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O ex-presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira, podia ser reconduzido?

Sim — mas a resposta pode ser mais complexa. Não há nada na Constituição que impeça essa recondução, mas também não há nada que aponte no sentido de o mandato ser renovado. Isto faz depender a questão da vontade política e da interpretação da lei do Governo e Presidente em funções. Aliás, essa mesma discussão colocou-se na altura da recondução ou não de Joana Marques Vidal como procuradora-geral da República. O entendimento do Governo e do Presidente, antes como agora, era de que o mandato deve ser único.

E o que diz exatamente a Constituição? Diz que cabe ao Presidente da República “nomear e exonerar, sob proposta do Governo, o presidente do Tribunal de Contas e o Procurador-Geral da República” e que o mandato “tem a duração de quatro anos”. Nem mais, nem menos.

A Lei de Organização e Processo do Tribunal de Contas, no seu artigo 16.º, relativo à “nomeação e exoneração do presidente”, diz apenas que “o Presidente do Tribunal de Contas é nomeado nos termos da Constituição” e que “quando a nomeação recaia em juiz do próprio Tribunal, o respetivo lugar fica cativo enquanto durar o mandato do Presidente”.

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Qual foi o argumento utilizado por António Costa para não reconduzir Vítor Caldeira?

O primeiro-ministro recordou, precisamente, o exemplo de Joana Marques Vidal para sustentar a decisão de não reconduzir Vítor Caldeira. “A lei, de facto, não impede e renovação, mas o atual Governo e o atual Presidente da República definiram um critério para funções de natureza judiciária — funções que dependem de proposta do Governo e de nomeação do chefe de Estado —, aquando da nomeação da procuradora-geral da República”, afirmou António Costa esta terça-feira.

No caso de Joana Marques Vidal não havia nada na Constituição que impedisse a procuradora de ser reconduzida em 2018, mas o governo (quer a ministra da Justiça, Francisca Van Dunem, quer o primeiro-ministro António Costa) faziam um leitura do espírito da lei de que o mandato era “único”. Ainda que no caso da Procuradora a duração do mandato seja 50% superior (mais dois anos) ao do presidente do Tribunal de Contas que é de apenas quatro anos. A não renovação de cargos surge frequentemente a associada a mandatos mais longos.

Na verdade, mais do que uma questão jurídica, era naquele caso, tal como é neste, uma questão de entendimento político e o socialista assumiu-o. “Um critério é um critério, bom ou mau. Eram possíveis outros? Claro que eram. Mas este foi o critério que o Governo e o Presidente da República fixaram”.

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E Marcelo concorda?

O Presidente da República tem um papel central neste processo. Mas, apesar de ter sido convocado para a discussão por António Costa — que repetiu várias vezes que São Bento e Belém estão alinhados nesta matéria –, Marcelo foi lacónico. “Eu sobre essa matéria não tenho nada a dizer. Aquilo que sei é do conhecimento público: que as funções [de Vítor Caldeira] cessaram por força da lei, do decurso do mandato, no dia 30 de setembro. Não sei mais nada”, disse durante o fim de semana.

Em declarações ao jornal Expresso esta terça-feira, Marcelo Rebelo de Sousa teceu rasgados elogios a Vítor Caldeira e sugeriu que contava agora que António Costa escolhesse um sucessor na mesma linha — presume-se, portanto, que partilhe do entendimento do primeiro-ministro em relação à ideia de mandato único.

O Presidente da República achou “ótimo” o mandato de Vitor Caldeira e balizou o perfil que queria ver cumprido na escolha do sucessor. Marcelo cobriu a tese do mandato único mas disse esperar que António Costa lhe propusesse um nome “exatamente com o mesmo grau de exigência” no combate a “conluios”, “compadrios” e “corrupções”.

Horas depois de admitir que concordava com António Costa, Marcelo Rebelo de Sousa nomeou, sob proposta do primeiro-ministro, o juiz José Tavares como novo presidente do Tribunal de Contas.

Tal como o Observador já escreveu na noite desta terça-feira, José Tavares aparece referido no caso das PPP — e a Polícia Judiciária dá-o como muito próximo de Paulo Campos, ex-secretário de Estado de José Sócrates.

Novo presidente do Tribunal de Contas referido no inquérito das PPP

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Os presidentes do Tribunal de Contas costumam ser reconduzidos?

Sim. Tal como aconteceu em relação ao cargo de procurador-geral da República, só a revisão da Constituição, em 1997, veio trazer uma baliza temporal ao cargo de presidente do Tribunal de Contas — no caso, um mandato de 4 anos. Mas, mais uma vez: não há qualquer referência na Constituição a um “mandato único”.

Basta uma consulta rápida no site do Tribunal de Contas para constatar que a continuidade na liderança do órgão de auditoria externa do Estado é a regra. Desde 1977, todos os presidentes do Tribunal de Contas tiveram dez anos (ou quase) de permanência no cargo.

Até hoje, e mesmo depois de 1997, todos os titulares deste cargo foram reconduzidos — e, quando saíram, fizeram-no pelo próprio pé. Pelo que a decisão de não renovar o cargo de presidente assumida por António Costa é inédita.

Alfredo de Sousa esteve 10 anos no cargo (1995-2005), foi reconduzido uma vez e recusou uma segunda renovação para se aposentar. E Guilherme d’Oliveira Martins (1995-2005) teve três mandatos, foi reconduzido duas vezes e saiu a seu pedido a meio do terceiro mandato para a Fundação Gulbenkian.

A não recondução de Vítor Caldeira é, por isso, uma exceção. Perante esta constatação, e à pergunta dos jornalistas, António Costa limitou-se a dizer, sobre os anteriores casos: “Foi com outro Presidente da República e outros governos”.

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O Tribunal de Contas teve posições críticas sobre as novas regras de contratação pública?

Sim e isso levou a que muitos partidos — à esquerda e à direita — suspeitassem do timing e do argumentário utilizados por António Costa para optar pela não recondução de Vítor Caldeira.

Se há ocasião adequada à conclusão “Tribunal de Contas arrasa”, o parecer às propostas de alteração ao código dos contratos públicos feitas pelo Governo é certamente uma delas.

Face a propostas para facilitar e acelerar os processos de despesa públicas nas áreas da habitação pública, transição digital, mas também projetos co-financiados com fundos europeus, o parecer denuncia riscos de práticas ilícitas de “conluio, cartelização, e até mesmo de corrupção na contratação pública”. Isto em vésperas de chegarem milhares de milhões da União Europeia. E aponta para recuos nas políticas públicas e até choque com as regras do tratado europeu.

Entre as principais críticas estão a eliminação das restrições à contratação da mesma entidade várias vezes, a dispensa de apresentação de uma análise de custo/benefício para projetos com habitação e fundos da UE, a limitação do número de entidades que é preciso auscultar em consultas prévias, a possibilidade generalizada de juntar conceção de projeto e construção no mesmo concurso e a criação de critérios que valorizem empresas e mercados locais e/ou regionais, pondo em causa a concorrência e ao arrepio das regras europeias.

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Em que circunstância surgiu este parecer do Tribunal de Contas e quem o fez?

O parecer do Tribunal de Contas é dado no quadro de um processo legislativo acelerado para aprovar na especialidade o diploma de facilitação dos contratos públicos que foi aprovado na generalidade pelo Parlamento em julho. No documento, o tribunal queixa-se do prazo curto exigido (11 dias), o qual “inviabiliza uma apreciação aprofundada de todas as normas da proposta e suas implicações”. E diz que não é possível seguir as regras internas sobre a emissão de pareceres que implicam uma avaliação colegial, a nomeação de um relator e um estudo mais aprofundado.

Ainda assim, entregou o parecer no prazo exigido pela comissão permanente, um órgão que integra o presidente do Tribunal de Contas, Vítor Caldeira, mas também o vice-presidente e os juízes conselheiros que lideram as várias secções da instituição: fiscalização preventiva (visto prévio), fiscalização sucessiva (auditorias), julgamento e secções regionais de Açores e Madeira,

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O Governo e o tribunal liderado por Vítor Caldeira já tinham entrado em choque?

Desde os tempos das maiorias de Cavaco Silva que o Tribunal de Contas tem sido apontado como “força de bloqueio” às decisões dos vários governos. Esta crispação é mais comum nos segundos mandatos de primeiros-ministros com mais tempo no poder, porque as auditorias sobre os temas mais delicados demoram tempo.

O visto prévio à despesa pública é a arma mais forte do Tribunal de Contas porque, sem esta autorização, contratos já assinados e adjudicados não são válidos. Foi o que aconteceu em 2009 quando o tribunal chumbou as subconcessões rodoviárias lançadas por Sócrates.

Com os socialistas no poder, um dos principais braços-de-ferro foi com Fernando Medina a propósito dos negócios imobiliários da Câmara de Lisboa, que suscitaram várias recusas de visto e uma auditoria negativa. O autarca até deu uma conferência de imprensa sobre o assunto.

Também o ministro do Ensino Superior, Manuel Heitor, teve uma divergência pública por causa de uma auditoria ao financiamento do ensino superior.

Em entrevista ao Observador, em julho de 2019, António Costa reagia a um relatório daquele tribunal sobre a gestão dos donativos de Pedrógão Grande, dizendo que “os press release do Tribunal de Contas costumam ser bastante mais dramáticos do que aquilo que é a realidade efetiva”.

A crítica de António Costa motivou uma resposta do Tribunal de Contas, lembrando que, sobre esse assunto, “não fez nenhum comunicado, mas apenas uma nota de síntese do relatório, como faz igualmente para todos os relatórios, que é uma transcrição e reprodução fiel das conclusões e recomendações do relatório, não alterando em nada aquilo que são essas mesmas conclusões e recomendações”. A tensão entre o governo e o Tribunal de Contas chegou, assim, a ser pública.