É uma “singularidade histórica” que acontece pela primeira vez em mais de 10 anos de polémicas sobre os custos políticos que sucessivos governos carregaram para as tarifas da eletricidade. A expressão é usada pelo Conselho Tarifário, um órgão consultivo do regulador da energia, no parecer anual sobre a fixação das tarifas, para descrever o contributo, inédito, que os contratos de remuneração garantida tiveram para segurar o preço da eletricidade no próximo ano.
Enquanto do outro lado da fronteira (e em muitos países europeus) empresas e famílias enfrentam agravamentos da fatura na casa dos dois dígitos, os consumidores domésticos portugueses sentiram uma subida moderada das tarifas este ano no mercado regulado — e que será quase anulada com a proposta de tarifas finalizada esta semana.
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Muitas vezes apelidados de rendas excessivas, porque asseguram aos operadores um nível de rentabilidade por norma superior ao preço de venda da energia, estes contratos passaram a ser um contribuinte positivo para os custos do sistema (e para os consumidores). Siglas como os CAE e os CMEC — contratos com centrais térmicas e barragens — e PRE (produção em regime especial onde estão os parques eólicos) têm sido responsáveis pelas fatias mais pesadas dos custos de interesse económico geral que passam todos os anos para as tarifas. Para as do próximo ano, o contributo destes contratos passa a ser positivo para o sistema (e negativo para os operadores). Isto permite que, pela primeira vez, os chamados custos políticos passem a ganhos políticos na medida em que tiram 1.293 milhões de euros à fatura que os consumidores terão de pagar, aliviando a pressão causada pela também inédita escalada da eletricidade nos mercados grossistas.
Nas tarifas de 2021, estes custos pesaram dois mil milhões de euros, inflacionados pelo fenómeno inverso — a baixa cotação dos mercados grossistas que elevou as compensações aos produtores renováveis.
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O efeito sentido este ano foi gerado por dois tipos de contratos que nos últimos 20 anos representaram sempre uma fatura adicional para o sistema elétrico: os sobrecustos da produção em regime especial onde está a tarifa garantida aos parques eólicos mais antigos — uma parte dos quais licenciada no tempo de Manuel Pinho no Ministério da Economia — e os contratos de aquisição de energia das centrais do Pego e da Turbogás que já vêm dos anos de 1990. E tem duas causas: o aumento imprevisto e muito acentuado das cotações no Mibel (mercado ibérico de eletricidade) onde as elétricas vão adquirir a energia que vendem aos clientes e o fim do contrato de aquisição de energia (CAE) da central a carvão do Pego no final deste ano que gera poupança da ordem dos 100 milhões de euros.
O primeiro fator foi o que teve mais peso. Até 2020, o preço de mercado da eletricidade era sempre inferior ao preço pressuposto na remuneração dos contratos de venda de energia, quer nos parques eólicos, quer nas centrais dos CAE. Esta assimetria jogava a favor das elétricas que recebiam uma compensação face ao valor de mercado, que era financiada pelas tarifas de eletricidade e que, no caso da eólicas, era classificada como um sobrecusto para o sistema.
Isso mudou em 2021, por causa da evolução dos preços grossistas verificada a partir do verão, que foi inflamada pela procura associada à rápida retoma das economias que fez subir o gás natural. Mas, também, pelo reforço da ambição política no combate às alterações climáticas que tem vindo a conduzir, de forma consistente, à valorização das licenças que as centrais térmicas têm de comprar para produzir (e emitir CO2). Esta situação deve prolongar-se para 2022, o que não quer dizer que no passado estes mesmos contratos não tenham sido um fardo pesado para os consumidores de energia elétrica.
Mas num contexto de forte alta dos preços acabam por funcionar como um seguro, como defenderam responsáveis políticos.
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A estimativa que serviu para a fixação das tarifas de 2022 por parte da Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) prevê que o preço médio do Mibel seja superior ao preço de referência médio da energia adquirida à produção em regime especial que é de 86,51 euros por MWh. Também o CAE que sobra, da Turbogás, terá um preço médio de 89,1 euros por MW/hora.
Para 2022, o regulador estima um preço médio de custo de aquisição de energia para o CUR (comercializador das tarifas reguladas) de 105,5 euros por MWh, que representa mais do dobro da estimativa inicial que a ERSE fez para este ano (49,5 euros por MWh), que foi entretanto revista para 76,18 euros por MWh. Apesar de ser já um aumento significativo, as contas da ERSE só consideram os valores reais disponíveis até final de setembro e já no início de dezembro as cotações no Mibel atingiram novos recordes, chegando a negociar nas horas de maior procura a 35o euros por MWh.
Preços médios superiores aos previstos nos contratos resultaram numa devolução de ganhos de mercado ao sistema e que favorece as tarifas de 2022 no valor de 1.584 milhões de euros, por contraste com um sobrecusto de 1.469 milhões de euros em 2021. A par deste efeito, foram também adotadas medidas pelo Governo para mitigar o impacto do aumento dos preços da energia no valor de 620 milhões de euros, das quais as mais importantes são as receitas dos leilões de licenças de CO2, a revogação do regime da interruptibilidade (que compensa grandes indústrias por cortes que salvaguardam a segurança no abastecimento), a transferência de saldos de gerência de vários fundos, com destaque para o Fundo Ambiental, e a cobrança da CESE (contribuição extraordinária sobre o setor energético).
O impacto destas medidas foi dirigido para os clientes empresariais, o que permitiu uma baixa acentuada das tarifas de uso geral do sistema pagas por estes consumidores que estão mais expostos ao aumento da componente de energia. No seu parecer às tarifas do próximo ano, o Conselho Tarifário “não pode deixar de registar que esta afetação não contempla o nível da baixa tensão (domésticos), beneficiando exclusivamente os níveis de tensão superiores (empresas). Trata-se de uma decisão eminentemente política, que ganharia maior transparência com uma justificação fundamentada por parte da tutela”, referindo que o despacho das medidas não tinha sido publicado até ao dia do anúncio da proposta da ERSE.
As famílias beneficiaram sobretudo da devolução dos ganhos dos produtores renováveis já referida que também permitiu regressar à rota de amortização da dívida tarifária — que está agora nos 1.709 milhões de euros — que tinha sido interrompida nas tarifas de 2021.
“É bem evidente nesta representação o impacto da situação vivida nos mercados e a singularidade do ano 2022 quanto ao peso da energia elétrica, justificado pelo aumento substancial dos custos com a energia prevista ocorrer em 2022, e o peso negativo da tarifa de uso geral do sistema (UGS) resultante do diferencial de custos com a aquisição de energia a produtores em regime especial e da redução do sobrecusto CAE, devido ao enorme aumento ocorrido em 2021 e previsto ocorrer em 2022 nos preços da energia elétrica nos mercados grossistas”.
O Conselho Tarifário alerta para a incerteza quanto “à data de normalização dos preços elevados” e defende que deve ser adotada uma posição de prudência para evitar que em 2022 se verifiquem desvios a nível dos custos que possam vir a pesar na fixação dos preços do ano de 2023 e seguintes e que possam causar variações no valor das tarifas que não sejam sustentáveis a longo prazo”.
Há vários fatores que podem onerar os custos e que, segundo o parecer que acompanha as tarifas de 2022, não foram considerados pelo regulador. Um deles é a substituição do regime de interruptibilidade, um mecanismo que paga às grandes indústrias pela sua disponibilidade para aceitarem cortes no fornecimento quando está em risco a segurança do abastecimento. Esta medida retira um custo de 80 milhões de euros ao sistema e o regulador considerou que o regime alternativo não terá impacto direto nas tarifas, mas sim no mercado dos serviços de sistema.
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Outro dos alertas diz respeito a outra “renda”, esta associada às centrais da EDP e que vai voltar a ser um custo para o sistema em 2022. Os CMEC (custos de manutenção do equilíbrio contratual) — que são um dos focos do inquérito criminal do caso EDP — devidos à elétrica foram suspensos durante três anos, por força da devolução aos consumidores das remunerações consideradas em excesso e que resultaram de alterações introduzidas aos contratos iniciais que assentaram na neutralidade. Mas à fatura prevista de 65 milhões de euros falta acrescentar o acerto de contas relativo a 2017 que nunca chegou a ser homologado pelo Governo e que a ERSE não incluiu na previsão de custos.
O Conselho Tarifário recomenda à ERSE que procure fechar esta questão em definitivo, para evitar “riscos adicionais nas tarifas, por valores ou encargos determinados posteriormente por falta de atempada homologação”.
Sublinhando que as tarifas de 2022, que se traduzem numa descida face de 3,4% face aos preços em vigor no último trimestre deste ano, beneficiam de um impacto positivo extraordinário, o que “poderá criar expectativas otimistas nos agentes económicos quanto à sustentabilidade da manutenção deste efeito nos próximos anos, pelo que desvios que gerem ajustamentos desta magnitude devem ser evitados”.
O órgão consultivo da ERSE, onde têm assento as empresas do setor, associações do consumidor e autarquias, recomenda ao regulador que seja claro a transmitir que o “nível tarifário de 2022 é reflexo de circunstâncias muito próprias e conjunturais que poderão não repetir-se nos próximos anos“. E avisa que num cenário de correção dos preços elevados no mercado grossista para os níveis historicamente observados (na casa dos 50 euros MWh), iria verificar-se a reposição da estrutura de pagamentos de 2021. Tal não iria atingir muito as famílias, dado que “estes consumidores não foram beneficiados pelo reforço das medidas governamentais nas tarifas de 2022, mas colocará uma forte pressão de aumento nas tarifas de acesso para os níveis superiores de tensão (empresas)”.