A última auditoria às perdas do Novo Banco, que chegou há poucos dias ao Parlamento com classificação de “confidencial”, critica a gestão de António Ramalho pela falta de “normativos internos” na forma como se tenta recuperar o dinheiro emprestado aos devedores – algo que, depois, gera perdas que resultam em pedidos de injeção pública na instituição. O banco podia ter feito mais para recuperar dívidas: um dos casos relatados nas conclusões principais do documento, às quais o Observador teve acesso, é o de um devedor que tem atividade concentrada fora de Portugal mas a execução de colaterais apenas se focou no património dentro do País – e esse foi um devedor que causou perdas de 40 milhões de euros ao banco, só em 2020.
No sumário executivo da auditoria feita pela Deloitte, ao qual o Observador teve acesso na íntegra, a consultora critica a gestão do Novo Banco pelo facto de, apesar de a instituição já ter sido criada em 2014 (e em 2017 vendida, 75%, ao fundo Lone Star), ainda continuar a haver “falta de normativos internos” e “limitações” nos processos de pesquisa do património dos devedores e avalistas – algo que, se existisse, poderia mitigar as perdas do banco e reduzir as injeções de capital que são pedidas ao Estado, a cada ano.
“Os procedimentos acima descritos e que nos foram transmitidos pelo banco não se encontram formalmente definidos em normativo interno do Novo Banco“, critica a Deloitte, que pediu informações à gestão de António Ramalho sobre como é que se tenta apurar o património executável dos devedores. “De acordo com as informações obtidas junto do banco, o processo interno de pesquisa do património dos devedores e avalistas circunscreve-se apenas aos ativos imobiliários, mobiliários (por solicitação interna) e participações sociais através da pesquisa na plataforma interna – DUN, e é limitado ao território nacional“, nota a auditoria.
É aí que faltam os procedimentos “formalmente definidos em normativo interno do Novo Banco”, segundo a auditoria. Mas não só: “Os procedimentos de pesquisa de património dos devedores e avalistas (internos e externos) apenas estão implementados para os devedores que estão sob a esfera de responsabilidade em termos de acompanhamento e monitorização do DRCE”, ou seja, o departamento de recuperação de crédito a empresas. Ou seja, “não estão implementados procedimentos deste tipo quando os devedores estão sob a alçada da DSAE [Departamento de Seguimento e Acompanhamento de Empresas] ou dos departamentos comerciais, mesmo em operações que apresentam indicadores de risco acrescido“.
A auditoria acrescenta que “o processo de pesquisa do património dos devedores e avalistas apresenta limitações ao nível da sua abrangência e do seu timing de execução“.
Por um lado, a Deloitte salienta que os procedimentos de avaliação de património, quando são realizados por entidade externa, “são abrangentes mas não se aplicam à generalidade dos devedores”. Quando a análise é feita apenas internamente “os procedimentos implementados no Novo Banco não incluem a pesquisa de toda a tipologia de património/ativos dos devedores e avalistas e não são executados numa base periódica, não permitindo ao Banco ter um conhecimento atualizado de todo o património dos devedores e avalistas que permita assegurar uma melhor tomada de decisão pelo Banco, incluindo em matérias de definição da estratégia de recuperação”, critica a Deloitte.
E mais: “não estão definidos critérios concretos das circunstâncias em que deve ser efetuada essa pesquisa de bens para cada devedor, tendo em conta a sua classe de risco, nível de garantias associadas ou estratégia de recuperação”. E é aqui que surge o exemplo do “devedor 10“:
“A título de exemplo, para o devedor 10, o qual tem por base uma estratégia assente na perspetiva de recuperação via execução dos colaterais, verificámos que a pesquisa de bens deste devedor e dos avalistas foi efetuada internamente pelo banco, circunscrita a ativos imobiliários localizados em Portugal”, diz a auditoria – isto “não obstante a atividade económica deste devedor estar concentrada fora de Portugal” [em Angola]. Só este devedor, salienta a Deloitte, “gerou perdas em 2020 de 40 milhões de euros“.
Prejuízos foram “essencialmente perdas potenciais” e “reavaliações”
A auditoria tem como referência o período entre 1 de janeiro de 2020 e 31 de dezembro de 2020, escrutinando as operações de crédito, decisões de investimento e decisões de aquisição e alienação de ativos tomadas nesse período – um exercício que culminou com um pedido de injeção de 598 milhões de euros por parte do Fundo de Resolução no Novo Banco, que acabou por ser apenas de 429 milhões de euros devido a algumas disputas entre as partes, em Tribunal Arbitral, já noticiadas.
“As perdas registadas em 2020 correspondem essencialmente a perdas potenciais, decorrentes de reavaliações ou estimativas mais agravadas de perdas de crédito esperadas, em ativos originados maioritariamente em período anterior à constituição do Novo Banco e que já apresentavam perdas ou desvalorizações relevantes de anos anteriores”, pode ler-se no sumário executivo da auditoria revelada pelo Observador.
O Fundo de Resolução tem de injetar dinheiro no Novo Banco sempre que existem perdas líquidas acumuladas nos ativos que fazem parte do perímetro sobre o qual foi celebrado o acordo de Mecanismo de Capital Contingente (conhecido pela sigla CCA). Porém, não é só aí: o Fundo de Resolução também tem de apoiar o Novo Banco sempre que isso seja “necessário para repor o rácio de capital do Novo Banco no nível acordado no CCA”, que é de 12%. Ou seja, embora a negociação com o Lone Star tenha tomado como referência o rácio de capital de 12% por ser um valor referente aos mínimos regulamentares na Europa, o que diz o contrato – que nunca foi tornado público – é que os 12% têm de ser respeitados em qualquer circunstância.
Quando o Fundo de Resolução reteve parte do pagamento, o Novo Banco ficou com rácio de capital abaixo de 11%, o que a auditoria confirma que configuraria um incumprimento do contrato com a Lone Star. Isso era suficiente para cumprir os mínimos regulatórios (reduzidos devido à pandemia), diz a auditoria: “Tendo em consideração as reduções verificadas em 2020 ao nível dos rácios mínimos regulamentares aplicáveis ao Novo Banco, como consequência das medidas de alívio do regulador para dar resposta ao efeitos da situação da pandemia Covid-19, com referência a 31 de dezembro de 2020 o Novo Banco encontrava-se em situação de cumprimento com esses rácios mínimos”. Porém, como também diz a auditoria, “importa salientar que o banco estaria em incumprimento do total SREP capital requirement de 13,51%, com referência a 31 de dezembro de 2020, caso não estivessem em vigor as referidas medidas”.
Mesmo com os reguladores europeus a reduzirem os níveis de capital mínimos como resposta à pandemia, o Novo Banco teve sempre de respeitar o nível dos 12% por força do contrato – algo que configurou uma “sobrecapitalização” na ótica da deputada bloquista Mariana Mortágua, que na quarta-feira se pronunciou sobre a auditoria que chegou nos últimos dias ao Parlamento classificada como “confidencial”.
Como se lê no sumário executivo da auditoria da Deloitte, o pedido de injeção pública feita pelo Novo Banco relativo a 2020 (pedido no início de 2021) foi influenciado pelos seguintes itens:
- Perdas em crédito a clientes de 524 milhões de euros, incluindo perdas relacionadas com a pandemia de Covid-19, que começou naquele ano;
- Perdas em fundos de reestruturação de 313 milhões de euros, que resultaram de uma reavaliação que o Novo Banco encomendou a uma entidade externa (Alvarez & Marsal) a seis fundos de reestruturação detidos pelo Novo Banco.
- Perdas em imóveis de 174 milhões de euros, incluindo 61 milhões resultantes de um processo de reavaliação de imóveis de reduzida liquidez promovido pelo Novo Banco;
- Também em 2020, deu-se o início do processo de venda da sucursal em Espanha que, apesar de ter sido apenas concluído em 2021, resultou no registo de perdas de 166 milhões de euros em 2020. Nessa operação houve um “desfasamento temporal” que fez com que as perdas registadas em 2020 tenham contribuído em 147 milhões de euros para o montante do pedido de recapitalização do Novo Banco (“mas o correspondente efeito positivo em capital resultante da venda, que neutralizaria substancialmente o impacto no pagamento, só se refletiu em 2021”).
- Perdas de 190 milhões de euros associadas à exposição no angolano Banco Económico, na sequência da entrada em default ocorrida em 2020. Devido ao “elevado consumo de capital deste ativo, o impacto no pagamento foi de cerca de 15 milhões de euros”, diz a auditoria.
- “Para além do resultado líquido, destaca-se na atividade de 2020 o efeito negativo nos capitais próprios de desvios atuariais na mensuração de responsabilidades com pensões e saúde no montante de 125 milhões de euros”, pode ler-se na auditoria.
Tudo isso penalizou os resultados e o capital da instituição, levando à necessidade de injeção de capital num ano em que “o banco continuou o processo de desalavancagem e redução de ativos não-produtivos (NPA), embora a um ritmo inferior ao verificado em anos anteriores, em grande medida justificado pela pandemia originada pela Covid-19 e pela não realização da venda da carteira Nata III, que não foi aprovada pelo Fundo de Resolução”. Ainda assim, o banco terminou o exercício de 2020 com um prejuízo de 1.339 milhões de euros.
António Ramalho indicou há poucas semanas que planeia interromper o mandato, antes do tempo, e deverá sair do banco após a apresentação dos resultados do primeiro semestre, em agosto.
As polémicas de Ramalho em seis (conturbados) anos à frente do Novo Banco
Ao Observador, o Novo Banco comenta que a auditoria identifica “alguns pontos de melhoria nos normativos internos quanto ao detalhe de processos e procedimentos de recuperação que o banco tem já devidamente implementados”, com a Deloitte, no entendimento do banco, a reconhecer a redução de stock de ativos não produtivos pelas “necessárias e recorrentes ações para a recuperação dos seus créditos”. O Novo Banco, acrescenta fonte oficial, registava um rácio de ativos não produtivos de 35% em 2016, passando para 9% em 2020, e para 5,7% em 2021, “fruto destes mesmos esforços de recuperação do banco”. Por outro lado, acrescenta num comentário ao Observador, “o esforço de recuperação atingiu os 65% dos ativos líquidos do CCA, ou seja cerca de 5,9 mil milhões de euros até dezembro de 2021, o que também implicou mais de 90 mil ações judiciais”.
(Notícia atualizada com comentários do Novo Banco sexta-feira, 22 de abril, às 17h30)