabinete preocupados, “pois é tudo muito novo”, mas “nada de alarmante”, até porque considera que a grande adesão no hospital é um bom sinal. “É importante darmos este passo, pois nós, profissionais de saúde, somos um exemplo para a comunidade, por isso acredito que, se não houver constrangimento da nossa parte, provavelmente as pessoas não se vão sentir tão receosas em fazer esta vacina.”
Maria do Céu Ferreira, assistente operacional no hospital há 18 anos, é a próxima que se irá sentar na cadeira junto à secretária do enfermeiro. Sorridente e bem disposta, afirma que ambicionava há muito por este momento, não só por ter 50 anos, mas também por ser diabética. “É uma coisa que todos ambicionávamos tanto e agora ia negar? Não fazia qualquer sentido”, diz, enquanto levanta a manga da sua bata amarela. “As pessoas que não tenham receio de fazer isto, não vale a pena, sinto-me completamente segura.”
Tranquila no que diz respeito às reações adversas, dirige-se para a sala de recobro e, no caminho, mostra-se otimista em relação ao futuro. “2021 vai ser um ano bom, tenho esperança nisso.” Quem partilha deste pensamento é Gisélia Braga, enfermeira nos cuidados intensivos. Este domingo está a chamar alguns dos seus colegas na sala da espera e a coordenar a operação nos gabinetes de vacinação. “Tenho esperança de que isto possa abrandar o que temos feito até agora, que tem sido muito cansativo para todos”, admite, já com as lágrimas nos olhos.
Ansiosa que o relógio bata as 14h30, hora do fim do seu turno, para que possa ser vacinada, a enfermeira mostra-se emocionada, mas confiante. “Será certamente marcante, não é uma vacina qualquer. Temos de acreditar na ciência e estamos aqui para nos proteger, a nós e aos outros. Vou estar atenta aos efeitos secundários, mas não tenho medo deles.”