O novo presidente do Tribunal de Contas é referido no inquérito das Parcerias Público-Privadas (PPP) como muito próximo do ex-secretário de Estado de José Sócrates, Paulo Campos — um dos principais suspeitos daquele caso onde se investigam prejuízos até 3,5 mil milhões de euros para o Estado, uma alegada prática de corrupção e de outros ilícitos criminais.
Quem atesta essa proximidade é a Polícia Judiciária (PJ), que intercetou emails trocados entre o ex-secretário de Estado de Sócrates e José Tavares, então diretor-geral do Tribunal de Contas, em 2009 e 2010. Um documento referido no processo, e que foi remetido por mail pessoal, foi uma cópia do contraditório a um relatório de auditoria feito pelo próprio tribunal. A PJ enfatiza que existe uma grande proximidade entre os dois, constatou o Observador ao consultar os autos dos inquéritos das PPP.
José Tavares participou inclusivamente em reuniões secretas com o Governo de José Sócrates para tentar contornar o chumbo que os próprios juízes conselheiros do Tribunal de Contas fizeram a quase todos os contratos das subconcessões rodoviárias lançados pelo ministro Mário Lino (que saiu em 2009 tendo sido substituído por António Mendonça) e Paulo Campos. Uma dessas reuniões teria mesmo acontecido num sábado na Presidência do Conselho de Ministros, onde terão estado presentes o secretário de Estado Paulo Campos e José Tavares, então diretor-geral do Tribunal de Contas.
A existência dessas reuniões foi confirmada na comissão parlamentar de inquérito às parcerias público privadas realizada entre 2012 e 2013, mas desde 2010 que se sabia que o Tribunal de Contas tinha colaborado com a empresa para encontrar uma saída jurídica que permitisse executar os contratos.
Apesar de o Tribunal de Contas ter tido um papel relevante no caso que está sob investigação, José Tavares não é considerado suspeito, o mesmo acontecendo com Guilherme d’Oliveira Martins, ex-ministro do PS e então presidente do Tribunal de Contas.
Um dos elementos cruciais desta investigação é uma auditoria do Tribunal de Contas de 2012 que considerou ilegais os contratos reformados para ultrapassar a recusa de visto prévio por parte do Tribunal em 2009, quando José Sócrates estava no final do seu primeiro mandato. Este processo de revisão dos contratos terá sido elaborado, segundo a entidade promotora dos contratos, a Estradas de Portugal (atual Infraestruturas de Portugal), com a colaboração de elementos do próprio Tribunal de Contas, para além do Governo de então.
A participação do então diretor-geral do Tribunal nestes esforços é referida no inquérito criminal pelo testemunho do ex-presidente da Estradas de Portugal. Almerindo Marques, então presidente da entidade que lançou os concursos das subconcessões rodoviárias) disse mesmo nos autos do inquérito das PPP que foi na sequência dessas reuniões que recebeu instruções sobre como deveria fazer para conseguir o visto necessário à realização de despesa pública, o que veio a acontecer em 2010. E acrescentou ter recebido instruções (não identificou de quem) para destruir os documentos com essas indicações.
Inquérito PPP. Almerindo Marques revelou ordem para destruir papéis ao Ministério Público em 2013
Já na comissão parlamentar de inquérito às PPP, em 2013, o antigo gestor tinha testemunhado sobre o envolvimento de José Tavares na solução que permitiu ultrapassar o impasse criado pela recusa do Tribunal de Contas em dar visto a vários contratos de concessão rodoviária em 2009. “O contrato reformado foi feito pelos serviços da Estradas de Portugal ponto final. Não há qualquer dificuldade em perceber isso. Havia, de facto, um caminho a percorrer, havia procedimentos a adotar e, para isso, sempre que necessário, o Sr. Dr. Tavares dava indicações: «Olhem, aí a abordagem é fazer isto.»
A solução jurídica encontrada passou pela assinatura de contratos paralelos com os bancos financiadores que previam pagamentos contingentes aos privados que, em certas circunstâncias, repunham os valores fixados nos primeiros contratos e que não tiveram o visto prévio do Tribunal de Contas. Estes contratos paralelos vieram mais tarde a ser considerados ilegais numa auditoria do mesmo Tribunal de Contas que é uma peça central na investigação do Ministério Público que já terá levado à constituição de arguidos entre os antigos ministros e secretários de Estado do Governo de José Sócrates.
José Tavares foi indigitado esta terça-feira pela Presidência da República como sucessor de Vítor Caldeira à frente do Tribunal de Contas. A indicação partiu do primeiro-ministro António Costa e foi aceite pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Isto aconteceu depois de, numa decisão inédita, o anterior presidente do Tribunal de Contas não ter sido reconduzido no cargo. A substituição é conhecida depois de um parecer muito crítico da instituição às alterações que o Governo quer fazer no regime de contratação pública para facilitar a execução dos contratos. O Tribunal avisa que as mexidas potenciam os riscos de corrupção e conluio nos contratos do Estado.
Ex-ministros Mário Lino e Teixeira dos Santos terão sido constituídos arguidos
O inquérito às PPP está sob investigação desde 2012 e investiga suspeitas de corrupção, participação económica em negócio, gestão danosa, burla agravada, tráfico de influências, fraude fiscal, branqueamento de capitais e associação criminosa. Ao fim de sete anos de investigações, a PJ concluiu que o Estado terá sido prejudicado em mais de 3,5 mil milhões de euros devido a decisões tomadas pelo Governo Sócrates. Uma parte destas perdas não se concretizou ainda porque os pagamentos contingentes considerados ilegais pelo Tribunal de Contas não estão a ser executados.
Só no início deste ano é que os ex-ministros Mário Lino e Fernando Teixeira dos Santos terão sido constituídos arguidos. Paulo Campos confirmou em março ao Observador que foi chamado mas não quis esclarecer em que qualidade. Desde o início das investigações que Campos é encarado com um dos principais suspeitos do caso.
A grande questão do caso em investigação prende-se precisamente com um ponto em que José Tavares e Guilherme d’Oliveira Martins tiveram um papel fundamental: a renegociação dos contratos das PPP que tinham sido chumbados pelos conselheiros do Tribunal de Contas do departamento do visto prévio.
Explicando a situação. Uma das matérias em investigação no inquérito das PPP está relacionada com os contratos de subconcessões que foram adjudicados pelo Governo de José Sócrates entre 2007 e 2009. Os concursos para sete subconcessões foram lançados numa altura de pré-crise, mas a sua adjudicação foi feita no meio da tempestade financeira que se seguiu à queda do banco americano Lehman Brothers, em setembro de 2008, o que fez disparar os custos financeiros destes projetos. Praticamente todas as propostas que passaram da 1.ª fase para a chamada fase best and final offer (BAFO) sofreram subidas do preço, devido ao aumento dos custos cobrados pelos financiadores.
O grande problema é que a lei dos concursos públicos não permitia que as propostas da BAFO fossem superiores às da 1.ª fase. Tudo porque a fase de negociação final, a BAFO, serve para o Estado negociar diretamente com os dois concorrentes mais bem colocados e conseguir mais vantagens por intermédio da concorrência entre os privados.
Foi precisamente por isso que os peritos financeiros do Ministério Público e da PJ concluíram que a Estradas de Portugal (EP), a entidade pública tutelada por Mário Lino e Paulo Campos que lançou os concursos das subconcessões, tinha todos os motivos para não adjudicar o contrato. Mas não foi isso que a EP fez.
A pressão de Sócrates e o papel de Oliveira Martins e de José Tavares
Sob grande pressão política do então primeiro-ministro José Sócrates e do secretário de Estado Paulo Campos, Almerindo Marques, que estava à frente da Estradas de Portugal, manteve o calendário dos concursos públicos. Com base nos relatórios emitidos por peritos em lei da contratação pública, a PJ considera nos autos do inquérito das PPP que essa opção foi tomada de forma consciente e intencional com o objetivo de desrespeitar os Programas de Concurso e a lei da Contratação Pública.
Por isso mesmo, foi sem surpresa que os conselheiros do Tribunal de Contas chumbaram as subconcessões, recusando o visto prévio (obrigatório por lei) aos primeiros cinco contratos que lhe foram submetidos pela EP — o que teve o efeito de uma bomba no Governo de José Sócrates e levou a uma pressão tremenda sobre Guilherme d’Oliveira Martins, o ex-ministro do Governo Guterres que o próprio Sócrates tinha escolhido em 2005 para liderar a instituição.
José Sócrates envolveu-se diretamente nas negociações que decorreram com o Tribunal de Contas e Oliveira Martins recorreu à ajuda de José Tavares. Então diretor-geral do tribunal, Tavares era uma figura influente junto de outros conselheiros. E foi assim que o tribunal aceitou que fossem submetidos novos contratos.
As “compensações contingentes”
Contudo, os novos contratos tinham um grande problema chamado “Compensação Contigente” que fazia parte dos contratos como uma side letter (uma espécie de anexo contratual). E como é que isso se transformou num grande problema? Assim:
- Supostamente, a segunda versão dos contratos submetidos tinham valores mais baixos do que a primeira que tinha sido chumbada. Isto se não se contasse com os valores que faziam parte da “Compensação Contigente”;
- E porquê? Porque a “Compensação Contingente” era precisamente um novo mecanismo de pagamento às concessionarias das PPP;
- Na ótica dos peritos financeiros da PJ, eram pagamentos extra-contratuais que pretendiam compensar as concessionárias por ‘baixarem’ as suas propostas na BAFO e contornar a recusa de visto prévio do Tribunal de Contas;
- Mais: tal mecanismo de remuneração não estava previsto no contrato original, logo não tinha justificação comercial ou contratual. Pior: o compromisso de pagamento não figurava de uma forma clara e explícita e quantificada no Contrato de Subconcessão.
A auditoria realizada em 2012 pelo Tribunal de Contas detetou estes pagamentos contingentes, que considerou ilegais por não terem sido submetidos ao visto prévio dado em 2010. Segundo esta auditoria, estas compensações fora do contrato, também referidas como acordos secretos, representavam encargos adicionais, a preços da altura, de 705 milhões de euros. Esta conclusão teve consequências práticas. A IP (novo nome da Estradas de Portugal) não está a pagar as ditas compensações, porque são ilegais aos olhos do tribunal.
Os peritos financeiros da PJ, contudo, dizem que a soma desses encargos adicionais não está correta. É muito mais: o encargo extraordinário assumido fora das regras do concurso será de cerca 3,13 mil milhões de euros no final dos contratos.
O papel de José Tavares: emails privados trocados com Paulo Campos e reuniões com o Governo a um sábado
Do ponto de vista da investigação, é relevante saber se o Tribunal de Contas sabia ou não das side letters que estipularam as compensações contingentes. Foi precisamente isso que as inspetoras da PJ fizeram, tendo intercetado diversos emails trocados entre o conselheiro José Tavares e o ex-secretário de Estado Paulo Campos
Um dos documentos enviado por mail foi um contraditório a uma auditoria do Tribunal de Contas. Foi Paulo Campos quem enviou uma cópia de um contraditório a um relatório de auditoria do TdC para José Tavares num tom que a PJ interpretou como sendo de uma grande proximidade entre um homem que era o braço direito de Oliveira Martins no Tribunal de Contas e outro que tinha uma grande fidelidade ao primeiro-ministro José Sócrates.
Além dessa proximidade, os autos do inquérito das PPP confirmam uma suspeita que existia nos meios que acompanham o setor das obras públicas: ocorreram diversas reuniões secretas entre José Tavares e outros juízes do Tribunal de Contas e o Governo de José Sócrates. Almerindo Marques confirmou isso mesmo quando depôs em março de 2012/2013 na Comissão Parlamentar de Inquérito às PPP.
Uma dessas reuniões teria mesmo acontecido num sábado na Presidência do Conselho de Ministros, onde terão estado presentes o então ministro Mário Lino, o ex-secretário de Estado Paulo Campos e José Tavares, então diretor-geral do Tribunal de Contas.
O próprio Guilherme d’Oliveira Martins também terá participado nessas reuniões mas, quando depôs nos autos, garantiu que nunca sofreu qualquer tipo de pressão da parte do Executivo de Sócrates para emitir o visto prévio aos contratos das subconcessões e negou ter fornecido documentos ou instruções para a EP reformar os contratos de forma a acomodar as críticas do tribunal.
Os documentos que tinham de ser destruídos após a leitura
Almerindo Marques, ex-presidente da EP, afirmou em fevereiro de 2013 nos autos do inquérito das PPP que foi na sequência dessas reuniões com Oliveira Martins e José Tavares que recebeu instruções sobre como deveria agir para reformar os contratos originais. Tais instruções assentavam em orientações do Tribunal de Contas sobre como ultrapassar o próprio chumbo daquele tribunal e terão sido transmitidas, segundo Almerindo Marques, pelo então secretário de Estado Paulo Campos.
Num depoimento prestado perante o juiz de instrução Carlos Alexandre, tendo valor legal como memória futura, Almerindo Marques foi mais longe e disse mesmo que recebeu textos precisos com soluções jurídicas e financeiras para ultrapassar o chumbo do Tribunal de Contas com uma ordem clara: tinha que destruir tais documentos após os ler. O ex-líder da EP não soube esclarecer se tais textos tiveram origem no Tribunal de Contas.
Apesar de a posição do Tribunal de Contas de Oliveira Martins e José Tavares ter sido sempre que as side letters com os pagamentos das compensações contigentes foram escondidas do tribunal, há diversos testemunhos de dirigentes da EP nos autos do inquérito das PPP que atestam o contrário. Por exemplo, João Canto e Castro, então diretor do Departamento de Assessoria Legal da EP desde 2008, garantiu que tais documentos faziam parte da segunda versão dos contratos que foram submetidos a visto prévio e que foram acordados previamente com os juízes do Tribunal de Contas.
Artigo corrigido às 19h27. A troca de emails privados entre José Tavares e Paulo Campos ocorreu por iniciativa do então secretário de Estado das Obras Públicas.
Nota: o Observador recebeu um direito de resposta a este artigo.